sábado, 31 de maio de 2008

TROPA DE ELITE


TROPA DE ELITE
José Padilha
Brasil, 2007

Quando o mundo do crime e o da sociedade institucionalizada decidem repartir territórios e definir espaços de actuação abrem-se brechas inevitáveis, perigosas vias de comunicação entre eles. Quando uma sociedade reconhece, ainda que em silêncio, a sua incapacidade de combater a sociedade do crime no seu seio, para além de se tornar num modelo social falhado, transforma-se ela própria numa realidade criminosa. No meio ficam as pessoas com o destino definido sobre os caprichos que a violência, as guerras territoriais dos barões da droga e as regras desse gigantesco mercado determinarem. O carácter das pessoas já não é avaliado pelos valores que defende mas pela forma como consegue reagir em relação à realidade com que se confronta.
O cinema brasileiro é pródigo em fazer passar esta mensagem, tendo começado por uma análise maniqueísta de pendor sociológico dos anos 60/70, evoluiu para uma apresentação desapaixonada e imparcial, onde a simples narração dos factos e a forma como as personagens se movem dentro da realidade, são os objectos exclusivos que interessam filmar. Esse tem sido o seu grande encanto ao longo dos últimos anos, trazendo para o cinema mundial uma visão rapidamente apercebida, que culmina com a atribuição do Urso de ouro do Festival de Berlim deste ano a TROPA DE ELITE.
E TROPA DE ELITE começa nas filmagens de ÔNIBUS 174, um excelente “docudrama” acerca de um sequestro ocorrido no Rio de Janeiro a um autocarro que acabou com a morte do delinquente e de um refém na sua fase conclusiva, após o ataque da Policia Militar. Padilha entrevistou e ouviu 15 policias que conheceu durante a rodagem desse filme e começou a esboçar a ideia para um outro documentário que se viria a transformar numa longa metragem ficcional baseada no dia a dia de um corpo especial de polícia ainda pertencente à PM, o BOPE (Batalhão de Operações Especiais), um agrupamento extremamente restrito a que pertencem cerca de cem homens apenas, conhecido pela sua capa anti- corrupção e pela sua extrema eficácia operacional.
O filme concentra-se em três realidades sociais e na forma como elas interagem entre si: a policia (a corrupta e a parte impoluta do BOPE), a classe média (o mundo universitário e a circulação das drogas no seu seio; a actividade social, através de uma ONG no morro) e o morro, completamente controlado e regido pelos barões da droga, com exército e organização social próprios). Para o BOPE, através do pensamento do capitão Nascimento a guerra está declarada e ocupa ruas e avenidas da cidade. É uma guerra a que ninguém quer dar esse nome, mas que no entanto não se enquadra em mais nenhuma outra definição quando somos confrontados com o quotidiano. A melhor prova da inevitabilidade deste conceito foi dada durante a rodagem do filme. A equipa de filmagens esteve sequestrada quando trabalhava por um grupo de traficantes, tendo sido roubado armas e equipamento. As filmagens estiveram paradas durante duas semanas.
TROPA DE ELITE é este constatar de uma guerra sem fim à vista onde as pessoas rapidamente passam de carrascos a vítimas à velocidade de uma batalha. A policia, mal paga e entregue a si própria não vê grandes motivos de heroísmo na sua conduta. Por isso, ou tenta negociar tréguas ou arrecada uma comissão para manter a cidade em funcionamento. A classe média, além de ser a grande consumidora da oferta da droga, para poder entrar no morro e fazer algum trabalho social, tem de pactuar com os traficantes dado que são eles a única lei lá dentro.
A um ritmo frenético de acontecimentos, tal e qual um filme de guerra, as personagens vão correndo ao sabor do acaso das suas vidas, debaixo do peso de uma realidade a que têm forçosamente que se adaptar. É na forma com vão reagindo que se vai formando a sua história… ou neste caso concreto, a sua lenda. Um excelente filme.
ARTUR

sexta-feira, 30 de maio de 2008

AQUELES QUE (SE) PERDEM

O mais simples dos gestos cinematográficos, fazer, por exemplo, um plano fixo, gravar uma entrevista, filmar uma rua, montar um arquivo, o mais simples desses gestos equivale a colocar em suspenso o mundo. E, no mesmo processo, a pôr em movimento o sentido. O sentido em movimento, é aquele que me lança na perplexidade das escolhas, na procura de pontos de vista, mas é sobretudo aquele que me leva consigo, me põe em movimento consigo e me faz sentir rapidamente que esse lugar do espectador é em si mesmo relativo e que é nessa incertitude essencial que preciso de me apoiar quando estou no cinema.
Ver/não ver; saber/não saber; crer/não crer: são estas oposições que definem e resumem a relação do espectador com o filme, constituindo essencialmente jogos basculantes. Um (ver, saber, crer) não existe sem o outro, seu contrário. Melhor: os dois pólos cruzam-se e trocam as respectivas polaridades. Oscilações. O lugar do espectador está todo contido nessa passagem contrariada. Colocar a questão da sua própria credulidade, para se defender, se queixar, troçar, desafectá-la ou colocá-la numa distância irónica, faz retornar à relação dialéctica, fazendo-a supôr activa, tensa e perigosa. O espectador de cinema não poder deixar de acreditar. O não-iludido, aquele que não se deixa iludir ou que lamenta tê-lo sido não vai ao cinema. Contenta-se em passear a sua cegueira no teatro da vida (?). O outro, o espectador de cinema experimenta o tecido, ou melhor, a tessitura daquilo que para ele faz sentido
Se bem que conhecida, a coisa é negligenciada: aquilo que a experiência da sessão cinematográfica mobiliza no seu espectador é acima de tudo a incertitude: incertitudes perceptivas, cognitivas e afectivas. Esse princípio de hesitação é o princípio da aprendizagem: aquilo que o cinema faz é confrontar o espectador com os seus limites.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

DANTES O TEMPO CORRIA LENTO, MEU

Abençoado o tempo em que não havia tempo mas um lento correr de experiências, um tropel de acontecimentos que nos esmagavam com a sua simples presença. Abençoada a inocência de um beijo demorado na subtileza estática da novidade, que não terminava nunca. Ali se ia deixando ficar como uma balada metálica de amor genuíno. A Esperança escondia-se e corríamos pelo bosque à sua procura indiferentes ao cansaço da pausa reclamada pelos pulmões e aos arranhões dos galhos secos que se resolviam atravessar no meio da correria. Uma tarde consegui encontrá-la, braços estendidos sobre o tronco de uma árvore a esguichar pela boca os excessos da cerveja. “Tavas aí?”, perguntava enquanto observava a blusa meio despida e não me conseguia abstrair da brancura de um seio atrevido que espreitava curioso pendurado sobre a inevitabilidade das leis da Física. “ Que é que queres?”, dizia ela a compor o que lhe restava dos cabelos em desalinho que a desenhavam cada vez mais parecida com uma estátua grega. “ Andava à tua procura.”, balbuciei meio engasgado de respostas. “ Estou aqui. É o que vês. Esperavas o quê? A Vénus de Milo?”
Não esperava nada, aliás como sempre. Nunca esperava nada porque o acto de esperar é extremamente penoso para quem espera. Nunca acontece nada igual àquilo que se deseja, por isso, mais vale não esperar. Mais vale ir esgotando o livro da Vida e do Conhecimento lentamente até não haver mais nada para fazer. Encostado a uma árvore encontrei muito mais coisas depois disso. Garrafas de plástico para reciclar e fingir que contribuo para salvar o planeta condenado que por acaso é aquele onde vivo, guardanapos de papel, preservativos usados, livros antigos, poemas escritos na madeira com canivetes de feira, juras de amor, nomes anónimos de gajos que nunca conheci. Ah, e encontrei também o J. nos bastidores de um concerto de Rock. Estava a ler um papel qualquer que depois me explicou ser o resultado de umas análises. – E então? – perguntei. – Então? Então, tou fodido… Tenho seis meses – e desatou a rir numa gargalhada sentida, honesta, sem rodeios, desatou a rir como se a sinceridade se escrevesse por inteiro naquela noite cheia de luar. – E sabes que mais? – continuou- Tou-me cagando. Não é genial? Estar a prazo depois de já ter visitado todas as capelinhas? Não percebes? É o final perfeito dentro da imperfeição que somos desde que nascemos. – e continuou a rir, acabando por me contagiar. Abracei-o. Meses mais tarde tentámos atirá-lo de uma falésia abaixo em forma de cinza. Alguém disse umas palavras de circunstância e depois virámos a taça ou a caixa metálica ou lá o que era. Estava um dia de vento e chuva e, antes de ir para ali resolvemos virar umas cervejas numa lanchonete à beira da estrada, gerida por uma senhora austera detentora de um peito proeminente. Maior do que o da Esperança. O J. havia de ter apreciado. O gajo que segurava a caixa destapada com as cinzas lá dentro nunca mais se despachava. – Então, pá!? Anda lá com isso! – As cinzas foram –se derramando lentamente para o chão e depois, como nuvem de insectos, esvoaçando aos caprichos da brisa. Por fim, acabou. Olhámos uns para os outros. O capricho do vento resolveu encher-nos a cara a todos de uma máscara acinzentada feita à base das cinzas do J. Gargalhada geral. Desde esse dia nunca mais ninguém se lembrou de correr pela floresta à procura da Esperança. Diz-se que ficou velha muito de repente e que enlouqueceu. Agora parece que deambula todos os dias no meio das árvores a falar sozinha. Às vezes chama por nós. Nós é que já não a conseguimos ouvir.
ARTUR

CHILE A 3 DIMENSÕES




Fotos de Sofia P. Coelho

terça-feira, 13 de maio de 2008



LE JOLI MAI

1968 foi tudo menos um ano vulgar: para além da revolta francesa, a História regista a Primavera de Praga, a ofensiva do Tet na Guerra do Vietname, o endurecimento das operações das forças portuguesas nas colónias africanas - abertamente contestadas nos fóruns políticos e diplomáticos internacionais, na esteira de uma generalizada contestação do regime político e colonial português - o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a queda de Salazar de uma cadeira providencial, o início dos movimentos que haveriam de fazer dos anos 70 uma espiral de revolta armada, terrorista e sanguinária (ETA, Brigas Vermelhas, Fracção do Exército vermelho, etc.). Nada que se coadune com o espírito do "flower power" e o seu apogeu californiano. À distância de 40 anos (le bel âge !), creio que o Maio de 68 constitui o acontecimento mais irónico e paradoxal do século XX: sendo fracturante (termo muito em voga nos nossos dias e cuja génese se situa precisamente em 68) e uma clara ruptura, veio a tornar-se um veneto propiciatório de todos os encontros, já que todos foram convocados: os anónimos lançadores de pedras e construtores de barricadas, de Gaulle e Cohn-Bendit, operários e burgueses, obrigando-os a olharem para si próprios e a tomarem decisões, despertando-lhes o ânimo amodorrado por duas décadas de crescimento económico, inegável bem-estar e uma perspectiva de futuro cinzento, sem rasgo, nem outra ambição senão a de construir e manter eternamente o mesmo estado de nirvana burguês. Em suma: o grande tédio, o imenso vazio.

Alain Glücksman chamou-lhe "revolução filosófica". Ele sabe, concerteza, do que fala. Creio que quer dizer que Maio foi cultural, antes de ser político, exigência de uma outra vida antes da reinvindicação de outro sistema económico e político. Difusa, confusa, evanescente e omnipresente, a herança do Maio de 68 é o símbolo da sua veradeira natureza: a de uma revolução do interior, de uma inversão do vivido, de uma insurreição individual, e não uma epopeia colectiva à maneira do "assalto ao Palácio de Inverno" que muitos, a começar pelos comunistas/estalinistas que tinham acabado de aplaudir vibrantemente o esmagamento da revolta de Praga, desejaram. Pelo contrário, os protagonistas, passada a retórica revolucionária inflamada, nunca quiseram construir uma grande narrativa nacional, ou um mito refundador da nação assente numa nova ordem política directamente inspirada nos totalitarismos e emergente das ruínas da República. A prova disso é que os principais intervenientes do Maio francês, longe de se terem retirado e reconvertido, como pretendem os miseráveis revisionistas de diversos quadrantes ideológicos, continuaram pelo contrário as suas lutas pelas reformas sociais, mentais, económicas e políticas, noutros contextos, institucionais ou não, locais, regionais, europeias, pan-europeias, ou o que quer que seja. Por tudo isso, encaro o "joli Mai" como a grande insurreição democrática do século XX, aquela que abriu todas as portas, messiânica e libertária, criadora de um indivíduo que, sem deixar de o ser, já não está isolado, nem é indiferente, mas consciente e preocupado com o seu destino social e que participa, comunica e intervem. De sujeito passivo da História passou a agente da mesma, cumprindo enfim o ideal do cidadão forjado durante a Revolução que, não por acaso, também foi Francesa.

Assim, a brecha histórica aberta em Maio de 68 nunca se fechou, apesar do prosaísmo pequeno-burguês que a pretende encerrar definitivamente na galeria das curiosidades históricas "com muita piada" enquantou durou mas que, graças a Deus, durou pouco e foi inconsequente. os belos espíritos que hoje o proclamam (exactamente os mesmos que cantam as loas do fim da História e das ideologias) nesse modo corriqueiro e merceeiro, esquecem que é esse lado cultural, político, filosófico, de uma imensa energia criativa que hoje continua a fazer-se sentir. Por vezes, silenciosamente.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Lançamento


No próximo dia 18 de Maio (Domingo), pelas 16:00, a Tertúlia reunir-se-á de novo, na Fábrica Braço de Prata, desta vez para o lançamento do meu pequeno livro "A Machina Circunspecular".
Teremos máquinas, espelhos e seres estranhos.
Apareçam!

sexta-feira, 9 de maio de 2008

MAIO DE 68


Quando exigimos o impossível há sempre duas coisas que acontecem. Primeiro, falhamos o objectivo principal. Segundo, nada fica como dantes. Ainda hoje, 40 anos depois, ninguém consegue explicar de uma forma suficientemente convincente, como é que uma simples reivindicação estudantil se transforma num protesto generalizado, dá origem a uma greve geral e paralisa durante algum tempo todo o aparelho de Estado e respectiva organização económica. Ninguém conseguiu explicar como é que o protesto e a revolta se espalharam rapidamente como um rastilho por toda a sociedade francesa, tendo como protagonistas principais um grupo de ideias até aí marginais, fora dos tratados de sociologia e dos cânones marxistas. E ninguém consegue explicar porque esse foi o seu primeiro encantamento, a primeira grande virtude de tudo o que aconteceu nesse tempo: a surpresa.
Maio de 68 marca de entrada uma ruptura. Ruptura com o poder estabelecido, ruptura com os primados doutrinais, ruptura com a cultura institucional, contra todo o tipo de ordem e hierarquia, em suma, contra todo o tipo de autoridade. Por oposição ao Poder exprimiu-se a Vontade. Vontade de mudar, vontade de não ficar na mesma, etc. À História dos acontecimentos opõe-se a História das ideias, ou do pensamento. As estatísticas de uma Sociologia anónima, impessoal e distorcida de realidade e o Estruturalismo até aí triunfante, sofrem um rude golpe. Maio de 68 anunciou o regresso ao sujeito, ao indivíduo, ao facto e à História.
De um momento para o outro todos reclamam, invadem a rua, protestam, enfrentam as cargas policiais para dizer que era preciso mudar, estimular a imaginação, transformar a pacatez rotineira dos dias. O paraíso vendido até aí numa mágica mercantil e rotineira tinha de acabar. A História a isso obrigava.
Combatia-se todo o tipo de autoritarismo, fosse do lado capitalista, fosse do lado estalinista soviético. O poder era reclamado na rua com as pedras da estrada. Políticos, sindicatos e profissionais dos movimentos sociais em geral, são apanhados desprevenidos e só lhes resta saltar para o comboio dos acontecimentos já em andamento. Marxistas, trotskistas, maoistas e anarquistas, todos fazem ao mesmo tempo parte de uma força que nunca conseguirão enquadrar. A estrutura tradicional da organização, dissolvida por um movimento sem formas precisas, multiforme, maleável, que se vai adaptando ao desenrolar dos acontecimentos emitindo respostas subversivas, está dispersa, estilhaçada em pequenos e múltiplos comités que gerem um espaço político fragmentado.
Deixa de haver poder, oculto ou oficial, porque se produz sozinha, de uma forma brutal, uma ruptura na normalidade da razão, seja ela política, económica ou cultural. Neste aspecto é relevante a tentativa sistemática de, ao longo dos anos minimizar ou anular por completo a significação do que foi o Maio de 68. À esquerda e à direita sucedem-se as inteligências bem falantes empenhadas na sua missão de apagar aquilo que não conseguiram controlar, ou melhor dizendo, aquilo que foi bem sucedido...
A desagregação temporária de todo o tipo de ordem, através de uma revolta espontânea de grupos até aí marginalizados ou simplesmente esquecidos pelo poder instituído, composta por estudantes, artistas e operários, não foi mais do que um fenómeno recorrente nas sociedades, perfeitamente registado nos anais da História, embora ninguém faça questão de o apreender. Quando de repente há milhares de cidadãos nas ruas em protesto, não se trata de uma droga estragada comercializada nos dias anteriores. As sociedades, fruto de uma complicada teia de tensões permanentes, funcionam como panelas de pressão. Se a válvula reguladora não estiver operacional, a pressão acumula e estoira. Maio de 68 foi apenas mais uma explosão, nem a primeira , nem a última. O carácter libertário e utópico dos seus contornos sociopolíticos reforça a sua ideia reparadora da válvula de pressão.
Há no ser humano um carácter de formiga decorrente da sua contingência gregária que o faz pertencer ao carreiro, a uma estrutura de trabalho e produção. Dessa forma evita a solidão aniquilante e conquista a segurança necessária que lhe resgata o sentimento omnipresente de pertença. Mas há também outrotanto no ser humano que o separa desse sentimento. Trata-se da afectividade, o direito ao bem-estar, ao lazer, ao seu corpo, da não aceitação passiva da autoridade que o submete e excluí enquanto agente de vontade, numa palavra, do direito a si próprio. É no equilíbrio frágil entre estas duas dimensões que correm os nossos dias. A submissão à ordem é sempre um estado temporário entre momentos do despertar da consciência.
E em Maio de 68 ela voltou a acordar. Não se inventaram novas ideias nem se concretizou nenhum tipo de pensamento de continuidade do movimento. Primeiro porque a maior parte dessas ideias já existia, embora num contexto reprimido e marginalizado. A partir de Maio de 68 encaixaram-se no discurso oficial para já não voltarem a saír. Os direitos de igualdade entre os sexos, da emancipação das mulheres, dos homosexuais, o amor livre, o aborto, o pensamento ecológico, etc, se hoje são realidades do quotidiano, até aquela altura não o eram. O movimento foi como uma brecha aberta na parede da sociedade que os permitiu atravessá-la para o lado de dentro. Por outro lado o carácter anti-ordem e anti-autoritarismo do movimento, para além de obrigar a França a convocar eleições gerais e a fundar uma nova República, provocou ondas de choque sentidas desde a Primavera de Praga até às comunidades espirituais e do amor livre da Califórnia, passando pelo espírito do 25de Abril no nosso país.
Como é evidente, a Utopia é tudo aquilo que ainda não se conseguiu fazer. Mas que é possível. Maio de 68 cumpriu a sua vocação utópica na medida em que forçou uma série de acontecimentos, e instituiu novas formas de existência. Não há um pensamento tipo Maio de 68 pela simples razão que ele se extinguiu em si próprio. Como é próprio de todos os movimentos utópicos. O que os seus protagonistas vieram a fazer no futuro ou aquilo em que se transformaram já não é da sua responsabilidade. A Utopia cumpriu a sua missão. Ou, nas palavras de Edgar Morin: " Sabemos agora que a razão, se fôr razoável, deve admitir que não pode racionalizar tudo: a razão deve pôr em causa a razão ( Adorno já o tinha feito nesse belíssimo texto intitulado "Autodestruição da Razão")... Creio que aquilo que aconteceu em Maio de 68 tem um valor significativo muito forte. Vivemos numa sociedade sem capacidade de se regenerar nem política nem culturalmente. As forças de regeneração nascidas em Maio, acabaram por degenerar. E a degenerescência dessas forças vai abrindo espaço àquilo que fazia parte do passado...até à próxima explosão."
ARTUR