terça-feira, 24 de outubro de 2023

FRIENDS WILL BE FRIENDS...




 

Se não houvesse espaço para uma pausa tudo seria muito mais difícil de aguentar. De vez em quando fazemos uma. Esquecemos o mundo e a vida por umas horas e juntamo-nos como costumamos fazer há uma vida inteira. Um jantar, um jogo de futebol na televisão e umas garrafas de vinho. As conversas de sempre que nunca se repetem, algumas memórias trocadas, a novidade dos netos para alguns. O nosso pequeno mundo construído em conjunto ao longo de décadas, a nossa bolha onde nada nos pode acontecer enquanto estivermos juntos, cada um vigilante do seu canto na mesma casa. Depois de levantar a mesa e colocar a louça na máquina, depois dos cafés, os sofás da sala e uma garrafa de whisky irlandês para ver o resumo dos golos. Por fim a breve assembleia com um único ponto na ordem de trabalhos: “O que é que vamos ouvir hoje?” E em breves instantes é eleita uma banda, um concerto para a continuidade do serão.

É sempre bom fazer uma pausa e falar um pouco à mesa do jantar com esta família onde todos têm lugar, onde todos se conhecem à exaustão, não havendo por isso, espaço nenhum para surpresas. Uma espécie de lar que fica na casa de cada um quando nos encontramos. Uma breve conversa e um longo silêncio porque não é preciso acrescentar mais nada que não se saiba já. Fica a música e a garrafa de whisky irlandês em cima da mesa, ficamos nós em cima do sofá com os gatos a passear pelos nossos colos como vigilantes do turno da noite a certificar que tudo está a correr bem. E por vezes viajamos dali para uma praia onde fomos adolescentes e corríamos o dia todo como selvagens sem nunca nos cansarmos, do mar para a areia, da areia para o mar, da mata a apanhar paus para uma fogueira, de uma paixão para a outra. Mas sempre nós, tribo antiga e solidária, especialista em pausas, especialistas em horas de alegria e bem estar. Ou continuamos a viajar com o Rock em som de fundo e vamos parar ao recreio da escola, à bicicleta que batia todos os recordes, às motas. Estremeço e regresso ao sofá. A Joana cabeceia o vazio de olhos fechados, depois acorda também. Olhamos um para o outro e sorrimos. O Pedro e a Mariana discutem acerca da utilização do comando da televisão. São onze da noite e parece que já são duas. Conseguimos ainda ouvir mais uma música antes de começarmos a sinfonia do Uber para nos levar a casa. Despedimo-nos uns dos outros entre risota e bocejos. Atiramos datas prováveis para o próximo encontro. Abraços e beijos e vamos indo que temos pressa de nos deitar.

A filha do Pedro um dia perguntou-me se tinha alguma ideia em relação ao segredo da longevidade da nossa amizade. Ao todo seremos uns dez ou quinze que se conhecem desde a adolescência, outros ainda mais atrás. Não foi preciso reflectir muito e a resposta saiu-me no automático :

“Acho que foi tomarmos conta uns dos outros…” respondi.

Se não foi isso que decidimos foi aquilo que fizemos ao longo de uma vida inteira. Não é interesse, não é amor, não é tristeza nem solidão. É algo muito maior que nos fez ter sempre a mão estendida para o outro, a observação distante mas atenta, a disponibilidade, a palavra solidária no tempo necessário. É qualquer coisa enraizada entre a tribo e a família e ao mesmo tempo muito mais antiga que a nossa própria noção de existência. Por vezes não foi suficiente e houve um ou outro que teve que sair mais cedo. Quando a força do exterior foi superior à nossa.

Nascemos numa realidade caótica e difícil de compreender, atravessámos essas terras do caos em quase toda a nossa existência e dificilmente teríamos sobrevivido se não nos tivéssemos uns aos outros . Não conseguimos compreender a morte mas isso pouco importa porque também nunca compreendemos a vida. Sairemos daqui no meio do caos e da destruição tal e qual como entrámos. Não interessa. Cá dentro de mim há algo que me diz que os que foram à frente vão estar à nossa espera para continuarmos o caminho. E também me parece que nesse trajecto não vão faltar concertos de Rock e whisky irlandês.

 

Artur


Imagens de Luis Pereira


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

ENTRETEMPO


 


Tudo tem um tempo, o seu tempo. O tempo de correr e o tempo de gritar, o tempo de ficar quieto e o tempo de calar, de ficar escondido no canto escuro, de subir ao palco e declamar, o tempo de contemplar e o tempo de mergulhar no meio das vagas sem vagar nem espaço para respirar. Tudo tem um tempo e o tempo tem tudo nas suas mãos. A favor do vento, com a maré sorridente ou com falta de tempo na esquina do salto para o outro lado do tempo. As faces do tempo que nunca jogou póquer mas que se sabe vestir de enigmas, atravessar a mesa do jogo com os óculos escuros e a boca contorcida entre o sorriso e o sarcasmo. O tempo, sempre o tempo, o vento que corre apressado, o coelho da Alice sempre atrasado, o carro contra a árvore estampado que terminou o seu tempo. Nos cantos do espaço, no sucesso e no fracasso, apertado em máquinas para o contar, relógio de água, de areia ou sombra da luz solar, o tempo maior que tudo e mais alguma coisa, que não cabe em nenhuma tentativa de o medir porque respira sempre sem parar levando tudo à sua volta a explodir no marco do fim de cada coisa. O tempo entretempo que nos faz percorrer a linha da vida até à morte, sem sinal nem preferências, sem escolhas nem juízos. Apenas tempo no entretempo que dispomos para o conhecer. O tempo de estar e de fugir, o tempo de chorar e de sorrir, sem cor nem cheiro, um tanque cheio que esvazia para voltar a encher. O tempo de começar e o tempo de nada acontecer. E sobre o universo um manto infinito de tempo que não se move…apenas “É” a cada instante.

 

Artur