quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

ESTILO TRANSCENDENTAL

 


Com “Transcendental Style In Film: Ozu, Bresson, Dreyer” (publicado pela primeira vez em 1972), constituiu Paul Schrader uma poderosa ferramenta de análise conceptual que joga com os conceitos de “transcendental” e de “estilo”, unificando-os num terceiro conceito, designado como “estilo transcendental” que forma o fecho de abóbada de uma teoria que progride dialeticamente. De facto, o autor apresenta uma reflexão que divide em fases concatenadas e sucessivas (o quotidiano, a disparidade e a “stasis”[1]) formando um movimento estético que se desloca dos “meios abundantes” para os “meios escassos”. Esta terminologia é atribuída ao filósofo católico Jacques Maritain, citado por Schrader (Schrader, 1972, p. 154). Maritain afirmara que os meios abundantes se preocupam com o carácter prático do mundo profano, enquanto os meios escassos “estão menos sobrecarregados pela matéria...porque...são meios escassos pela virtude do espírito (Schrader, 1972, p. 154). Para Schrader (1972, p. 157-159), os meios abundantes que refere em termos cinematográficos ao “realismo inerente ao cinema”, pertencem às suas propriedades imitativas, representacionais e experienciais. Nessa perspectiva, tal inclui a expressividade dos dispositivos narrativos geralmente empregues em filmes de estilo classicamente talhado para manter os espectadores interessados e empaticamente comprometidos. Assim, em oposição total, os meios escassos referem-se a uma estética austera e despojada, desprovida de tais dispositivos narrativos de cativação do espectador. Na sua forma extrema, os meios escassos transformam-se em “stasis”; o movimento dos meios abundantes para os meios escassos inicia-se através de um esvaziamento do simbolismo e de técnicas de distanciação, resultando esta estilização numa transformação profunda na natureza abundante do cinema.
É esta grelha de análise que Schrader aplica à obra de Yasujiro Ozu, Robert Bresson e, em menor grau, à de Carl Th. Dreyer, cineastas que, em distintas regiões geográficas e em diferentes contextos culturais, desenvolveram uma forma cinematográfica comum, determinada por um fim singular: expressar artisticamente o Transcendente, bem como a própria natureza do medium cinematográfico. Ou seja, esses cineastas utilizam meios temporais precisos – ângulos de câmara, diálogos, montagem, etc – a fim de expressarem fins transcendentais.
Na “Introdução” à edição de 1972, Schrader reconhece explícita e implicitamente a dificuldade que a teoria cinematográfica enfrenta ao operar com o conceito de “transcendente”, tal a vastidão de significados que abrange e a imprecisão que comporta, já para não falar do carácter não-funcional do conceito. De resto, “estilo” é igualmente problemático, já que pode abranger todas as particularidades formais. No entanto, reconhece também que o terceiro conceito (“estilo transcendental”) é uma poderosa ferramenta crítica, indispensável no que concerne à obra dos três cineastas. De facto, não só considera que tal conceito é indispensável à compreensão total da obra desses autores, como afirma que saber o que significa “transcendental” e “estilo” é compreender o método crítico através do qual é possível analisar o estilo específico que configura e determina os filmes por eles dirigidos. Chega-se assim a uma fórmula que define “estilo transcendental”: uma forma geral de representação cinematográfica que expressa o transcendental. O método crítico assenta assim em duas premissas básicas: existem fenómenos hierofanicos [2] que são as expressões do transcendente na sociedade e existem formas de representação artística comuns, partilhadas por culturas diferentes. O estilo transcendental é cada uma delas e ambas em conjunto. A teoria geral que resulta da configuração e desenvolvimentos das duas instâncias é expressa por Schrader desta forma:
“O estudo do estilo transcendental revela uma forma universal de representação. Essa forma é notavelmente unificada: a expressão comum do Transcendente no cinema. As diferenças entre os filmes de Ozu, Bresson e Dreyer são culturais e pessoais; as similitudes são estilísticas, e representam uma reflexão unficada do Transcendente no cinema.”
 
[1] Schrader emprega o termo grego “stasis” no sentido de um equilíbrio entre diversas forças que conduz a uma situação estática.
[2] Muito daquilo que Schrader entende por hierofania sustenta-se na formulação  de Mircea Eliade, segundo a qual a hierofania demonstra como o transcendente se pode manifestar num objecto e ser reconhecido nesse objecto “como algo completamente diferente do profano” (Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano”, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p, 25). De resto, e indo ao encontro do pensamento de Schrader, Eliade afirma nessa obra: “A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cómodo, porque não implica qualquer precisão complementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimilógico a saber, que algo de sagrado se nos mostra”.
Substancialmente, o estilo transcendental, exemplificado no Oriente pela obra de Yasujiro Ozu e no Ocidente pelas de Robert Bresson e Carl Dreyer, procura maximizar o mistério da existência, rejeitando todas as representações convencionais da realidade: realismo, naturalismo, psicologismo, romantismo, expressionismo, impressionismo e, sobretudo, racionalismo. Nas próprias palavras de Schrader: “Para o artista transcendental o racionalismo é apenas um dos muitos modos de abordagem da vida, não um imperativo (Schrader, 1972, p. 42).
É importante sublinhar que ao longo do ensaio Schrader contrasta permanentemente o estilo transcendental dos cineastas estudados com outras formas de expressão artística: os filmes de Ozu são comparados com as artes Zen da pintura, jardinagem e “haiku”; os de Bresson com a iconografia bizantina e os de Dreyer com a arquitectura gótica, o que demonstra a determinação do autor de situar o seu conceito de estilo transcendental no seio de teorias estéticas anteriormente existentes (no que diz respeito às artes) e em doutrinas teológicas (no que diz respeito à meditação sobre o sagrado).
Sumariamente descritas a profundidade e riqueza das teses expostas no ensaio, interessa-nos agora referir uma importante metamorfose do texto, introduzida na segunda edição datada de 1998. Schrader incluiu nessa segunda edição um capítulo intitulado “Rethinking Transcendental Style”, no qual explica novamente o “método crítico” que criou e determina a sua evolução nos 26 anos que decorreram entre as duas edições: O influxo da obra de Andrei Tarkovski e do pensamento de Gilles Deleuze. Numa das secções deste novo capítulo, justamente intitulada “Enter Deleuze” (1998, p. 3-6), Schrader sublinha a capital importância das obras “Cinéma I – L’Image-Mouvement” e “Cinéma II – L’Image-Temps” [1], especialmente desta última, na comprensão da evolução do cinema no pós II Guerra Mundial, ou do desejo criativo de associar imagens no tempo e o modo como essa associação pretende comunicar com o inconsciente e a consequente relação com memórias, sonhos e fantasias. O principal impacto de pensamento de Deleuze na teorização de Schrader consubstancia-se no conceito de “duração” invocando o “Outro” sagrado. Se em “Transcendental Style” Schrader se pronuncia sobre as mensagens evocadas pelo estilo (transcendental), Deleuze acrescenta a explicação sobre o modo como tudo se processa.
Quanto a Tarkovski, Schrader considera que , tal como Deleuze, o cineasta procurou incorporar a mudança de paradigma  introduzida pela evolução do uso do tempo no cinema (e a consequente estilização desse uso). Em conjunto, a obra do filósofo e os filmes do cineasta sociético estão no centro de um novo paradigma cinematográfico que se expande em múltiplas direcções e confere novos significados aos conceitos de “transcendental”e “estilo” e ao conceito unificador de “estilo transcendental”.
Para finalizar, deixamos um desafio aos leitores da obra, sob a forma de uma pergunta para a qual cada um encontrará a sua resposta: o que é que se torna pertinente para uma compreensão secularizada do “estilo transcendental” quando o conceito de “hierofania” ainda puder ser aplicado a objectos depois de todas as conotações religiosas terem sido removidas?


 
Arnaldo Mesquita
 

Texto originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

HÁ MAR

 


Vigésimo sétimo e oitavo dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte. O cheiro das brasas por ser, o mar no seu lugar, o cão à espera, e as ondas a cantar de mansinho. Não há mastros ao longe, estão perto, a interpor-se com o horizonte coberto de nuvens. Um homem ouve os relatos de vários futebóis e eu controlo a audição, e a irritação, debaixo do cachecol. Sei que o silêncio incomoda a uns e os relatos da bola a outros. Um bando de gaivotas partilha a carcaça dum peixe e seguem em fila em direção a outra probabilidade marinha. A última está coxa, mas a voar é a primeira. Imagino que o golpe de asa compense o manquejar. Pouco a pouco chega mais gente, e a esplanada vazia vai-se enchendo. É domingo e sente-se no ar. Pago e parto, em direção à Vila com um urso-lobo na bagageira. Treinamos uns passos pelos passeios do dia, mas ainda não é altura de o fazer. Mesmo com acepipes na algibeira ele arranca com força e as minhas costas dão sinal. Volto aos treinos no meio do campo e nos caminhos vazios. Metros que se fazem quilómetros entre árvores e pequenas encostas. As galinhas respeitam a distância e evitam a horta por já saberem que ele não deixa. Se arriscarem treinarão novo voo a pique até à capoeira com uma rasante sobre a minha cabeça.
Volta e meia recebo telefonemas de amigos que me conhecem menos e me perguntam com alguns rodeios se me sinto só. Os amigos que me conhecem mais já sabem que estou a curtir como uma menina todas as brincadeiras deste natal e que o ano inteiro me trouxe. Continuo a pensar em voz alta como quem fala sózinha. Abraço árvores,cães, e gente com pouco contacto humano, como a minha vizinha de noventa e quatro anos que me diz todos os dias que tem medo de morrer. Digo-lhe de volta que temos todos e quem disser o contrário mente. De manhã ouço as notícias no pequeno rádio de pilhas,faço projetos para o dia todo, e cumpro metade. A chuva e o tempo pouco agradável não me deixam fazer sem ficar encharcada. Por isso mantenho-me a seco e vou pintando a manta, madeiras, telas e chão. Algumas paredes, com a ajuda do desumidificador.
Hoje voltou a ser segunda e tudo passou num ápice. Cheguei há dois meses e parece que foi ontem. Melancolia zero numa ilha que dizem com pouca alegria dado o estado climático deste início de inverno. Parece que faz sol aí, sei que neva, sei que é verão. Escrevo para quem me lê, para ti que tens saudades da minha presença, para ti de quem tenho mais do que saudades. Há uma dorzinha que se instala como uma pequena farpa quando penso neste assunto e que me impele a fazer mais e melhor. Faz frio e as meias de lã aquecem-me os pés. Todos os dias se esburacam, todos os dias as remendo. O olhar cor de canela sobrepõe-se ao teu enquanto uma pata me puxa para o meio do pomar. As estrelas envergonhadas iluminam por entre as nuvens e a lua faz crescer as nossas sombras. Sobre os teus passos caminham os meus, de meias rotas e botas de biqueira escancarada, a rir à gargalhada desta noite mansa que nos outros é desassossegada. O tempo tornou-se um mil folhas intemporal e a distância mora aqui ao lado. Falamos de janela para janela, debruçados sobre o atlântico e o mediterrâneo,a gritar pregões e promessas em língua de marejar. Há mar.
 
 
Elsa Bettencourt

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

UMA RÁDIO CHAMADA CHAN DÔ

 


A ideia original tinha sido do "El P" numa noite de imperiais e bifanas. Uma ideia que pegou de imediato ampliando ondas de entusiasmo e euforia. Porque é que não poderíamos fazer uma rádio pirata lá no bairro? Cada um para seu lado começou a contabilizar recursos, ideias, e em pouco tempo havia um projecto sólido e bem estruturado. Nos anos 80 as rádios piratas saltavam do chão como cogumelos e sobre esse assunto nós tínhamos uma palavra a dizer. O sotão/águas furtadas do "Pickles" passava de sala de  jogos de cartas e cervejas para estúdio rapidamente decorado com caixas de ovos e cortiça para isolar. Os equipamentos foram aparecendo à medida que o sistema de som de alguns dos nossos pais sofreram desvios. Havia amplificadores, microfone, auscultadores e, mais adiante uma mesa de mistura e uma antena adquiridas no comércio do Casal Ventoso a um preço adequado. No segundo ano de Engenharia  o Tonho acertava cabos e ligações com uma grade de minis ao lado e nunca falhava. E mais ou menos nos finais de Janeiro daquele ano (julgo que 84) a Rádio Chan Dô fazia a sua primeira emissão experimental com faixas do Sgt. Peppers dos Beatles e The Dark Side of The Moon dos Pink Floyd. Sem locução, apenas para afinar a qualidade do sinal. O Snoopy andava no carro com a namorada em tentativas de sintonia.

 

 Está fraco, ouve-se muito mal.

 

Enquanto em cima do telhado alguém dançava um tango acidentado de equilíbrio com a antena…

Na semana seguinte já se conseguia ouvir em toda a Av. Infante Santo mas perdia-se a partir do rio. Em Monsanto estava ótimo. E assim, duas vezes por semana entre as 22 e as 00 horas a Rádio Chan Dô estava no ar. Foi um tempo extraordinário de aventura e descoberta que entusiasmou a malta. Gostávamos de música e de festas animadas e ali podíamos colocar aquilo que era raro ouvir nas rádios oficiais. Eu e o Figueredo fazíamos as "Horas do Rock" onde misturávamos consagrados com os novos projectos do Rock português que na altura dava os primeiros passos. Os pais do "Pickles" eram extraordinariamente colaborantes com uma paciência ilimitada para nos aturar. A antena passou a ficar arrumada durante o dia na dispensa entre as compotas e os enlatados. O pai gostava de se aproximar de nós sorrateiro, pendurado num eterno cigarro, ora para avaliar a mão das cartas de alguém ora para perceber qual era a música que tocava naquela noite. A Carolina estudava piano e violino desde a escola primária e acedeu a dar-nos uma mãozinha nos clássicos para não dizerem que só passávamos berraria, tambores e electricidade. Nessa noite tocou-me a mim por a antena lá fora. A emissão arrancou sem apresentações e em breves instantes ficámos parados suspensos no que estávamos a ouvir. O "Quebra Nozes" de Tchaikovsky. Sentei-me no telhado perto da janela. Do lado de dentro, o Figueiredo contemplava o rio e as luzes da ponte lá ao fundo enquanto ia fumando o seu charro tranquilo. O pai do "Pickles" apareceu por trás dele e ficou também contagiado com a música. O Figueiredo estava tão longe que sem se virar estendeu a ganza para trás pensando que se tratava de algum de nós. O pai do "Pickles" continuou a fumar o seu SG e disse baixinho:

 

Então tu não sabes que eu não fumo sputnyks ?

 

E podia ter havido debate naquele instante, desenvolvimentos, desculpas, justificações, reprimendas. Mas não. Tudo continuou em silêncio ao sabor do clássico e não se falou mais nisso nem em sputnyks nem em nada.

Aos poucos o bairro começava a falar na Rádio Chan Dô. Havia todo o tipo de opiniões. A questão mais abordada era a da origem do emissor. Todos falavam na rádio menos nós. Para todos os efeitos era ilegal e se nos apanhassem era confisco do material e multa garantida. Ainda para mais houve um dia que entrámos inadvertidamente na frequência dos bombeiros o que deu logo razão de alarido acerca dos inconscientes que punham em causa a segurança da população e outras barbaridades afins. Normalmente eram duas horas seguidas de música sem interrupções nem conversa tirando aquela vez que o Rodrigo inventou uma entrevista ao Fernando Pessoa e fazia as duas vozes. Nela o poeta queixava-se do estacionamento em cima dos passeios e da sujidade das ruas. Um programa que pôs novamente o bairro à conversa sobre a rádio.

 

Fernando Pessoa? Então mas esse gajo não morreu há uma data de anos?

Morreu mas a casa dele era ali na Rua Coelho da Rocha…E quanto à limpeza das ruas o homem não deixa de ter razão…

 

E os programas continuaram. Com a Blitz seguíamos o calendário dos concertos, no Rock em Stock registávamos as novidades, com gravadores de bolso tentámos captar um ou outro espectáculo mais clandestino se bem a qualidade do som fez-nos desistir da ideia rapidamente. Para muitos foi o primeiro contacto com uma quantidade de estilos e  tipos de música. Os discos do pai do "El P" introduziram-nos ao Jazz do Miles Davis e do Chet Baker, com a informação da Carolina fomos aprendendo  a distinguir épocas e estilos dos clássicos. Com o Rock libertávamos a imaginação e a energia acumulada pelas hormonas.

No início de Março recebi a convocatória para a tropa, a namorada do Snoopy ficou grávida e eles tiveram que ir morar para um sítio entre Queluz e Sintra, a Carolina foi continuar os estudos dela para fora. Aos poucos a voz da Rádio Chan Dô foi perdendo o volume até que deixou de existir já em plena Primavera. No entanto, para aqueles que estiveram envolvidos no projecto foram horas extraordinárias de paz e harmonia em comunhão com o bairro. Nunca ninguém soube onde era o emissor.

O Figueredo tornou-se produtor no ramo da música e a Carolina andou pelo mundo, profissionalizou-se e, da última vez que soube dela era  solista na orquestra da Gulbenkian.

Mais do que as ideias, os projectos uniam as pessoas e uma das maiores lições daquele tempo foi que por mais diferentes que possamos ser há sempre uma via para conseguir ouvir e compreender o outro. Assim haja tempo e disponibilidade.

Naqueles três meses julgo que fomos felizes.

 

Artur


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

DIÁRIO(S)

 

Vigésimo segundo dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte. Nada será como dantes nem se voltarmos a ontem. Todas as decisões que tomamos, se deparadas com a possibilidade de voltar atrás, nunca serão idênticas.
O caminho é sempre em frente, mesmo com regressos extemporâneos e sem bilhetes de volta marcados.
O jardim por acontecer está povoado de memórias. Ainda existem os galhos altos onde a menina mais pequena se refugiava, assim como os troncos marcados a canivete pela menina do meio. A menina maior já não precisa de lanterna nas noites de lua nova. As outras deixaram-lhe o caminho traçado sem fios nem migalhas que os pássaros possam esconder. Há pegadas que seguem o desígnio na terra vermelha.
De vez em quando, no intervalo da chuva, há uma borboleta branca a bater as asas para
secá-las. Ela agarra nela e leva-a para o departamento de veraneio onde as plantas se enraizam, ciente da existência efémera da criatura alada. Outras vezes há o gato que lhe mia um pedido de socorro, por se ter aventurado para longe de casa. Num instante é levado de volta à origem, sem grandes alaridos. Nada será como dantes e tudo poderá ser melhor, mesmo que não pareça. Ontem descobrimos que as festas que as pessoas não fazem umas nas outras são compensadas no lobo-urso que nos encontrou. “ posso tocar nele?””ele faz mal?”, são interrogações que caem por terra antes que eu responda. O olhar doce dele é a própria resposta. Torna-se uma festa quando há consciência (da necessidade) do toque, e quando o retorno acontece.
Um xaile quente envolve a caminhada, uma oração pelas partidas deste ano, uma prece pelas chegadas. Tudo se cumpre.
Elsa Bettencourt. Hoje.

BEM VINDA ELSA

 Caros amigos e leitores,


Vamos dar as boas vindas à Elsa, a última aquisição deste blog. Amiga de longa data, contadora de histórias, desenhadora de palavras, encantadora de sensações. O seu toque feminino, a sua veia açoreana bem como o seu espírito andarilho vão trazer-nos textos de grande qualidade que nos irão alegrar os dias.

Bem vinda Elsa.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

DO TEMPO E DOS LIVROS

 

Com o tempo a nossa relação com as coisas em geral vai mudando. Aquilo que somos é aquilo que seremos sempre, a única coisa que muda é a intensidade. Quando éramos novos as discussões de café normalmente terminavam á porta do Verbo, isto é, após a sagrada pergunta: "Onde é que foste buscar essa ideia?" a resposta certa era "vinha publicado no jornal" ou ainda "li no livro tal". A partir desta fase da conversa mandava-se vir mais um café e mudava-se de assunto. Os livros sempre foram objectos multifuncionais muito para além da simples leitura. Lembro-me de usar os livros da biblioteca do meu avô e de os posicionar alinhados na carpete da sala para construir pistas de carrinhos antes de desenvolver animadas corridas de Grande Prémio; lembro-me de usar um livro velho para calço da perna curta de uma mesa da cozinha. Os livros andaram sempre connosco de uma maneira ou de outra, ora como janelas de fuga e evasão, ora como amigos, ora como sombras chatas antes dos exames. Entre mim e os meus amigos desenvolveu-se um hábito aceite por todos. Roubávamos livros uns aos outros. Às escondidas ou à vista desarmada, o certo é que os livros viajavam de um lado para o outro sem que ninguém se importasse com isso. De um dizia-se " Este tem a casa cheia de buracos…todos os livros que lá entram, desaparecem.". Outra frase instituída a propósito das viagens dos livros era  a que se referia ao otário do dono. "Fulano tinha este livro , mas deixou de o ter e ainda não sabe". É claro que a livre circulação do conhecimento nunca deixou ninguém pendurado num exame nem contribuiu de modo nenhum para nos azedar a vida. Para isso havia o nosso clube a perder ao Domingo à tarde, as gajas e os ácidos da Damaia que como toda a gente sabe vendem viagens só de ida. E quem dizia livros, dizia discos. A cultura e a arte circulavam entre nós sob um manto de alguma marginalidade havendo mesmo dias em que perdíamos completamente o paradeiro da obra. Aí já pouco haveria a fazer a não ser declarar a perda irremediável de mais uma aquisição, mais um membro da família que partia. Com o tempo a relação com os livros, tal como todas as outras relações, foi mudando, desacelerou, essencializou-se. Hoje olhamos para a estante e percebemos que já não vamos conseguir ler metade daquilo que está nas prateleiras até morrer. Depois olhamos para os nossos filhos que sem o dizer vão já avisando que todo aquele entulho de papel terá a porta da rua como destino visto que só ocupa espaço, ganha pó, não é vegan e tudo o que informa pode ser obtido num computador. Não discuto. Não por entender que têm razão ou deixam de ter mas porque é inútil trocar tempos tão diferentes no que toca à forma como chegamos ao conhecimento.

Nas limpezas vamos encontrando relíquias que pareciam para sempre desaparecidas. Vinis cheios de pó, K7s,CD's e claro, livros. Continuamos a falar uns com os outros só que agora ninguém rouba livros aos amigos. Antes os oferecemos. "Já li e não vou voltar a ler"; "aquele livro que te emprestei e que nunca mais devolveste? Fica com ele".

Torna-se lastro inútil que é preciso ir despachando seja para ganhar espaço seja porque não tem mais nenhuma utilidade. Num país tão pequeno como o nosso é espantoso o volume e a qualidade da nossa produção cultural, a qualidade dos nossos romancistas, poetas, realizadores, dramaturgos, etc. A criação cultural é talvez a mais generosa das actividades humanas especialmente num país tão pequeno como este, dirigido por gente tão pequena e tão bimba como esta. Aos criadores ninguém lhes pediu nada, ninguém sabe que criam nem quer saber se apesar de criarem conseguem sobreviver. Um país que apesar de tudo faz questão em se manter vivo em deixar obra, em deixar testemunho de qualidade para as gerações seguintes que vão encontrar nisso o alívio da estupidez dos dias que a que forçosamente estarão condenados como nós estivemos. Antero de Quental, Jaime Batalha Reis, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Raul Brandão Virgílio Ferreira, Luis de Sttau Monteiro, Miguel Rovisco e tantos, tantos mais. Criaturas solitárias e anónimas perdidas na solidão dos seus mundos enquanto vivos que apesar de tudo fizeram questão de nos deixar o seu trabalho, a sua criação, alvos de homenagens e fanfarras depois de mortos. A única criação cultural que interessa é esta. O brinquedo ignorado, o nosso clube derrotado, o amor não correspondido para o reconhecimento tardio. A criação cultural é isto. Um tremendo despojo do ego que mantém viva uma linha que pensa, que entretém, que fascina, para que não nos esqueçamos. Somos um somatório de dias sem história mas somos também muito mais coisas. Somos um pensar colectivo que insiste em manter-se de pé, somos uma tradição de épocas que dependem umas das outras, somos uma identidade que não morre. Os livros que queremos possuír, como as pessoas que amamos, acabam por chegar a um ponto em que percebemos que só conseguem pertencer a si próprios, naquilo que significam, naquilo que ensinam…naquilo que fascinam. E assim as ideias voam, as histórias encantam, dão vida a outras histórias e, teimosamente, vivem em toda a parte.

 

Artur




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O CHUVEIRO E A ESCADA






                                                                      Sofia
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

EDUARDO LOURENÇO


 

 

                                                                           1923 - 2020