segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O MININHA


 

 

No tempo da escola Primária, comecei por fazer ginástica no C.A.C.O. com o teu irmão Vasco, o Mina, mais tarde o "Minão" por distinção hierárquica de teu irmão mais velho, sendo tu o "Mininha", o mais novo. Naquela fase da vida as diferenças de idades afastam-nos muito uns dos outros dada a pressão do "expediente", as fases de aprendizagem, etc. Nessa altura o "Mininha" era o irmão mais novo do Vasco, um puto tranquilo a quem cumprimentávamos na rua. Havia três anos de diferença…uma distância abismal. A vossa casa cor de rosa que acompanhava a curva na estrada de Sintra antes da ponte e da entrada em Colares era uma referência para os nossos passeios de mota. Se te querias referir a determinada localização era frequente usar a expressão "antes da casa dos Minas" ou "depois da casa dos Minas". Não tendo crescido juntos sabíamos da existência uns dos outros, dizíamos "olá" quando no encontrávamos no bairro ou nos cafés da Praia das Maçãs no Verão. O Arnaldo morava no mesmo prédio que vocês. Mais tarde correu rápida a notícia que marcou o teu percurso adolescente. Alguém soube que o "Mininha "tinha fugido de casa, ninguém sabia dele. Sabia-se que tinha levado uns livros do Camus e umas cassetes dos Doors. Como numa canção do Tê e do Rui Veloso escrita muitos anos depois para o album "Mingos e os Samurais". Tu como muitas outras criaturas do bairro tinhas também esse dom amaldiçoado de ver e ser muito antes de qualquer um. Só que aos do bairro ninguém liga… A GNR acabou por te encontrar a dormir numa praia  e "devolver à procedência", mas para nós, a partir dali o "Mininha" tinha conquistado o seu lugar na galeria dos notáveis da época. Mais tarde volto a encontrar-te na mesma empresa onde ambos trabalhámos uma vida e a partir daí tivémos um relacionamento regular que muito prezo.

Estou a tentar colar bocados do Tempo num misto de tristeza e alegria como quem revê um filme sabendo de cor cada deixa dos actores, cada localização do cenário exterior. Uma força empurra-me as mãos sobre o teclado, outra puxa-me a cadeira e diz-me para me ir deitar porque as palavras não chegam, as recordações não chegam, nada chega quando acordamos de manhã a ler a notícia da tua morte, nada chega quando ouço o Renato do outro lado do telefone a disfarçar as lágrimas. Nada chega. A Vida veste-nos com um casaco de mangas compridas, as calças ficam muito acima do chão, o colarinho da camisa sufoca-nos. Às vezes somos demasiado grandes para uma vida só, temos espaço a mais para o espaço que podemos percorrer, sobra-nos mundo dentro dos limites da existência, às vezes sobramos dentro de nós. E tu eras assim…demasiado Ser para uma vida só, demasiada lucidez para tanta cegueira. E em vez de rei eras um príncipe como te chamou o Janjan, o nosso Principezinho, frágil e corajoso, habitante único do teu planeta, curioso e exigente, lúcido e consciente dos outros e do mundo. Demasiado consciente…

Contigo a trabalhar no Porto só nos víamos muito raramente. Para mim era como se te tivesses tornado num verdadeiro mestre da fuga, um tipo que de vez em quando se põe a andar como quando eras adolescente para o planeta onde só tu moravas, mas que acaba sempre por voltar. E era como se nada se passasse…ou tivesse passado. A mesma gargalhada, o mesmo humor refinado, a mesma inteligência e lucidez a olhar o mundo, o mesmo olhar meigo e duro de quem exige sempre o máximo de si próprio. Desta vez não vais regressar. Mas regressaremos nós um dia para continuar as nossas conversas.

 

Artur

 

sábado, 15 de agosto de 2020

FILOSOFIA NO ESTÁDIO

No discurso religioso somos culpados assim que nascemos por via de outros que fizeram qualquer coisa; no discurso tributário somos culpados assim que conseguimos algum rendimento do nosso trabalho; no discurso desportivo somos culpados e castigados a torto e a direito porque pagamos quotas e bilhetes e ainda nos arriscamos a ver a nossa equipa perder. Como na religião, em Kafka a culpa não é uma questão voluntária de escolha do indivíduo, basta este existir para ser culpado ("O Processo"). A vida é uma sucessão de encontros e desencontros com o castigo e a punição sem se chegar a perceber bem porquê. Em Dostoyevsky o homem é culpado voluntariamente se assim o decidir na sua consciência, marcando-se desta forma a responsabilidade de cada um ao fazer o seu destino.

Mas nada como o mundo da bola para nos iluminar o esclarecimento e ilustrar o labirinto do comportamento humano. Mesmo não esclarecendo nada não deixa de dizer muito acerca dos paradoxos da existência. É num estádio de futebol que muitas vezes se escondem as mais inesperadas surpresas acerca de quem somos, do que somos, enfim, aprende-se muito quando estamos dentro de uma multidão.

Há muitos anos, era eu ainda um adolescente em fim de carreira quando fui até ao estádio da Luz assistir a um jogo entre duas selecções, Portugal e Suécia. Contrariamente ao que era habitual fui parar lá abaixo às primeiras filas da bancada do peão, uma área onde se consegue ver o jogo quase ao mesmo nível dos jogadores em campo. Agitação habitual após o tocar dos hinos nacionais, apito para início do jogo e…um fotojornalista dentro do perímetro do campo resolve sentar-se numa das caixas de som do estádio e apontar a câmara para obter o melhor ângulo das jogadas. Ora acontece que o jornalista, mesmo sentado bloqueava uma parte da visão de jogo da nossa bancada. As bocas começaram a voar, primeiro num tom civilizado ("Sai da frente…cabeçudo…olha aí que a gente não vê…) até que se percebeu que o jornalista não nos ouvia. Mudou-se a intensidade e o tom ("Ó boi, baixa a corneta…ó filha da p…ó urso do c…sai da frente que a malta quer ver o jogo…"). Ás tantas o jornalista percebe que estavam a falar com ele e olhou para nós. A gritaria aumentava. O jornalista não teve melhor ideia do que nos mostrar o dedo do meio. Nessa altura já ninguém queria saber do jogo. Era o holocausto, a terceira guerra mundial, o ataque final. Começavam as ameaças de levar uma tareia, de ser chacinado já ali, um ou dois   abanavam a cerca de arame e tentavam saltar para o lado de dentro. Entretanto chegou um polícia atraído pelo barulho. Alguém se lembrou de falar com o polícia.

- Ó chô guarda, diga aí a esse gajo que saia da frente que a malta não consegue ver o jogo. - outros mais exaltados pediam-lhe que o prendesse, era um ordinário que tinha estado a gozar com o povo da bancada.

  O policia foi até ao jornalista e trocou umas breves palavras e gestos com ele. Quando se dirigia outra vez à assistência o jornalista sentou-se no chão, facto que motivou uma salva de palmas da parte daquele pequeno grupo da bancada. Foi então que o polícia se dirigiu a nós em tom pedagógico.

   - O homem é um jornalista sueco. Por isso não percebia nada do que vocês estavam a dizer. Se calhar pensou que estavam a gozar com ele. Mas pronto, agora ficou tudo resolvido.

O holocausto foi adiado, as bombas nucleares recolhidas e o linchamento cancelado. Os comentários no entanto continuavam, dada a força da excitação não se conseguir apagar de um momento para o outro. "O homem é sueco como é que haveria de perceber o que a gente estava a dizer" "Bem se podia estar aqui a gritar o resto da noite que não se conseguia chegar a lado nenhum" "O rapaz afinal está ali a fazer o seu trabalho, nem percebeu que nos estava a tapar a vista", etc,etc,etc.

Meia hora depois, já todos de volta ao foco no jogo, houve alguém que decidiu encerrar o episódio com algum brilhantismo. Esperou-se que o jornalista olhasse de novo para a bancada e, em jeito de assinatura do fim das hostilidades, alguém gritou:

 

"Ó cámone…tira aí uma fotografia à gente…

 

Artur

 

(Publicado na revista MORDAZ # 005 sob o tema "Culpa e Castigo" )

 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

MOVIMENTO

 O braço...esticado, parado a meio do movimento, com vontade própria não me obedece, uma luta cerrada entre mim e ele. O movimento que ficou suspenso à espera de alguma coisa que não chega. A ideia de alcançar, querer chegar ali e não chegar. Insisto, obrigo-me a tentar, obrigo-me a insistir a tentar chegar ali a cima da mesa para agarrar aquele objecto...abjecto...dejecto. Parado ali mesmo á minha frente e eu sem lá chegar, obrigando-me a tentar. mais uma vez, e outra, e outra. O braço sem vontade, o movimento parado sem andar, e volto a tentar. Às tantas um pequeno coice, um breve estremecimento, um iniciar muito lento de manobra e por fim parece que...quase que ia jurar que...O movimento que ficou suspenso à espera de alguma coisa, de alguma coisa que acabou por chegar. O braço finalmente, o movimento. E o esforço de nada valer porque apesar do movimento, apesar da tal coisa que acabou por chegar a minha ideia do que queria cansou-se de estar à espera e partiu. Agora mexo o braço mas esqueci-me do que queria fazer com ele...


Artur

A CHAMA

 

À volta da fogueira sentados no chão em plena floresta; à volta da lareira de pedra entre pratos de madeira e castanhas que assam nas brasas; à volta de uma conversa eterna com copos de vinho na mão e aparelhos electrónicos desligados, remetidos ao silêncio. Sobre a mesa do Tempo deitamos as nossas cartas, de jogo, de navegação, de direcções para cumprir o plano. Em silhueta de mulher que dança embriagada pelas sombras celebrando a Vida e a força da consciência de todas as criaturas da floresta. Em corpo de homem celebrando a força do mar, o peso da montanha e as cambalhotas da sobrevivência.  Amanhã tu irás aquele lugar mas não o vais fazer sozinho. Ninguém vai e vem sem levar alguém consigo. Eternos perdedores, ovelhas permanentes no sacrifício das derrotas,de quem escolhe sempre o lado que perde. Numa manhã de nevoeiro atrás da paliçada ouvimos os gritos do invasor vindos da floresta sabendo que aquele será o nosso último amanhecer dessa vida. O discurso do inquisidor dilui-se num som único que faz antever a condenação e a fogueira. E não há palavras nem gestos nem ninguém que o possa impedir. Partimos outra vez para voltar outra vez. Num naufrágio, numa epidemia, numa guerra e mesmo até raramente de razão natural ou velhice. Em qualquer uma delas arranjamos sempre forma de nos encontrarmos para nos podermos ajudar, para com a nossa presença relembrar ao que viémos. Aqui, oficina negra e malcheirosa, depósito daquilo que de mais atrasado e negativo pode ainda existir, aqui voltamos para trabalhar e tentar evoluír de uma forma mais consistente e segura. Como um curso que se vai fazendo, cadeira após cadeira, existência lectiva após existência lectiva. As fogueiras na floresta, as lareiras em torno das quais nos juntamos são as breves pausas da cantina entre aulas. São o espaço de comparar relatórios, avaliar progressos, alinhar estratégias futuros. Mesmo que só se digam disparates e a conversa seja do mais mundano  que pode haver. Porque somos todos um apenas que se multiplica quando desce para fazer a sua formação, acumular as experiências. Estabelecemos equipas, distribuímos papeis, atribuímos funções. Não há exames nem chumbos mas apenas repetições até que se fique a perceber a matéria ou que a semente que plantámos comece a crescer sozinha.

Por isso quando nos abanam com o medo de morrer, respondemos : "Eu sou a morte!" Quando nos tentarem vender o líquido da eterna juventude : "Eu sou a vida!" E somos tudo não sendo nada, breves passagens anónimas por esta realidade absurda e caótica que divide a realidade em dois e que não deixa perceber para além do imediato, do supérfulo, do cruel.

As nossas conversas à volta da lareira são os pequenos pontos de referência onde o universo é glorificado pelas partes que celebram o Todo, que se torna Uno pela força do amor. Por isso nos continuamos a juntar, por isso seguimos juntos até finalmente nos encontrarmos de novo no mesmo Ser naquele lugar a que chamamos casa.

 

Artur