Este blog deseja a todos os que por aqui vão passando um Feliz Natal.
1958 - 2021
Não há nada mais poético e mais solitário do que uma estação
de comboios num dia feriado ou num Domingo. Sem pessoas nem máquinas a decorar
a paisagem restam apenas as estruturas, a imensidão do apeadeiro, um banco ou
dois, os carris sem nada para fazer. E, no entanto, todo esse vazio que o nosso
andar vagaroso experimenta revela-se numa imensidão de sentidos, informações, mensagens
tranquilas escritas pela caneta da ausência. Uma partida madrugadora depois de
um adeus forçado, o frio a pedir uma sala aquecida pela lareira, um grito
desesperado de fechar definitivamente as contas com a vida e partir para outro
destino, reencontros, corridas apressadas para esperanças prestes a partir. Não
há nada mais poético nem mais digno do que a espera em solidão pelas respostas
que a ausência interroga. Sozinhos na plataforma, assim nascemos e morremos percebendo
exactamente a mesma coisa no fim do que percebíamos no princípio. Nada. Aparte
isso, viagens e mais viagens, multidões apressadas de sensações, ruídos
estridentes de expectativas, avisos sonoros sobre a nossa cabeça, agitação,
confusão e caos. Por isso a estação vazia e o regresso à calma de sermos aquilo
que sempre fomos amparados pelo braço do silêncio.
Não há nada mais digno nem mais confortável do que não ter
ninguém à nossa volta a não ser os nossos pensamentos, o diálogo interior sem
nada que o consiga interromper. O mundo de onde nunca deveríamos ter saído
assombrados pela ideia de que nunca lá poderíamos voltar. As voltas e voltas à
procura de uma explicação, de um sentido, uma razão por mínima que seja para conseguir
compreender o que se passa.
Não há nada mais confortável nem mais profícuo do que alguns
momentos de solidão para conseguir ver com muito mais lucidez tudo aquilo que a
algazarra dos dias, a multidão e o frenesim para lado nenhum não permitem.
Numa plataforma isolada a única coisa que faz sentido é a
própria forma das coisas. Descansada, silenciosa, embrulhada na razão do seu
próprio ser. E a mochila pousada ao lado das botas cansadas em intervalo de
caminhadas. Cheira-se o vento em busca de uma direcção, afina-se o tempo
ouvindo os sinais do corpo, acende-se um cigarro lento enquanto as palavras se
vão arrumando à volta daquilo que se pensa. No fim outra coisa surgirá. Outra
direcção, outra viagem, outro caminho dará início ao desenho dos próximos dias.
Não há nada mais poético nem mais estimulante do que um
homem sozinho numa plataforma sem gente, a interrogar o destino com um cigarro
lento nas mãos. A escolher entre o passado e o futuro, entre a vida e a morte. E
à sua volta o tempo fica parado à espera de uma decisão, o frio cala-se por
instantes e o mundo vai lá fora enquanto nada acontece. Amanhã tudo voltará a acontecer…de
uma maneira ou de outra. Amanhã o homem voltará a ouvir o seu nome pronunciado
pelo vento nas folhas das árvores. E será ele outra vez.
Artur
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
Fernando Pessoa
Vigésimo quarto dia do décimo primeiro mês de dois mil e vinte e um. Ontem à noite os relâmpagos voltaram sózinhos a iluminar as copas das árvores que emolduram a janela do quarto. No princípio da madrugada já Júpiter brilhava na terceira vidraça superior sem nuvens a atrapalhar. É assim viver no princípio da banda de além, é ficar mais aquém de cada fenómeno que antes só se revelava através de filmes de oito milímetros, ou de histórias contadas pelos avós mais antigos. Muitas vezes me vem o impulso a que não cedo de tapar os espelhos da casa. Os olhos curiosos dos animais sossegam-me e quando há sinal de perigo é atrás de mim que se escondem. As gatas da cidade são agora leoas ferozes que me agradecem com ratinhos, grilos e baratas. Felizmente tive uma mãe comparável à maior maga das ciências naturais. Treinou a sua única filha para lidar com todos os seres vertebrados e invertebrados, de sangue quente e de sangue frio. Costumava amarrar um cordel à cauda dum murganho para eu poder passear com ele ou a apanhar lagartixas dando um nó de corrediço nas ervas mais compridas. Tornei-me uma pescadora exímia de lagartixas ao sol. No dia em que resolvi lavar as minhocas na banheira da casa acho que percebeu que a minha curiosidade seria sempre maior do que o meu pudor. Tinha então três anos e só tinha medo da sombra nas escadas para o segundo andar. Hoje até as sombras são sempre o lado onde a luz está por chegar.
Na aldeia onde passo agora a maior parte do tempo, o padeiro costuma passar uma vez (às vezes duas) em passeio triunfal, qual parada medieval de outrora. Estaciona na cabeceira da rua principal e agarra-se à buzina como se quisesse anunciar um ataque nuclear eminente, tendo as pessoas dois minutos para correr para o abrigo. Aguarda uns instantes que os idosos se aproximem munidos do porta-moedas e do saquinho de plástico, fica ali a dar dois dedos de conversa e arranca até ao outro extremo da rua para repetir o ritual. Buzinadela estridente e prolongada, aproximação da população idosa, o estado do tempo, o futebol e ala para a próxima aldeia. Confesso que ao princípio me assustava tanta algazarra desnecessária quando uma simples combinação de horário poderia resolver a questão. Depois comecei-me a habituar com espasmos cada vez menos pronunciados e palavrões em escala decrescente.
Nos últimos tempos o padeiro
deixou de vir diariamente, talvez por ter outros afazeres, talvez porque
resolveu abrandar o ritmo da volta às aldeias. Em seu lugar mandou o filho, um
miúdo tranquilo que aproveita as horas vagas da escola embora muito menos
sociável do que o pai. O ritual não mudou a não ser na rapidez com que se
desenvolve. É que isto de atender o público não é uma capacidade inata em
ninguém…leva o seu tempo. Há sempre aquele cliente que reclama das carcaças que
comprou ontem, o outro que deita um longo olhar para dentro da caixa da
carrinha para de seguida se pôr a pedir aquilo que não há, já para não falar na
epopeia dos trocos que, como todos sabemos, além de difíceis de arranjar
ninguém parece ter. O rapaz chega à entrada da rua, agarra-se à buzina da
carrinha como se não houvesse amanhã e, logo de seguida, arranca em direcção à
outra ponta da rua. Os primeiros potenciais compradores têm apenas tempo para
pôr o nariz de fora para se aperceberem que se quiserem pão vão ter que ir à
padaria.
Ao fim do dia não faço ideia que
contas é que pai e filho farão e qual o balanço diário da padaria itinerante.
Mas a atitude do filho do padeiro faz-me lembrar o “autovoucher” do Governo
para minimizar o impacto do aumento dos combustíveis. Por cada pipa de massa
que gastar a consumir o seu combustível, traga a factura e troque por um
apoio…zinho de 0,00005 %.
Ou seja, o consumidor é toureado
com todo o cenário que indica precisamente o contrário. Temos padaria, temos
serviço itinerante ao cliente…o que não temos é pão.
Faz lembrar uma piada antiga do
Herman José em que era anunciado um concurso de sugestões para acabar com a
burocracia. Quem quisesse participar teria que enviar um formulário devidamente
preenchido com uma exposição de quinze páginas a explicar porque é que se devia
acabar com a burocracia, acompanhado de uma fotografia de corpo e meio junto a
um pastor alemão albino.
O chefe do governo e alguns dos
seus ministros podem personificar a relação do padeiro e do seu filho. Um mais
diligente, ou mais calculista, outros mais incompetentes, mais apressados,
menos atentos. Ao fim do dia a panificadora terá que fazer o balanço das
diversas estratégias aplicadas e assumir as falhas do sistema. Mais depressa ou
mais devagar, em loja fixa ou itinerante. Os consumidores cá estarão, sempre os
mesmos, com a mesmas necessidades de comer pão todos os dias. Se não nesta
padaria…noutra qualquer…
Artur
No próximo Sábado, dia 20, a Tertúlia Regressa a Braço de Prata. Na primeira sessão vamos estar à conversa com José Guedes. "Na Rota do Yankee Clipper", "O Aviador" e "Carlos Bleck" serão os títulos em debate. Dos "Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras" até à Aeronáutica em geral, experiências de vida, livros, memórias e mais que na altura se verá. Estão todos convidados.
Décimo oitavo dia do décimo mês de dois mil e vinte e um.
Passam
hoje cem anos sobre uma trágica data da nossa História recente onde, na sequência
de um golpe de estado, um aparentemente indisciplinado e selvático grupo de soldados
do lado vitorioso deu largas a uma série de execuções de personalidades
políticas e militares da época. Nos anos noventa resolvi tentar escrever a
história desses acontecimentos e transformar esse trabalho no argumento para
uma longa-metragem. Enquanto argumento o filme ganhou dois prémios embora nunca
tenha conseguido passar à fase seguinte, isto é, à produção e conversão em
imagens. Deixo-vos a sua expressão mais curta em forma de texto (Sinopse) enquanto
modesto contributo de homenagem às vítimas e, principalmente, em homenagem a
uma mulher incrível (Berta Maia) que nunca descansou enquanto não descobriu a “mão”
por trás dos acontecimentos aparentemente fortuitos que de fortuitos nada
tinham.
Este
trabalho foi escrito em parceria com o cineasta João Matos Silva.
Artur
Guilherme Carvalho
A
NOITE SANGRENTA
(Sinopse)
No dia 19
de Outubro de 1921 a jovem República fundada com a Revolução de 1910 sofria
mais um rude golpe. Na sequência de um tempo atribulado, sem soluções
duradouras e eficazes, com a falência da credibilidade das instituições, golpes
de estado e governos sucediam-se a uma cadência alucinante.
Três anos depois de uma participação activa
na I Guerra Mundial, pouco reconhecida na Conferência de Paz pelas potências
europeias vencedoras, dois anos após o assassinato de um dos mais carismáticos
presidentes da república, Sidónio Pais, e com uma situação económica cada vez
mais enfraquecida pela corrupção e pela subida da inflacção, a sociedade portuguesa
cada vez mais dividida, atravessa um período difícil da sua História marcado
pela errância e pelo acaso, ao sabor das suas próprias convulsões.
Na noite que se seguiu ao golpe de 19 de
Outubro de 1921, cinco personalidades públicas prestigiadas são barbaramente
assassinadas por tropas revolucionárias indisciplinadas, aparentemente
desirmanadas da sua cadeia de comando. O Presidente do Ministério (Primeiro
Ministro), que assina a sua demissão pelas 13 horas do dia 19 acaba por ser
assassinado no Alfeite da Marinha nessa mesma noite. Para além do dr. António
Granjo, homens como o Almirante Machado Santos, herói revolucionário do 5 de
Outubro de 1910 e várias vezes Ministro, o Comandante Carlos da Maia, o coronel
de cavalaria Botelho de Vasconcellos e o Comandante Feitas da Silva juntam-lhes
os seus nomes numa macabra lista que terá sido tudo menos obra do acaso,
levantando desde o início sérias e preocupantes dúvidas quanto à sua origem.
Comovendo a
sociedade portuguesa de uma forma global, a “Noite Sangrenta”, como ficou conhecida,
tomou assento durante algum tempo, quer nos jornais, quer nos tribunais durante
o julgamento. Desde as campanhas públicas a favor dos familiares das vítimas
até às mais díspares e inflamadas afirmações, a “Noite Sangrenta” marcou de
forma profunda todos aqueles que viveram nesse tempo. Após os funerais e os
traumas, todos se empenharam no apuramento das responsabilidades dos trágicos
acontecimentos daquela noite de má memória. Em circunstâncias pouco usuais, o
Tribunal Militar de Sta. Clara será palco para o julgamento presidido por um
tribunal misto, civil e militar. Para além de um júri composto por cinco
oficiais generais, o tribunal é presidido pelo General Camacho tendo como
auditor o dr. Almeida Ribeiro e como Promotor de Justiça o General Carmona,
mais tarde Presidente da República. Suspensa na imprensa da época a sociedade
portuguesa vai seguindo atentamente o desenrolar dos acontecimentos.
Precisamente por ser só quase nos jornais
que se encontra concentrado o material de pesquisa histórica referente à “Noite
Sangrenta”, o único personagem ficcional que integra o filme desde o princípio
é um jornalista. Desde o golpe de estado que ele acompanhará a evolução dos
acontecimentos. As suas dúvidas e os seus raciocínios estabelecem a ligação
entre o entendimento do espectador e o desenrolar da acção.
II
O processo terá vários julgamentos, sendo
apenas dois exclusivamente referentes à “Noite Sangrenta”. Num serão julgados
os oficiais revolucionários responsáveis pelos seus subordinados, bem como pela
segurança e ordem nas ruas da cidade no decorrer do golpe de estado. Noutro, o
grupo dos praças um oficial e dois sargentos, todos eles tripulantes da
tragicamente famosa “Camionette Fantasma”, uma carrinha utilizada para
transportar algumas das vítimas desde as suas residências até às execuções. Se
no primeiro caso, por falta de provas, todos serão absolvidos, no segundo as
penas aplicadas reflectem o reconhecimento da autoria material dos crimes.
Desde sempre que no grupo de guardas e marinheiros
que compunham a “equipa de extermínio” se destaca um líder. Trata-se do Cabo
marinheiro Abel Olímpio, o “Dente de Ouro”, principal instigador e orientador
das movimentações do grupo. Durante o julgamento negará todas as acusações em
bora acabe por ser condenado a vários anos de prisão.
III
Após o julgamento, Berta Maia, a viúva de
uma das vítimas, o Comandante Carlos da Maia, não se satisfaz com a execução da
justiça sobre o homem que lhe levou o marido de casa pela última vez. Convencida
de que os crimes perpetrados com arrepiante minúcia na escolha das vítimas não
foram obra apenas de um bando de marinheiros embriagados, a viúva perseguirá o
“Dente de Ouro” no seu cativeiro em busca da verdade. Durante várias conversas
entre os dois, já no ano de 1926, assassino e viúva da vítima estabelecem uma
curiosa relação de remorso e persistência que é a o mesmo tempo um enorme
combate entre a vontade de descobrir a verdade e a consciência do verdugo. Ao
longo das sessões que se prolongarão entre Maio e Novembro de 1926, desgastado
pela determinação da viúva o “Dente de Ouro” vacila e acaba por fazer
importantes revelações a propósito dos acontecimentos em que tomou parte.
Embora algumas delas já fossem conhecidas, outras houve que vêm a revelar uma
elaborada conspiração preparada muito antes dos trágicos acontecimentos. A
lista das vítimas a abater não só existia como era muito mais extensa, e só não
foi cumprida porque muitos levaram a sério as ameaças de que foram alvo. A
conspiração era maioritariamente de carácter monárquico, apadrinhada por um
jornal lisboeta, por dois importantes capitalistas e por um padre que
contratava os assassinos.
Dos vários nomes referidos pelo “Dente de
Ouro” à viúva de Carlos da Maia nenhum foi importunado. A sociedade portuguesa
estava satisfeita com a sua prestação de justiça e não admitia que factos novos
tivessem a relevância suficiente para reabrir os inquéritos. A cronologia
histórica também não é favorável. As conversas entre a viúva e o assassino do
seu marido começam no mês em que ocorre a revolução que pôs termo à República e
dará origem ao estabelecimento de um regime autoritário de ditadura que irá
durar até aos anos 70.
Nas suas memórias Berta Maia escreveu:
“Não, o Abel Olímpio foi apenas um
instrumento! Ele não foi o criminoso. Infinitamente piores do que ele foram
esses que o aliciaram, que lhe deram dinheiro, que o incitaram à matança e que
o abandonaram num cárcere.
Falo para Deus e para o meu filho que um dia
saberá compreender quanto fiz para esclarecer a razão da morte do meu
sacrificado marido, mas estou certa que muitos corações imaculados de ódio –
que ainda os há, felizmente na nossa terra – saberão sentir a razão de ser
suprema destas páginas que, mais do que um protesto, são um desabafo.”
Talvez por razões de pudor histórico a
“Noite Sangrenta” tem sido sistematicamente evitada ou superficialmente
abordada nos compêndios de História. No entanto o seu estudo revela-se de uma
importância acutilante se quisermos perceber o fim do regime republicano
democrático e a instauração do regime totalitário que se lhe seguiu.
Conspiração monárquica vingativa integrada
por um jornal lisboeta dirigido por um padre suspeito, aristocratas e
capitalistas, ajuste de contas antigas entre elementos republicanos resultante
de combates entre linhas adversárias da própria Maçonaria, a “Noite Sangrenta”
foi antes de mais o último golpe mortal que lançou o descrédito total sobre um
regime que se aproximava a passos largos do seu fim.
Ao pretender representar este trágico
episódio da história portuguesa do princípio do século XX, presta-se justa
homenagem àqueles que foram prematuramente varridos pelos ventos da História,
bem como à coragem de uma mulher que contra tudo lutou para saber quem foram os
mandantes da sua desgraça.
A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
Enquanto o caos vai tomando conta da decoração dos dias vou
tentando aproveitar o tempo, ter espaço para respirar e viajar para dentro de
mim. A situação já não é nova (nunca foi) só que desta vez tenho a
possibilidade do isolamento como um nadador veterano que já não sente tão forte
a necessidade de mergulhar todos os dias no mar. Enquanto nada muda para melhor
e tudo regressa em vagas sucessivas de falta de lógica e de destruição vou-me
aproximando rapidamente do fim de um ciclo, o meu ciclo. E, sinceramente não tenho
medo nenhum nem vontade de voltar atrás. Haveria ainda muito para viver ou
aprender vivendo? Com certeza que sim, mas a viagem está sempre em movimento e
as lições não se apresentam todas da mesma forma nem sequer ao mesmo tempo. A
razão transformou-se num concurso de feira em que vende mais o comerciante que
berrar mais alto. O Conhecimento foi transformado em apenas mais uma bugiganga
que se questiona ou vende como qualquer mercadoria anónima. As referências dissolveram-se, a mediocridade
continua a sua marcha triunfal. Somos seres imperfeitos e muito confortáveis
com a nossa imperfeição. Toda a nossa energia está concentrada nas mais
primárias necessidades e na obsessiva e imediata satisfação do ego. Basicamente
faço parte de uma espécie animal que destrói muito para lá daquilo que
necessita, seja para se alimentar seja para o seu habitat. Uma pertença que não
me dá qualquer motivo de orgulho e que me cansa cada vez mais. Dias houve em que conseguia lidar bem com
isso. Dias houve em que condescendia sempre na esperança de dias diferentes, na
escolha de alternativas. Dias houve em que me remetia ao silêncio ou à
concordância por omissão. Hoje acabou-se essa tolerância. Não quero ver nem
falar com ninguém para lá do estritamente necessário. Tenho livros que cheguem
para passar o tempo, tenho música, tenho filmes. Quando me apagar tudo isto
ficará por aqui na mesma que sempre foi. Pessoas, planeta, animais, plantas,
caos, destruição, reconstrução, esperança, degradação e caos outra vez.
Todos querem saber de si e ninguém quer saber de nada. A
banalidade do mal, a irracionalidade da condição humana que só se consegue
corrigir (ainda que de forma temporária) à força de morte e destruição. Este
movimento permanente de extermínio da espécie sobre si própria que nunca
enfraquece, este asilo de loucos orientados por lógicas absurdas, esta demolição
permanente de se poder viver com qualidade e equilíbrio.
Um índio perdido na noite executa a dança da chuva em frente
a uma fogueira, uma velha de costas curvadas carrega através da neve um molho
de lenha para se poder aquecer, uma criança desenha a figura da mãe a giz no
chão num orfanato para poder dormir ao pé dela. E a corrida de nós todos
contínua, sem parar a caminho de lado nenhum, sem tempo para reflectir, sem
olhos para ver, sem mãos a medir. O caminho desenfreado do ciclo de cada um a
caminho do fim e a ausência de razão num inferno permanente.
Um índio perdido na noite executa a dança da chuva, um homem
isolado escreve desenfreado as insónias que o assombram e depois é Natal, e
depois mete-se o Verão. E vai e volta, vai e volta até ser fim.
Artur
13.
10.
Vi este cenário na
Baixa Pombalina e lembrei-me daquela vez em que pusemos o Pesssoa a cambalear a
caminho de casa a chamar o Ricardo Reis. Devias ter visto. Um gajo de oculinhos
e gabardina coçada aos tombos.
Ou ligo a outra
Estou na Rua onde
fizemos aquele clip com a chuva artificial da mangueira dos bombeiros. O
quartel já não existe. Lembras-te da seca que foi segurar aquela mangueira e
regar o casal de namorados para fazer crer que era chuva?
Às vezes lembram-se,
outras limitam-se a esconder-se naquela expressão
É pá…isso já foi há
tanto tempo…
Cumprimento um bêbado
a caminho de casa, contemplo a árvore de Natal das luzes da cidade sobre o rio,
faço o reconhecimento de novos espaços que nunca conheci apesar de viver nesta
cidade desde que nasci. Volto para casa.
Lembramo-nos todos de
muita coisa, ou de coisa nenhuma, a vontade de voltar a fazer foi ficando cada
vez mais pequena, o tempo encolheu e deixou-nos no seu lugar um sujeito
macambúzio sem expressão, um substituto sonolento e mandrião. Sobram as imagens
e os sons, sobram os ângulos da cidade, sobra tanta coisa e não se consegue
aproveitar nada.
Ponho as imagens a
correr e vou selecionando como um funcionário diligente em frente a uma pilha
de documentos. As paisagens, as caras, os sons, está tudo muito bem mas falta
qualquer coisa. A ideia de documentário a surgir e a afogar-se num mar de gente
adormecida, cabeça caída sobre as redes. Os textos sobrevivem às cinco
primeiras linhas, as imagens têm cinco minutos de atenção. E as cabeças saltam
de imediato para o texto seguinte, para o filme que se segue. Sons e imagens
rodam no teclado como papel higiénico no pendurador. Rasga, limpa, deita fora,
e volta tudo a rolar, rasga, limpa, deita fora. Não há paragens, não há
silêncios, mas apenas um frenesim eterno e inconsequente que não consegue reter
nada. Um míssil disparado que não pára, não regista nem consegue comunicar.
Volto às imagens na
tentativa de construir alguma coisa com elas. Tal como com as palavras. Mas
falta sempre qualquer coisa. Naquele rosto, naquela paisagem, naquele
movimento. Sento-me para trás e não consigo afastar-me, não consigo deixar de
tentar juntar “qualquer coisa em forma de assim”, como dizia o O’Neil.
Não são as imagens que
não têm vida…É a vida que se vai esgotando dentro de mim…
Artur