quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A DISSOLUÇÃO DA PERFEIÇÃO



No seu universo esteticamente perfeito e equilibrado, Nandinho acreditaria quase até aos dez anos no Pai Natal e na cegonha que traz os bébés de Paris.

No Pai Natal, porque todos os natais recebia presentes que se materializavam na chaminé da cozinha, segundo os seus pais, trazidos pelo generoso velhinho de longas barbas brancas, que gostava de crianças e assim as recompensava por terem sido boas ao longo do ano – para além das prendas recebidas, o implícito e inegável reconhecimento do bom serviço prestado pelo pequeno! E depois, as prendas estavam lá, não estavam? Prova aceite.
Na cegonha dos bébés, porque sempre lhe tinham dito que era assim que os bébés eram trazidos aos pais. Além disso, quando a irmã nasceu na mesma clínica onde ele tinha nascido, e o levaram a vê-la pela primeira vez, lá estava num lugar de destaque do hall de entrada, uma estátua em tamanho gigante de uma cegonha com uma fralda no bico e um bébé pendurado na dita, tudo isto em sinal de homenagem - prova aceite.

Uma pura ingenuidade infantil - por pouco adolescente - que o fazia viver num universo mágico de fantasia, ilusoriamente fácil.

Mas era um universo como todos, em evolução, revolução e mutação, à medida que foi descobrindo as cruas verdades da vida.

A fenda que iniciou o esboroar desta percepção perfeita, superprotegida, foi o seu primeiro contacto aos quatro anos com a morte de alguém muito próximo. O seu grande amigo Reis tinha ido de repente para um lugar incompreensível. Um lugar onde lhe diziam que ele estava bem mas de onde não podia regressar. Toda a gente gostava do Reis e ele não tinha feito mal nenhum a ninguém, era o seu melhor amigo, companheiro protector de aventuras diárias. Os pais e a Nênê adoravam-no e ele tinha-se ido embora para um sítio de onde não podia voltar, mesmo que quisesse?! Então porque é que ele tinha ido para lá? Depois, os pais ainda lhe tinham dito para não perguntar à Nênê pelo Reis, porque assim ela ficava ainda mais triste. Mas o Reis já não gostava dele nem da Nênê? Coisa estranha e dolorosa que iria permanecer por algum tempo na sua prateleira mental dos assuntos pendentes.

Até entender a morte. Até começar a perceber que a vida não era só alegria e um torpor de sedosa suavidade.

O contacto com as outras vertentes da vida, fá-lo-iam valorizar todas as coisas que tinha tido como inquestionavelmente certas.

Ele não viveria para sempre e as pessoas de quem gostava também não.
O Pai Natal não existia.
Os bébés não eram trazidos de Paris pelas cegonhas.
Há muitas coisas que não fazem qualquer sentido. Completamente incompreensíveis.
As pessoas podiam errar sem querer, propositadamente, ou por convicção.

Ele também.

O conforto material não era acessível a todos.
Aquilo que é certo para uns, não o é para outros.
Muitos não aceitam essas diferenças, a ponto de matar.
Poderiam ser diferenças culturais, políticas, étnicas, religiosas, racistas, desportivas, de opção de orientação sexual, e muitas mais numa listagem interminável.
Diferenças sem fim, que em vez de tornarem o mundo mais diversificado, mais colorido e interessante, abriam valas e erguiam muros entre pessoas, entre povos, muitas vezes por motivos extraordinariamente fúteis, sem importância, ou por outros igualmente incompreensíveis como a ganância, a arrogância, a soberba, o desejo de domínio sobre tudo e de todos sem olhar a meios.

As diferenças, quando não se sabem respeitar, tolerar, aceitar em coexistência, têm um potencial ilimitado para escravizar os mais fracos ou acabar com aquilo que se tem de mais valioso quando se nasce e enquanto por cá se anda, cada qual no seu Universo.

A preciosa Vida.

Hélder


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

AVISO

Vamos já avisando que este blog não passa facturas (ou serão faturas ?) e que os senhores fiscais escusam de se postar à nossa porta catando faltosos, relapsos, corrécios e outras espécies de contribuintes que, faltando ao dever de pedir o dito papelucho, tanto têm contribuído para que o Professor Doutor Vítor Gaspar se engane nas suas previsões e não consiga (pela terceira vez consecutiva) cumprir as metas do défice, errado nas previsões de queda do PIB (pela terceira vez consecutiva), do número de desempregados, de arrecadação de receita fiscal e outras minudências que só dizem respeito aos papalvos que o continuam a aturar (até quando ?).

FINS DE SEMANA EM FAMÍLIA - ANOS 60


Eram doces os dias daquele puto afortunado, e ainda mais os fins-de-semana em família com os pais e com o casal idoso que tomava conta dele durante a semana, aproveitando assim de uma penada todos os que mais lhe importavam.

Almoços de domingo numa Sintra calma e tranquila da segunda metade dos anos sessenta, ainda não adulterada por atentados arquitectónicos, nem sobrepovoada. Um recanto pitoresco, reservado a uns quantos privilegiados pelo doce bafo das queijadas, dos travesseiros e das circunstâncias da vida.

Havia idas estivais à Praia das Maçãs no embalo mágico de um comboio que na linha iniciada em Sintra, se punha a correr em carris que seguiam sinuosamente lado a lado com os carros, e nalguns pontos atrevidamente atravessavam a estrada, rompendo por uma paisagem de encanto, enquanto o “carocha” do pai ficava a folgar no estacionamento.

Noutros domingos, era a travessia de um deserto de campo aberto e vegetação rasteira entre o Cacém e Paço de Arcos ou Carcavelos, recompensada pela chegada a praias plenas de ar a mar, algas frescas e pequenas poças por entre as rochas deixadas pela maré baixa, carregadas de brindes – conchas, pequenos peixes e caranguejos.

Podiam ser tardes passadas no jardim de Queluz onde no seu triciclo de motor eléctrico oferecido pelo padrinho, procurava percorrer todas as possibilidades dos percursos na terra batida, antes que as pilhas acabassem.

Havia cinema em tardes passadas a ver o único canal de televisão, e a aproveitar a reposição das “novidades” do Ribeirinho, de Leitão de Barros ou dos filmes do Sabu, Tarzan e companhia.

Ás vezes, menos frequentes, eram as viagens de meio dia de duração até chegar ás Caldas da Rainha onde visitava a família materna, ou ainda mais raras e homéricas até à “antípoda” aldeia da família paterna, perdida nas serras de Proença-a-Nova.

De vez em quando, lá calhavam visitas ao Jardim Zoológico de Lisboa. No entanto, muito estranhavam os pais quando ao perguntarem-lhe se preferia ir ver a bicharada ou os aviões, prontamente trocava uma tarde de macacada, leões e elefantes, por contemplações infindas a partir das colinas no topo sul da pista do aeroporto de Lisboa, dos aviões a chegar e a partir não sabia para onde.

Fascinado por aquelas partidas para o desconhecido, mas por onde iam os pássaros, teve ali uma centelha aos três anos, daquilo que o atrairia mais tarde como modo de vida.

Voar.


Hélder

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

UNIVERSO COLAPSANTE



Na rua os cabelos e barbas estavam a crescer, reflexo de um misto de cultura “ye-ye” e de um simbolismo contestatário do sistema.

Lá por fora, uma revolução estudantil e um enorme evento musical enlameado, tinham ecos agitadores nas mentes mais esclarecidas e com maior acesso à informação.

Aos poucos ia-se sentindo uma baforada mais fresca, primaveril, que se prestava dentro de alguns anos a arejar o mofo de décadas de uma sociedade arrebanhada.

Naquele final dos anos 60, as saias usadas pelas jovens estavam a ficar com falta de tecido, talvez pelo uso excessivo dele pelas mais velhas, talvez por causa de uma irreverente Mary Quant.

Algures queimavam-se soutiens.

Vozes mais destemidas tentavam em surdina, um pigarreio que lhes permitisse exprimir de maneira mais clara o desacordo por um sistema e por uma guerra que levava aqueles que estavam na primeira linha da vida para abrir caminho a um futuro que se desejava melhor. Uma geração mais preparada, mais instruída do que as anteriores, lançada para selvas devoradoras de homens e almas. Isso e outras coisas que não se podiam questionar. As tais coisas sagradas pelas quais se cometem as maiores atrocidades: Deus, Pátria, Família, sendo que a sobrevivência da última era dada como motivo asfixiante para alimentar os das outras duas.

De vez em quando ouvia-se o lamento sumido de alguém que recebia um estropiado, um enlouquecido, uma morte. Nos Estados Unidos era a guerra do Vietname. Portugal tinha várias versões do seu Vietname na Guiné, Angola e Moçambique, que de tão insanamente reais para os que lá estavam, mesmo convertidas em escrita ou filme, nada deviam à americana. Este império a colapsar também tinha a sua Alcatraz no Tarrafal, reactivado em 1961 depois de um encerramento de sete anos, como Campo de Trabalho do Chão Bom, para receber os prisioneiros das colónias.

Uma brutalidade ilógica como todas as guerras, que em crescendo se tornava mais cruel e infindável, e por isso, a cada dia mais presente na vida de todos.

Uns anos antes em 1961, quando as colónias africanas se prestavam a agitar com a bandeira da independência, já o pai recebera ajudas de custo e guia de marcha para a India. No entanto, por um desígnio providencial livrava-se à ida. Na vertigem de ir para uma guerra anunciada, ele e os camaradas gastaram todas as ajudas de custo, criando-lhe uma chatice imprevista e de resolução tramada. No dia anterior à partida, ficou a saber que estava tudo cancelado e teria de as devolver. Valeu-lhe nova guia de marcha para Angola, trocada pela vontade de um camarada seu em ir na sua vez, poupando-o a uma página negra da história portuguesa.

O contingente português na India tinha-se rendido: o general Manuel Vassalo da Silva, o último governador do Estado Português da India, último governador-geral de Goa, Damão e Diu, poupara a vida de 4400 homens e evitara a destruição de Goa, numa clara afronta ao velho mais poderoso da nação que lhes exigia o sacrifício da vida na defesa do nome da pátria.

Seria o general Vassalo da Silva votado ao mais profundo desprezo por uma pátria que tinha servido com empenho, depois de recusar a sugestão do suicídio dada num encontro com um lacaio político na prisão indiana, que lhe tinha deixado em cima da mesa da cela um frasco com cianeto. Voltar à sua terra, só morto. Manuel Vassalo da Silva tinha trazido a Goa um desenvolvimento extraordinário nos últimos três anos de governação. No entanto, e tal como na segunda grande guerra tinha acontecido a outro grande português, o cônsul em Bordéus Aristides Sousa Mendes, que salvou muito mais altruisticamente do que Schindler milhares de judeus, a pátria mãe era madrasta com aqueles se atreviam corajosamente a desafiar, e efectivamente contrariar o poder instituído.

Anos mais tarde o velho cairia de uma cadeira, no Forte de S. Julião da Barra.

O miúdo tinha a sorte de ter uns pais que compraram uma televisão quando ele tinha oito meses, ouviam rádio e assinavam o Século Ilustrado, uma revista de actualidades onde a imagem era parte importante. Uma Time à portuguesa, embora com as “devidas correcções” do lápis azul. O garoto ainda não sabia ler, mas as imagens que via na televisão e nas revistas, a maioria delas de significado incompreensível para si, eram-lhe estimulantes e atraíam-no por coisas que não via no seu universo palpável.

Nunca se esqueceria, por toda a liberdade e equilíbrio que afortunadamente tinha na sua vida, do choque que teve, por uma chamada de atenção apavorada da Nênê. Tinha dito bem alto na rua a palavra “Rússia”!

Não era nenhuma asneira, porque essas aprendia-as com os primos mais velhos das Caldas da Rainha, que afincadamente se entretinham a fazê-lo repetir palavrões, como se de um papagaio se tratasse. Divertia-os disponibilidade dele para os satisfazer naquele chorrilho de impropérios inconsequentes. A ele divertia-o ser o palhaço de serviço, o actor principal que dava alegria à ampla plateia de uns quinze. Quando os pais depois o ouviam repetir aquelas palavras, diziam-lhe que eram palavras muito feias e para não as repetir, o que lhe causava alguma estranheza. Nosso Senhor zangava-se com os meninos que diziam aquelas coisas. “Palavras feias”… mas afinal elas faziam rir e eram feias?! Se faziam rir e rir era indiscutivelmente melhor que chorar, como podia Nosso Senhor ficar zangado por uma coisa que era boa? Ainda tentava com a Nênê e o Reis mas a reacção era a mesma, e assim ficava com dois carimbos de certificação, em como sabia que não as devia dizer a ninguém - bem, ao pé dos primos podia ser. Por isso, estranhou aquele susto da sua ama na reacção a uma palavra, que não estava no léxico das que lhe foram ensinadas pelos primos. Jamais se esqueceria.

Mais tarde, não muitos anos depois, haveria de compreender porquê.

Mas para aquele pequeno selvagem livre, o primeiro contacto com a censura, mesmo em versão protectora, a sensação foi inesquecível, momentaneamente castradora. 

Uma gaiola sem grades.

Hélder

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

LIÇÃO PRÁTICA DE DIALÉTICA HEGELIANA POST-MARXISTA

Factos: Passos Coelho foi interrompido quando discursava no Parlamento por um grupo de pessoas entoando a canção "Grândola Vila Morena". Miguel Relvas foi interrompido no denominado Clube dos Pensadores por um grupo de pessoas entoando a mesma canção e insultos variados. Miguel Relvas foi impedido de discursar no ISCTE por um grupo de estudantes entoando a sobredita canção e proferindo insultos avulso. Paulo Macedo discursava no Porto e foi interrompido por pessoas que entoaram "Grândola" e proposições avulsas contra as políticas deste Governo em geral, e contra as políticas de Macedo em particular.

Tese: Algumas almas bondosas e eivadas de espírito democrático manifestaram-se contra tal estado de coisas. Dizem elas que é inaceitável que cidadãos de qualquer categoria, mormente membros do Governo, sejam impedidos de manifestar publica e livremente as suas opiniões, constituindo tais factos uma subversão de um dos princípios fundamentais do Estado de direito e um atropelo a um direito consagrado constitucionalmente.

Antítese: É bom que estes governantes percebam que ainda existem pessoas que não estão dispostas a engolir as mentiras, trapalhadas, mistificações e aldrabices com que nos bombardeiam diariamente. É excelente que estas pessoas, formalmente legitimadas por um mandato que lhes foi concedido pelo soberano (o povo) para governarem em seu nome e que tudo têm feito para subverter o dito Estado de direito, a começar pela desvalorização e achincalhamento da Constituição, percebam que estão apenas a colher aquilo que semearam: embora não pareça, os direitos que sonegam aos cidadãos, a preversão ideológica com que perspectivam tudo aquilo que constitui a cidadania, os actos que diariamente empreendem e que prefiguram uma Revolução Cultural maoísta "soft", têm um correlato directo numa forma de contestação que não pode ser detida à bastonada e que não pode ser calada porque encontrará sempre vias de se fazer ouvir. Para além disso, estas pessoas não precisam de outros palcos para propagarem a sua ideologia manhosa e as suas ideias bacocas; para falarem de "mercados", ajustamento", "reforma do Estado" e outras baboseiras do género bastam-lhes os "microfones com pernas" (Marinho Pinto dixit) que são os jornalistas sempre à cata da última declaração de quem não tem nada a declarar, senão mais um acto da tragédia constituída pela sua governação.

Síntese: Segundo o filósofo Georges Steiner "todo o acto de pensamento é uma acto linguístico". Logo, quem pensa mal só pode expressar mal aquilo que pensa. Inversamente, se fala mal é porque pensa mal. Se compulsarmos as expressões empregues pelo Primeiro Ministro ("mais bom gosto", "pratos que se habituaram", "que se lixem as eleições" e por aí fora) e o discurso pobre e ignorante dos restantes membros do Governo (lexical, semântica e gramaticalmente indigente) só poderemos concluir pela deficiente ou ausente qualidade do seu (deles) pensamento. Ou ainda, como certa vez Marcello Caetano (cruzes canhoto !!!) disse de uma célebre personagem do antigo regime: "Ele tem ideias inteligentes e originais. Pena que as inteligentes não sejam originais, e que as originais não sejam inteligentes". Portanto, o abandalhamento do espaço de comunicação pública com falsidades e mentiras, servidas por um paupérrimo discurso, só poder ser combatido com formas, ainda assim muito suaves, de contestação que impeçam esse mesmo discurso de poluir e emporcalhar a vida pública. Deixem-se ficar acantonados nos seus gabinetes, levando a cabo as suas tenebrosas tarefas, ou façam como o Prof. Cavaco que se deixou de ouvir há cerca de dois meses, não havendo notícia de alguém sentir a falta das suas banalidades e tergiversações. Por outro lado, há que obtemperar a falta de qualidade dos discurso dos nossos governantes e mitigar a irritação suscitada pelas suas aparições e discursos públicos: quem passou a vida inteira metido nos pântanos de mediocridade e selvajaria das juventudes partidárias, aprendendo a forma de conquistar e manter o poder, se possível enriquecendo e fazendo enriquecer os amigos à custa do erário público, não teve tempo de tomar contacto com os grandes cultores da língua portuguesa : Padre António Vieira (não, sr. Primeiro Ministro, não poderá contactá-lo na sua paróquia para lhe pedir uns conselhos), Sá de Miranda, Luís António Verney, os grandes poetas do século XVIII, os grandes prosadores do século XIX, Eça de Queiróz, Camilo Castello Branco et altri. Restam-lhes as patéticas formas vernaculares de discurso, as declarações arrastadas e entarameladas, recheadas de termos técnicos que não significam nada, para além do jargão inóspito com que pretendem ser sérios e demonstrar competência e o folclore surreal daquilo a que os franceses chamam "langue de bois", ou "língua de madeira", para quem não domina a língua de Molière, Racine e Balzac.


P.S.  Disse um dia Baudelaire nas suas "Fleurs du Mal" ("Flores do Mal" para quem não domina a língua de Pascal, Appolinaire, Rimbaud e Lautréamont): "Nada conheço da alma de um patife. Mas conheço a alma dos homens sérios, de fatos de bom corte, de bons hábitos, com amigos influentes: é de estremecer de nojo e de horror".

WE ARE ONE


terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

WIR SIND JUDEN – ALLES JUDEN


A História tem um fecho que esconde o lado mais negro da humanidade. Um fecho de onde sai um cheiro nauseabundo a tirania e pedaços de excrementos feitos de intolerância, extermínio e medo. De vez em quando consegue-se fechar essa cloaca imunda, de vez em quando ela volta-se a abrir. Nos dias que correm o fecho voltou a estar aberto sem que se consiga prever com grande exactidão o momento em que se conseguirá voltar a fechar. De cada vez que abre o fecho expele cada vez mais sofisticada matéria.

Hoje o buraco chega de mansinho com cantiguinhas de liberdade e democracia em vez de discursos empolgantes e radicais, paradas militares e fanatização/bebedeira colectiva. Hoje o buraco repete exaustivamente que és livre para melhor te escravizar, para melhor te tornar num autómato ao serviço da sua causa. Hoje já não é preciso encerrar-te em guetos e obrigar-te a usar estrelas de David ao peito; hoje não te arrancam de casa à força de insultos e coronhadas; hoje não separam os avós e os netos à entrada do campo, deixando os adultos em idade produtiva longe dos fornos crematórios ou do Zyklon B. Não!

Hoje convencem-te que és livre e que tens dinheiro, que podes ter tudo o que quiseres para depois te escravizarem enquanto toda a tua força de trabalho se esgota nos juros dos empréstimos que te fizeram; hoje não mandam a tropa a tua casa aos gritos a meio da madrugada. Em vez disso enviam-te um aviso das Finanças, aumentam-te os impostos a um ponto que não os poderás conseguir pagar, tiram-te a casa que nunca foi tua e mandam-te ir viver para debaixo da ponte. Hoje não constroem campos de extermínio, exterminam os direitos básicos da população, o direito à saúde, à educação, ao trabalho. Exterminados os direitos começarás a ser um nada cada vez maior com o passar dos dias. Um nada atacado pelo medo, pela depressão, um nada que se acabará por dissolver ao saltar de uma ponte, ao disparar um tiro na cabeça. E o nada que já existia confirma-se no nada que deixou de ser. Começarão pelos mais fracos, velhos e crianças, não precisando de os separar á entrada do campo. Separam-nos na secretaria com as eternas desculpas de que não há dinheiro para tanta gente, não há dinheiro para um estado social, não há dinheiro para nada. Apenas para manter de pé as instituições da ganância, da usura e da pilhagem legalizada. As mesmas que sustentam a secretaria, o escritório das leis, a manipulação da justiça.

Mas hoje como ontem, por mais sofisticados que sejam, por mais subtis que se consigam insinuar, por mais catastróficas que as suas acções possam ser, há sempre um erro, um erro que insistem em cometer. Esquecem-se que depois do dilúvio, da seca sem fim, da fome, da injustiça, da brutalidade e da carnificina, depois de todas as atrocidades e de todos os genocídios haverá sempre quem sobrevive, haverá sempre alguém que termina a viagem como gado até ao campo, haverá sempre alguém que acorda e, que no acto de acordar acorde os outros. Esquecem-se sempre da força das vítimas que espezinham que aumenta em cada hora que passa. Esquecem-se que são muitos, muitos mais que eles, os filhos do fecho do cu do mundo, e que em qualquer momento vão perceber que têm muito mais força que eles. Subestimam a sua força e esse será sempre o seu eterno erro. No fim encontram sempre o fecho, o cu do mundo e da História e voltam a fechá-lo a sete chaves. Haverá sempre alguém que acabará por dizer: Basta! Falo daqueles que ficarem do lado de cá. Os que estiverem do outro lado também não descansarão enquanto não voltarem a fechar o fecho. Assombrarão os carrascos fazendo-os urrar de medo e remorso, inspirarão os rebeldes a pendurá-los bem alto no poste dos traidores. Sim, esses que nunca acabam continuarão vivos e voltarão a fechar o cu da História para que a Humanidade consiga voltar a respirar durante mais algum tempo em paz.

 

Artur

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A MARCA AMARELA

 

Ficava na secretaria da catequese da igreja de Sto. Condestável. Um grupo de álbuns de banda desenhada que era normalmente utilizado por aqueles a quem os pais se atrasavam a vir buscar. Entre vários, a minha curiosidade concentrava-se n’ “A Marca Amarela”. Saía das aulas da catequese em linha recta para a secretaria e não descansava enquanto não deitava mãos aquele álbum que me fascinava sem ter as razões concretas para tal deslumbramento. Infelizmente a minha avó não demorava muito a vir-me buscar com grande tristeza minha. Durante alguns meses nunca conseguia passar das primeiras vinte páginas onde os amigos Blake e Mortimer deambulavam por uma cidade de Londres escura e chuvosa, cavaleiros andantes na senda das ameaças e dos mistérios que colocavam em perigo o mundo inteiro. Mais tarde o meu pai, também ele apreciador do género, acabava por me oferecer esse álbum (a que se seguiram outros) dando-me finalmente a possibilidade de chegar ao fim naquela fantástica aventura. Anos depois a minha tia Paula emigrou para Inglaterra, onde casou e teve o seu único filho. Com esta família passei alguns dos melhores e mais felizes natais da minha vida a começar pelo dos meus doze anos, a primeira vez que visitei Londres. Nessa estadia lembro-me perfeitamente de uma tarde em que o meu tio Frank me levou a visitar a Torre de Londres (onde tudo começa n’ “A Marca Amarela”) e a paisagem urbana envolvente. Não faltava ali nada, a chuva, o frio, a noite escura e antecipada de Inverno, o rio Tamisa, Waterloo Bridge, Westminster. A minha fascinação pré-adolescente dizia-me que estava dentro do universo de Blake e Mortimer e que seria perfeitamente plausível que a silhueta de um deles aparecesse ao virar de uma esquina. Anos mais tarde (92), os Rádio Macau lançaram um álbum com o mesmo nome. Numa das poucas vezes que falei com o Alex perguntei-lhe se o título havia sido retirado do livro de Edgar P. Jacobs. Já não me lembro o que é que ele respondeu mas era capaz de jurar que confirmava a minha suspeita, em homenagem ao fascínio sentido na nossa infância. Em diferentes épocas da minha vida o universo de um álbum clássico da banda desenhada visitou-me, surpreendendo-me sempre de cada vez que o fazia com algo novo.

O Passado é uma maneira de nos lembrarmos de alguma coisa mas tem uma função ainda mais importante que é o facto de nos ajudar a construir quem somos, a estruturar o Ser. As memórias ficam dentro de nós enquanto inquilinos permanentes sem os quais a definição de identidade fica irremediavelmente incompleta e, consequentemente, seriamente comprometida. Talvez porque este blog entrou numa modalidade de nostalgia, talvez porque já há muito tempo que queria falar n’ “A Marca Amarela” e de como ela se inscreveu várias vezes no meu caminho, aderi ao season spirit. Com as memórias de estreia do Hélder e o brilhante texto do Arnaldo sobre o Cinema Europa, o certo é que me vi á vontade para explorar este campo.

As memórias, nunca é demais dizê-lo, ajudam a estruturar quem somos. Elas fizeram-nos e nós fabricamo-las um pouco todos os dias tornando-as propriedade nossa. Á medida que o tempo passa, o acto de lembrar é a ferramenta ideal (se calhar a única) que não nos permite afastar, ir para muito longe de nós mesmos. O cinema da infância que foi demolido não deixou por isso de existir. Ficou gravado na imaginação da época, primeira porta aberta para o mundo. O café da adolescência não encerrou definitivamente com grande tristeza nossa apesar de nos últimos dez anos lá termos passado duas ou três vezes. E, por fim, o Passado não é um país distante. É antes uma casa na qual vivemos quase todos os dias (vá lá, todas as semanas), um espaço de onde saímos frequentemente porque temos de ir trabalhar, visitar outros, tomar conta de partes da vida que vivemos em comunidade. O Passado é um amigo silencioso que nos deixa recados espalhados pelos cantos da casa, talvez em pequenos post its amarelos, sendo essa a cor da sua assinatura...a marca amarela…

 

Artur


domingo, 17 de fevereiro de 2013

UNIVERSO EGOCÊNTRICO - PRIMEIRA INFÂNCIA




As suas memórias mais antigas remontam à segunda metade da década de 60 do século passado.

Posto assim, poder-se-ia assemelhar aos pensamentos datados por um idoso. Mas não é o caso, e nem por isso lhe parecia há tanto tempo assim. Apenas se recorda razoavelmente bem dos primeiros anos da sua vida, numa época em que mesmo nas zonas urbanas, o acesso a coisas como televisão ou outros electrodomésticos, telefone ou automóvel, não estava ao alcance de todos. Telemóvel só no sapato do “Olho Vivo” (Get Smart), computadores portáteis eram ficção científica, e a internet seria um embrião na cabeça de algum visionário.

A história começa numa clínica perto da cervejaria Portugália na Almirante Reis, em Lisboa. Volta e meia, e para justificar a forma como num ápice desaparecia a cerveja do seu copo, caneca, ou girafa, gostava de invocar a prestigiante localização do seu nascimento, a escassos metros deste marco cultural da capital. Era uma bem sucedida relação desde o primeiro berço, desprovida de qualquer arrufo e reforçada por anos de dedicação à bebida fermentada mais antiga do mundo.

Foi no entanto, numa pequena vila entre Lisboa e Sintra, que deu os primeiros passos e se deu à vida. Uma vila que tinha as suas fronteiras muito bem definidas, como todas as outras à volta de Lisboa, com pinhais, hortas e amplos terrenos abertos a rodeá-la, cortados por pequenas estradas, onde se materializou a oportunidade de passar muitas manhãs e tardes, a explorar aquilo que espontaneamente começou a chamar a Selva.

Para um miúdo que dividia a sua vivência diária, entre um prédio de sete andares, onde morava com os seus pais, e outro de três, o da ama e do marido, aquelas incursões pela Selva eram o início da descoberta do desconhecido, proporcionando-lhe sensações que os grandes exploradores portugueses do século XIX, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, Serpa Pinto, ou Silva Porto, tinham certamente experimentado ao desvendarem os segredos da África profunda, pura, intocada, palco de aventuras, deslumbramentos e dificuldades inimagináveis - claro que de uma forma muitíssimo mais suave, como convém a um miúdo de um, dois ou três anos, que tinha a garantia da protecção do gigante amigo, o Reis, ou a escassos minutos de distância dali, de um copo de leite e pão com manteiga, ou de um divã para o descanso da excitação destas importantes expedições.

As formigas, joaninhas, escaravelhos, minhocas, lesmas podiam estar na lista dos “Big Five”, mas isso variava com os menus do dia servidos pela Selva. O Reis, o seu companheiro de aventuras mais velho - 60 anos mais velho - tinha uma paciência inabalável e estava sempre pronto a responder ás suas perguntas oportunas, muitas, demasiadas, imparáveis como o cachão das cataratas de Niagára, e carregadas de carácter profundamente científico, como aliás faria qualquer verdadeiro interessado nos mistérios da vida.

Reis tinha sido atleta do Ginásio Clube Português na década de 20, como ginasta das disciplinas mais exigentes: argolas, barra fixa, barras paralelas e assimétricas, cavalo com alças e outras, guardando orgulhoso um espólio de medalhas e também de fotografias, onde se exibia revestido numa aura mágica de actor de cinema, em poses dignas de Rudolfo Valentino, vestido no equipamento branco da modalidade e num corpo irrepreensivelmente definido e tonificado. Com mais de 60 anos, continuava a dar muita importância a caminhadas e ao contacto com a Natureza. Isto apesar de fumar bastante - ainda era uma época em que os malefícios do fumo estavam por divulgar e muito menos ainda, existiam as proibições ou restrições ao seu consumo.

Na Primavera as incursões à Selva, implicavam a procura de víveres, o que acrescia mais um interesse à aventura do desbravamento – turiões, os rebentos dos espargos, bem tenros e saborosos, serviam para patrocinar as solas gastas nestas demandas diárias, se bem que os chilreios dos pássaros e o cheiro do pinho, já contribuíssem o bastante para que aqueles momentos valessem por si. Imagine-se entretanto a paciência do companheiro mais velho ao ver o outro numa excitação imparável: “Isto são espargos?... e isto?... e isto?...” e por aí fora no meio de um turbilhão de capim voador até à exaustão total, não do santo, que nunca se cansava daquele processo de aprendizagem, mas do sacana do puto, que só quando estava quase morto se rendia, com as mãos e cara completamente sujas de terra e cheias das mais variadas ervas. Espargos, é que nada.

Todas as manhãs havia que levantar cedo, mas essa parte era-lhe fácil. Não dava por nada meio perdido no limbo do sono, até descer pelo elevador e chegar à porta da rua, lavado e vestido como que por um toque de magia da fada mãe. Depois, tomava o comando e conduzia-a pela mão, num gigante cabriolet de plástico laranja, preso por um fio à outra, cujo som calçada abaixo, se sobrepunha facilmente a qualquer veículo de escape livre com que se cruzasse. Três quarteirões à frente, já o passeio estava livre para a sua passagem, pelo respeito que o som de um trovão rasteiro, inspirava muito antecipadamente.

A chegada à casa da ama, no mesmo prédio onde trabalhava a mãe, era sempre assinalada com pompa e circunstância – ele era o pequeno imperador daquele domínio, paparicado pelas colegas da mãe que faziam questão de lhe prestar vassalagem, com mimos da mais variada ordem. Esperança, uma das mais chegadas amigas da mãe, era uma das suas maiores bajuladoras, de olhos azuis muito abertos e sorriso escancarado. Ele detinha um grau de importância era tal, que a própria chefe dos serviços dos correios, saía do seu gabinete para lhe dar os bons dias. Depois lá ia para a casa da Nênê e do Reis, dois andares acima.


Eram um casal muito unido, e zeloso um do outro. O miúdo nunca lhes ouviria uma palavra azeda ou a mínima discussão durante os anos que lá passou. Carregavam no entanto, o desgosto velado de nunca terem tido filhos.



A vida tem destas coisas, dá demasiadas vezes filhos, a quem não os quer, sabe ou pode criar, e a outros nega-lhos, apesar de terem todas as condições de harmonia emocional e material, e de os quererem, mais do que a qualquer outra coisa.

Sem dúvida que aqui quem ficou a ganhar foi o miúdo, que recebia com juros de décadas a dedicação de dois seres que esperavam há tanto tempo uma oportunidade para criar um filho. Tinha sido a Zeca, a chefe da estação dos correios, a sugerir à mãe dele quando lá foi colocada, a D. Inês como ama do pequeno.

O almoço acontecia normalmente com as mãos do petiz na água limpa e morna do lava-louça de pedra, onde flutuava naquele oceano imenso uma vasta armada de navios, fragatas e contratorpedeiros em missão de patrulha, feitos a partir das pratas saídas dos maços de tabaco vazios do Reis. Haviam naufrágios trágicos e batalhas épicas mas no final os bons, comandados pelo Comodoro Minorca, ganhavam sempre. Só assim, entretido no meio destes dramáticos cenários, sua pequena alteza admitia que a Nênê lhe enfiasse qualquer coisa, goelas abaixo, já desesperada mas com muita e inesgotável paciência…

Nênê era uma de catorze irmãos. Nascida ainda no século XIX, em 1900, vinha de uma família transmontana rica e influente, lá de Miranda do Douro. Ela contava muitos episódios da disciplina rígida, aplicada pelo pai aos irmãos, irmãs e a ela própria. A palavra do pai era tão sagrada para ela, como a palavra do “Pai do Céu”. Raramente os irmãos pensavam contradizê-lo, e quando o faziam, eram corrigidos dura e inesquecivelmente. Ela, as irmãs, e acima de todas a sua mãe, submetiam-se completamente à vontade do pai, nunca se atrevendo a questioná-lo, e tratando-o sempre com muito respeito, submissão e temor, por “paizinho”. No entanto, nas palavras dela, não se denotava qualquer mágoa ou rancor. Apenas respeito e saudade, apesar da noção dos erros cometidos por tanta rispidez e disciplina espartana, para com a família directa. Parecia reconhecer que não era por maldade – ele era daqueles homens duros que queria o bem dos seus, mas apenas admitia a sua perspectiva, aquilo que no seu universo estava certo e fazia sentido. Seria o que se poderia chamar hoje um tirano, mas sem noção de o ser, ou sem noção de a sua vontade, poder estar a fazer mal áqueles que mais queria proteger. Paradoxalmente, também não era um básico bruto arcaico. Mesmo na província mais profunda e distante dos grandes centros urbanos do início do século XX, fazia questão que as filhas tivessem alguma formação artística, acabando uma delas, anos mais tarde, por ser professora de piano. Pois até nesta particularidade o garoto tinha uma sorte incomum.

Nas visitas semanais que ele e a Nênê faziam à irmã na Rua Ivens, em pleno Chiado, a aventura começava pela viagem numa nave comprida a que chamavam comboio e que era apanhado na doca de embarque do outro lado da rua, frente à casa. O prazer que tirava da entrada naquele transporte gigante, muito maior do que o “carocha” creme do seu pai que se chamava “agá-é” por causa da matrícula, para além do tamanho, incomparavelmente mais fiável, estava num nível equivalente aos desbravamentos e descoberta dos encantos, perigos e segredos da fauna e flora da Selva. Durante essa viagem de comboio até Lisboa, o ponto alto era a travessia pelo túnel do Rossio, como se a escuridão ao passá-lo, o fizesse passar por submundo misterioso e desconhecido, onde coisas invisíveis e certamente terríveis poderiam estar-se a dar à sua passagem. Assim sendo, e por não dar parte fraca naqueles minutos de alguma apreensão que no entanto o fascinava, sentia-se investido de uma coragem a toda a prova, recompensada no final com a luz suave e o ambiente agradavelmente agitado na estação do Rossio, impregnado do cheiro característico das estações de comboios.

A seguir era a subida até ao Chiado e à casa da Inha e do Miranda - outro estímulo pelas coisas novas que ali haviam e não se viam no Cacém, como se de outra realidade paralela se tratasse.

À chegada à casa na Rua Ivens, e após nova e muito apreciada vassalagem prestada ao Nandinho pela Inha, e pelo Miranda, o ponto alto daquele dia - o piano!

Se a fantástica vista para os telhados da baixa pombalina, para o castelo de S. Jorge e para o movimento dos barcos no rio Tejo, ficando tempos em infindável contemplação à janela não fossem suficientemente compensadores pela viagem até Lisboa… o piano de cauda! Uma coisa enorme, escura, com incontáveis teclas brancas e pretas que eram disponibilizadas, pelo fascinante ritual da abertura da tampa, e cujas teclas ele se esforçava por esgotar em todas as combinações possíveis, nunca o conseguindo, mas ficando sempre com esse objectivo para a próxima visita. Enfim, um ensaio de música erudita permanente e irremediavelmente inacabado.

O regresso ao Cacém, normalmente ao final da tarde, era feito numa nave igual áquela que o tinha transportado até à estação do Rossio, eficaz no embalo que o adormecia de volta para os braços dos pais, numa viagem sempre mais rápida do que aquela que o tinha levado até ao Rossio.

Os dias sucediam-se nestes primeiros anos, em sucessivas descobertas e aventuras, que ele afortunadamente, tinha a sorte de ter quem lhe proporcionasse e claro, não queria perder pitada.

O que o pequeno aventureiro ainda não sabia nem podia saber, era que o seu universo não iria ser assim para sempre, mas sem dúvida que para já, aquele estava aprovado.


Hélder

sábado, 16 de fevereiro de 2013

2 - UNIVERSOS CONFLUENTES





De que forma a memória de experiências anteriores pode influenciar uma escolha presente, a partir de diversas possibilidades, universos germinados, vingando apenas um, criador da realidade posterior? E os que deixaram de se concretizar, abortados no descartar da escolha da sua possibilidade, trariam um universo melhor?...

Cada opção, das milhares que se fazem, é reflectida no futuro, definindo e projectando no conjunto a realidade que será vivida no universo individual.


Quão deslumbrante poderá ser o pensamento de se considerar que a sua existência física, pode unir quatro séculos, dois milénios e ter influências mais ou menos marcantes nos milhares de universos cruzados durante o percurso?
                                     ,                               

Ele tinha uma lembrança muito vibrante de pessoas próximas que tinham nascido no século XIX, como a sua bisavó materna Albertina, nascida em 1877 e que para a época, era anormalmente literada e politizada. Ela lia todos os jornais que apanhava à mão, falecida no final dos anos 60 e de quem ele ainda guardava uma ténue memória. Também da sua outra bisavó materna Cecília, nascida em 1888, falecida em 1982, esta perfeitamente recordada, com todas as fantásticas experiências inerentes a este longo percurso de quase um século de vida, por ela contadas na primeira pessoa e por ele ouvidas, marcadas pelas descrições de memórias bem vivas da monarquia, da implantação da república, alterações monetárias, primeira república, duas guerras mundiais, convulsões sociais, uma ditadura demasiado longa, períodos de carências, racionamentos e pobreza, para além de uma então recente revolução sem sangue, vista com algum cepticismo.

Por outro lado, fascinava-o pensar que certamente pessoas de gerações subsequentes à sua, com as quais já lidava, iriam estender a própria experiência dele de passagem pela vida até ao século XXII, numa recordação da memória de si, tal como ele tinha das suas bisavós, dos seus avós e de outros bem mais velhos que ele adorava ouvir.

De alguma forma ele achava engraçado a sua existência poder servir de ponte, de uma forma mais ou menos directa entre os séculos XIX e XXII, pelos antigos que conheceu e pelos futuros que conheceria e que lhe sobreviveriam.

Hélder Martins

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

LUIS BUÑUEL - A CONSAGRAÇÃO


Luis Buñuel
   O tempo passado no México é considerado por muitos críticos como o período de maturação da obra buñueliana antes de atingir a maturidade no seu regresso à Europa e a VIRIDIANA (1961). No entanto, através de um olhar um pouco mais atento podemos encontrar em todas as fases da sua obra (Primórdios; México; regresso à Europa) não só uma constante temática sucessivamente desenvolvida, como uma linha de continuidade que aprimora, robustece e desenvolve essa mesma temática. Temas, mensagens e propostas narrativas saltam de uns títulos para os outros complementando um universo significativo intenso e permanente.

VIRIDIANA
Depois de LOS OLVIDADOS (1950) Buñuel vai-se apropriando aos poucos da autoria do argumento bem como da liberdade de encenação. A VIDA CRIMINOSA DE ARCHIBALDO DE LA CRUZ (1955) abre-lhe o caminho para as primeiras co-produções francesas (CELA S’APPELLE L’AURORE (56); LA MORT EN CE JARDIN (58); LA FIÉVRE MONTE A EL PAO (60). A partir daqui Buñuel consegue abordar a temática política dispondo de muito mais meios, desenvolvendo e aprofundando a sua proposta narrativa. As co-produções com os Estados Unidos (ROBINSON CRUSUOE, THE YOUNG ONE) aproximam-se cada vez mais do seu universo. NAZARIN e EL anunciam VIRIDIANA, rodado em Espanha, Palma de Ouro no Festival de Cannes e novo escândalo com as vozes do Vaticano a gritar “sacrilégio”. Se em NAZARIN o padre se transforma numa freira, em VIRIDANA uma verdadeira orgia de mendigos que parodia a Última Ceia ao som de “Hallelujah” de Haendel compõem dois pontos altos da sátira religiosa. A caridade (virtude principal do cristianismo) é não só um paliativo ineficaz como também um instrumento de submissão e tirania. É como dar os peixes e não ensinar a pescar. Quem recebe deixa de ter instinto para procurar a sua vida e quem dá mantém sobre o beneficiado um ascendente inútil e sem sentido no que à condição humana diz respeito. Pobres e ricos, ninguém se aproveita na hora da apresentação da boçalidade, do sentido do ridículo, da mesquinhez ou da canalhice. Pobres e ricos todos guardam em si o que de melhor e de pior se pode encontrar na espécie humana sem distinções. A estranha humanidade dos filmes de buñuel fazem lembrar o Goya dos quadros negros. Estes monstros erigidos pelo sono da razão possuem uma vitalidade animalesca que desfigura a beleza dos protagonistas, espaço aproveitado pelo realizador para exercer a sua crítica às normas e aos padrões da sociedade.

Do mesmo modo, os filmes que destacam a parte irracional da crença religiosa – onde se incluem SIMÃO DO DESERTO (65) e A VIA LÁCTEA acabam por se conjugar com aqueles em que irrompe a sexualidade reprimida. É assim que EL encontra correspondência com TRISTANA (70), a segunda adaptação do escritor Pérez Galdóz, assim como BELLE DE JOUR (67) e CET OBSCURE OBJECT DU DÉSIR (77).

                                 
                                         O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA
A base do método surrealista utilizado por Buñuel é o sonho, porta de entrada para o mundo do inconsciente, embora o realizador saiba fazer muito bem a distinção entre “sonho”, “fantasia” e “delírio”. Ao mesmo tempo, em L’AGE D’OR a própria narrativa se baseia numa linguagem “sonhada”, composta por deslocações irracionais, ou aquilo que Buñuel chamava a “continuidade descontínua”, técnica que ele não deixará mais de utilizar nos seus últimos filmes tais como LE CHARME DISCRET DE LA BOURGEOISIE (72) e LE FANTÔME DE LA LIBERTÉ (74). Nestes dois filmes, que representam a essência da arte buñueliana, o tema é ao mesmo tempo desprovido de sentido e logicamente impossível. A própria verosimilhança narrativa, o facto de ser absurda a explicação dos símbolos e das metáforas não significa que o filme não quer dizer nada. Pelo contrário, a sua (des)construção narrativa insinua uma lucidez, uma observação acerca das pretensões sociais e ideológicas, nas quais buñuel se mantém fiel ao Surrealismo e às suas convicções revolucionárias.

Como sabemos, o Surrealismo não encontrou grande aceitação na área cinematográfica. Buñuel ocupou essa vaga de forma permanente e quase absoluta impedindo que se desenvolvesse um estilo, uma escola como p. ex. o Neo- Realismo. Ainda assim é possível encontrar exemplos, não de continuadores mas de cineastas que acusaram a sua influência total ou parcialmente ao longo dos seus filmes. Estou-me a referir em concreto a Pedro Almodôvar na sua primeira fase (até MATADOR) e a Emir Kusturica. Poderemos dizer em síntese que, não tendo vingado, o Surrealismo não se afastou totalmente do Cinema.

 

Artur

 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

CINEMA EUROPA

  
                                            
Ficava numa esquina, ou num cruzamento de duas ruas estruturantes do bairro de Campo de Ourique. O Cinema Europa, tal como a Europa propriamente dita, situava-se numa encruzilhada de caminhos inevitáveis, conhecidos, familiares, rotas batidas diariamente por quem habitava aquelas paragens. Para quem habitava a aldeia dentro da cidade era, de certo modo, o "rio que passa na minha aldeia". Visto com os olhos da infância e da adolescência era belo, misterioso, encerrando em si segredos a que um simples bilhete dava acesso. Nunca exibia as novidades cinematográficas; essas ficavam para os grandes cinemas do centro da cidade, os da Baixa ou das Avenidas Novas. Era, a seu modo, o mais belo cinema de Lisboa. O Paris, que nunca vimos aberto e a funcionar, era apenas uma relíquia de outros tempos, uma pré-ruína que se postava como sentinela muda nos limites do bairro. Muda mas eloquente no seu silêncio; constituía uma antevisão da ruína que ameaça e coloca em crise essas salas de bairro, as vivências daqueles que as frequentaram e a função social que desempenharam. Na sua beleza austera e fanada olhava para os crimes do futuro com uma indiferença mortal.

No curto romance "A Estrada", de Cormac McCarthy, uma das personagens chega a uma grande cidade e observa um edifício de ar austero e oficial, sobre o qual se inscreve em letras capitais a palavra "MUSEUM". Essa palavra para ele desconhecida, como que escrita numa língua ignorada vinda de outro planeta, adquire conotações fatídicas e solenes. Não conhecendo o significado, qualquer coisa no seu corpo reage com uma intensidade visceral, primária, encontrando um eco profundo no seu íntimo. Talvez todos tenhamos "museus" nas nossas vidas, palavras mágicas cujo sentido nos desconcerta, mas que nos sugerem e prometem acepções bem mais grandiosas e terríveis. As minhas foram "Cinema Europa", escritas na fachada de um velho e decadente cinema de bairro.

Os cartazes e as fotografias mudavam semanalmente, anunciando um filme que seria projectado num futuro próximo, provavelmente na semana seguinte, prometendo um novo mundo inimaginável, evocando tesouros desconhecidos e inquantificáveis. E os nomes também eram misteriosos. Mau grado todos os meus esforços, não chegava a compreender alguns dos títulos, tinha nove ou dez anos, e embora conhecesse algumas das palavras, o modo estranho como se juntavam e o sentido desses títulos escapava-me inteiramente. Mais tarde, com treze, catorze anos, deixava de procurar esse sentido e abandonava-me a uma espécie de indiferença semântica, para fruir apenas a curiosidade que suscitavam. Agora, que passaram milhões de anos, essa época longínqua, vista com uma espécie de estupidificante veia analítica, parece-me quase anedótica. Alguns desses filmes, vistos com a lupa da chamada "idade da razão", desmerecem a solenidade e mistério dos títulos, dos cartazes e das fotografias. De certo modo, essa memória em ruínas permite-me constituir uma categoria de filmes à parte, a que chamaria "os filmes impossíveis". De todo o modo, essa memória da ruína é um reflexo das ruínas daquilo que fomos, daquilo que somos, da ruína do próprio cinema Europa.

O que era então esse tão grande mistério exalado pelos títulos dos filmes ? Creio que uma parte da excitação tinha a ver com a linguagem - essa linguagem não familiar anunciando um evento ainda desconhecido. Repetir as palavras uma e outra vez na esperança de que um sentido se destacasse fazia parte do ritual. Era como a infância de Guido no "8 1/2" de Federico Fellini: Guido e os seus irmãos, irmãs e primos assustavam-se uns aos outros, fruindo cada segundo, repetindo "Asa Nisi Masa" na esperança de fazerem aparecer os espíritos. Se bem que tal não me tivesse ocorrido na altura, poderia ter perguntado aos meus pais o significado dos títulos. Mas isso não teria resultado. Talvez eu gostasse justamente do mistério por ser indecifrável. Como indecifrável era para mim na altura o baixo relevo de uma bela mulher cavalgando um touro e rodeada de estrelas. "Os Sete Samurais" - o que eram samurais ? porquê sete ? "2001: Odisseia no Espaço" - o que era uma odisseia ? e por aí fora, eram signos de um enigma que o adulto de hoje coloca no pensamento do adolescente de então: como é que é possível que duas ou três palavras possam veícular noções complexas (quaisquer que fossem, por exemplo "odisseia no espaço", de que não tinha nenhuma ideia na época). A linguagem, sei-o hoje seguramente, não é inesgotável e infinita nas cambiantes de sentido que procura criar. Será que um dia os títulos se esgotarão devido às reservas limitadas de palavras e possibilidades de as conjugar ? Mas continuam a sair títulos, fenómeno que não parece ter fim. Excepto no Cinema Europa.

Esses signos e esses talismãs (as fotografias, os cartazes, o próprio cinema) da nostalgia que têm uma vida autónoma, não deveríamos descartá-los. Foram fetiches e, ao mesmo tempo, depósitos de nostalgia, tão misteriosos e saturados de sentidos inteligíveis e de desejos indíziveis como "Rosebud". Somos todos nostálgicos de coisas que não voltarão a pertencer-nos. É por isso que as devemos acarinhar tão intensamente.

Tento recriar a sensação da velocidade de um comboio no momento em que ele inicia a viragem. Nos últimos tempos tenho-me posto à procura desses filmes, como se fossem um código que posso decifrar e com os quais podia aprender qualquer coisa acerca de mim, do mundo, dos outros. A única coisa que descobri foi que alguns são muito bons e tornaram-se os meus preferidos - mas isso não quer dizer praticamente nada. O sentimento que me provocam não tem nada a ver com as associações extra-curriculares que os concernem. O Cinema Europa flutua no espaço, desligado de todas as leis da física, desligado do todos os crimes que se cometem diariamente em nome do progresso, desligado de todas as amarras que o prendiam a um bairro onde há muito não habito.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

1 - UNIVERSOS COEXISTENTES


 

As investigações nos últimos 100 anos das temáticas metafisicas da física quântica, tais como o comportamento das partículas, os hipotéticos “wormholes” (portais para possíveis universos paralelos), a recente investigação no CERN da partícula de Deus (o enigmático bosão de Higgs), a revolucionária Teoria das Cordas, ou uma nova abordagem à inter-relação da ciência com a religião, em lugar de trazerem respostas, têm vindo a suscitar questões cada vez mais complexas.

No entanto, se se considerar a experiência pessoal de vida de cada ser com a capacidade da noção de si próprio e da sua própria existência, cada percurso pode ser encarado como um universo único, tal como cada onda do mar, cada grão de areia, cada nuvem do céu. Nunca acontecerá um exactamente igual por toda a eternidade.

As peças do puzzle da memória de cada ser pensante, para além da sua própria história, moldadas a partir de variantes únicas e irrepetíveis, na total amplitude do seu passado, mesmo aquele que o antecedeu em milénios, séculos, décadas, antes de nascer pelo percurso empírico dos seus antepassados, definem geneticamente a sua visão do seu próprio universo, e condicionam a forma como este é apreendido e vivido. Um universo no entanto, e tal como todos, em constante mutação - este particularmente, arquitectado pelos caprichos da forma como vai sendo recordado ao longo dos anos, resultado em movimento, das partidas da sua própria e involuntária alteração de memória, mas que no entanto, é indubitavelmente único.

Enfim, é extraordinária a possibilidade de considerar que nos cruzamos diariamente com universos paralelos coexistentes, confluentes no tempo, mais ou menos fantásticos, desconhecidos, estranhos até, segundo a própria experiência individual, que na possibilidade de serem intermutados, poderiam dar uma perspectiva completamente diferente da Vida. Ou seja, vê-la pelos olhos e pela alma daquele que está à nossa frente, mas mantendo a perspectiva e entidade originais, não seria tão estranho como de repente acordar numa qualquer lua de Saturno?...

A incapacidade na compreensão dos outros, da imparcialidade no julgamento, de um conseguir colocar-se no papel do outro, do respeito e aceitação por esse universo desconhecido, está na base dos conflitos.

A tolerância, o respeito e a coexistência, conceitos chave na harmonia das relações das pessoas, dos povos e das diferentes perspectivas culturais, religiosas ou políticas, deveriam ser mais consideradas num universo que se pretende pacífico, de serenidade, de aprendizagem, de felicidade e pleno de sentido.

Tolerância, Respeito, Coexistência.

Na história da humanidade, as maiores e mais infames atrocidades foram sempre cometidas em nome dos valores aclamados pelo senso comum, como mais sagrados: Deus e Pátria - dois universos bastardos para aqueles que por eles morreram ou ingloriamente deram a vida. Por caprichos de uma confluência das circunstâncias do momento histórico. Quase sempre anonimamente num desperdício grotesco. E sempre por falta de tolerância, respeito pelas escolhas dos outros e capacidade de coexistir, da parte dos grandes decisores do rumo dos povos.

Normalmente é depois do questionamento dos universos sagrados, ou da forma como estes são compreendidos e aceites, por vezes chocando aqueles que nunca se atreveram a pô-los em causa, que uma revolução conceptual profunda permite a evolução e o progresso de mentalidades.

Foi-o com os grandes filósofos gregos, com a espantosa onda criativa renascentista, com a revolução industrial, com o impulso tecnológico do final do século XX – todas extraordinariamente revolucionárias, com espaços temporais cada vez mais curtos entre si, e profundamente alteradoras de modos de vida, de universos.
Helder Martins

 

 

PRAIA DAS MAÇÃS

                                             José Malhoa (1918)