segunda-feira, 28 de julho de 2008

SIM, O MAR

Verão, Sol radioso de mil reflexos sobre a água, praia dourada aos pés de crianças que correm despreocupadas, banhistas destemidos em mergulhos arrojados, mulheres esculturais em passo elegante, provocador, pranchas de surf no horizonte, ondas de espuma branca, quase imaculada.
Verão, barracas de campismo selvagem, latas de atum e fogueiras ateadas nos confins da memória. Um tempo em que tudo era dourado e promissor. Partidas intermináveis de futebol, sem canseira. Os amigos, as longas conversas deitados no areal húmido da noite, os namoros e as paixões, o calor e a água fria para refrescar. A humidade inesperada de uma generosidade feminina. Ao longe um rádio canta uma canção dos Xutos: “É amanhã dia 1 de Agosto, E tudo em mim é um fogo posto…” E amanhã haveria se houvesse, não era importante, não era “agora”.
Praia, pequenos pés a correr atrás de uma bola, perguntas infinitas, chuvas de “porquês” de uma réplica nossa, minha, em ponto pequeno. O bater dos pés e o ensino para perder o medo, o mexer dos braços, as primeiras braçadas, um Ser em crescimento.
Verão, mulheres gordas com impinges salteadas no rosto a bater palmas e a chafurdar num gelado, cães coxos a vadiar pela praia, um anão zangado numa paragem de camioneta que não chega, barulhos de cantores pimba no ar como anúncios de invasão eminente, piqueniques de saloios que deixam um rasto de lixo à medida que se movimentam e um cão coxo a vadiar na praia, focinho no ar como quem procura. Ondas de um metro e pouco, água fria demais, casais de namorados, a arrulhar no patético da sua condição de felicidade, miúdos com panamás maiores que a cabeça a encher baldes de areia, excursões de creches como pequenos exércitos, linhas que desenham a praia de cima para baixo e vice-versa, e um cão, coxo que caminha com o focinho no ar.
Verão, aparente encontro da descontracção com o lazer, época ideal para zangas familiares, foguetada nas aldeias e fogo nas florestas. Bombeiros e população, população e bombeiros, e jornalistas e grande confusão num cenário de noite escura iluminada pelo dourado das chamas. E a correr passa pela câmara um cão coxo de focinho no ar meio assustado, meio à procura. E um coelho sempre atrasado que não consegue explicar para onde se dirige, e dois idosos a tentarem um equilíbrio difícil no encontro acidentado dos corpos nus cobertos de pregas que o tempo foi desenhando.
E o Mar, sempre o Mar a dançar à minha frente, o filme de uma existência, o mapa de uma Vida, o Mar sempre que caminho atrasado para chegar a lugares que não sei onde ficam, de focinho no ar a cheirar não sei o quê, à procura do que não consigo achar. O mar, sim, o mar…

ARTUR

Releituras: #4 “Mesquita de Córdova (pormenor)”


Se a morte, essa daninha, te espera, como, de certa atinada certeza o faz, tal-qualmente, aliás, sempre fez e, de consabida previsão, não deixará de fazer, então sossega-aguarda pela sua certeira chegada, a não ser, claro está, que ela, de cenho arregaçado, empunhando a fria gadanha ou, quiçá, outro mais moderno aparato de mondar os campos-de-gente, encontre, ela própria, por tão antiga ou até enfado, o fim de perecer, isto é, de a morte mesma morrer; de todo o modo, a pergunta que tão descabida hipótese coloca ao vivente, em rigor ao sobrevivente - que somos todos, eu que ainda escrevo esta linha e tu que me lês agora - é: se a morte morresse quem a ceifava, assegurando também a escolta e o Norte em direcção ao último destino? iria ela sozinha pelo caminho que jamais de singelo alguém trilhou, ou haveria uma sobremorte, de carranca capaz d'assustar e fazer temer aquela cruenta que nos aflige? ouço-te, de resto, contra argumentar, Disparate, a morte não pode morrer, ora por não querer ir sozinha, ora por fazer falta ao justo equilíbrio da renovação, ciclo vital do que é matéria viva-pulsante, ora, em fim, pela pura-simples razão atrás aventada de não ter ela, a mais triste por suportar infinda existência, quem lhe dê o merecido descanso após tanto trabalho e constante cuidado a prover o previsto desfecho à ensandecida perfídia dos homens.

NB: O meu Escrevinhices faz hoje 3 anos.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

NO EXPRESSO DA SEMANA PASSADA


Crónica de um achamento
Um texto inédito de Eça de Queirós
"Colombo e o seu Centenário" é um texto inédito, que aqui revelamos, que Eça de Queirós escreveu sob o psedónimo de João Gomes.

Irene Fialho
0:00 | Sábado, 12 de Jul de 2008



Link permanente: x
http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/363769



D.R.
“João Gomes” foi um pseudónimo de Eça de Queirós no início dos anos 1890
No Eça de Queirós - In Memoriam, de 1922, a reprodução dum recorte de jornal, com riscados e acrescentos manuscritos, tem a legenda "A correspondência de Fradique Mendes - Uma prova emendada por Eça de Queirós".

Lido, o texto não corresponde inteiramente a nenhuma das prosas sobre Fradique ou por ele "escritas". Porém, o recorte de jornal é semelhante a outros usados pelo autor para a construção do livro, saído em 1900, e alguns fragmentos do texto encaixam-se numa carta de Fradique, "A Mr. Bertrand B. - Engenheiro na Palestina", comentando a inauguração do caminho-de-ferro de Jafa a Jerusalém, em Setembro de 1892. Pensava-se ser esta a única peça d' A correspondência de Fradique Mendes que não tinha tido origem numa crónica jornalística, mas era provável que o recorte pertencesse a uma coluna da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, onde Eça publicou durante dezassete anos, assiduamente em 1892.

Elza Miné, estudiosa da Gazeta e seus colaboradores literários portugueses, generosamente enviou do Brasil o microfilme do periódico fluminense daquele ano. Lá estava, sob a rubrica, tão queirosiana, "Notas Contemporâneas"", o título "O caminho-de-ferro de Jerusalém", por "João Gomes", pseudónimo de Eça de Queirós no início dos anos 1890.

A surpresa maior foi o encontro seguinte, no mesmo microfilme, de outra das "Notas Contemporâneas": nesse ano de 1892, como aconteceu um século mais tarde, o mundo inteiro celebrava o achamento da América por Cristóvão Colombo e Eça, escrevendo "Colombo e o seu centenário" para um jornal do Brasil, legou-nos a sua visão crítica da celebração da descoberta do Novo Mundo, interrogando os motivos que levavam os povos ibéricos a celebrar um acontecimento cujas consequências, afinal, lhes tinham sido pouco proveitosas.

Esta crónica, inteiramente desconhecida desde 1892, porque não foi reaproveitada pelo autor para os seus livros nem foi compilada após a sua morte em nenhuma das colectâneas então editadas, publica-se agora: também ela foi assinada por "João Gomes", nome que a encobriu durante cento e dezasseis anos.


Notas contemporâneas
Colombo e o seu centenário
O texto inédito de Eça de Queirós.
João Gomes
23:00 | Sexta-feira, 11 de Jul de 2008

Os centenários têm a excelente utilidade de avivar e recolorir largos pedaços de Historia, que já se apagavam, se sumiam, conservando apenas aqui, além, algum contorno incerto e turvo...
Há anos, em Lisboa, o centenário do "Príncipe dos Poetas" levou muito homem culto (e mesmo de Letras) a comprar enfim os Lusíadas: e os divinos Sonetos, as Elegias choradas com tanta paixão e arte "sob los rios de Babilónia", foram finalmente lidas (ou folheadas) porque, no Rocio e no alto da Graça, havia luminárias em honra de Luís de Camões. Não foi tanto porém a Obra como a Vida do poeta que teve assim o seu feliz momento de ressurreição.
E como ela andou tão espalhada e repartida pelo mundo, através dela se rememorou - desde a Lisboa do século XVI, e da corte letrada da infanta D. Maria, e do soalheiro turbulento de Alhos Vedros até aos combates da Índia e às façanhas dos Mares do Oriente - toda uma soberba página da vida heróica da Renascença Portuguesa. Esse centenário foi assim, entre préstitos e charangas, uma preciosa vulgarização histórica. Portugal necessita de vez em vez absorver um largo trago da sua História - como os velhos de esvaída força necessitam beber goles de vinho generoso e forte, de Borgonha ou do Porto.
A mesma útil lição do Passado nos está sendo dada pelo centenário de Cristóvão Colombo de quem, por entre este tumulto de ideias e factos que nos solicitam andávamos tão esquecidos (nós os ignorantes), que apenas sabíamos que ele vagamente descobrira a América, e vagamente morrera em miséria. Todo o resto era uma mancha escura. Dela agora, graças ao centenário, vai surgindo (para nós os ignorantes), em um relevo certo e cada dia mais vigoroso, a imagem do herói e do seu tempo. Já começamos a saber toleravelmente o nosso Colombo - e como numa aventurosa galé arribou à Madeira onde herdou os papéis e as cartas dum velho mareante português; e como muito tempo errou por Lisboa, oferecendo um Mundo novo, desatendido do "Rei Perfeito", desdenhado pelos nossos cosmógrafos que só tinham olhos para Oeste; e como por um triste inverno atravessou a Espanha quase mendigando com o seu filhito Diego; e como bateu à porta do Mosteiro de Santa Maria da Rábida para nele encontrar, além do pão, aquele inteligente patronato de padres e fidalgos que, através de lutas, de dedicados esforços, o puseram enfim a bordo da Santa Maria, com uma bolsa de 6.000 maravedis, para ele ir buscar esse mundo de que tanto se riam os grandes doutores de Salamanca. E não é só Colombo que assim renasce, outra vez vivo e real, mas todos esses homens fortes que o amaram, com ele colaboraram no grande achado, e, de todo esquecidos, vêm hoje receber a sua parte de glorificação - o bom prior do mosteiro da Rábida, Juan Pérez de Marchena, um santo que era um cosmógrafo, Pedro González de Mendoza, grão-chanceler de Castela, que toda uma tarde defendeu o seu roteiro perante os reis católicos, no acampamento de Baeza; o velho duque de Medina-Coeli que o ajudou a equipar a Niña e a Pinta; e outros ainda até essa boa alma do infante D. Juan, que cria nele, como num predestinado e valente resgatador de almas.
Também estes devem partilhar das coroas do centenário - quando não seja senão para animar, pelo exemplo da sua fé generosa (tão em contraste com a resistência obtusa dos sábios de Salamanca, e de todos corpos constituídos da Espanha) aqueles a quem ainda hoje um grande homem possa levar a confidência de uma grande ideia.
Grande homem decerto o foi, este Colombo! Partira de Itália um simples piloto, e o ar de Espanha fez dele um herói. Melhor! Fez dele um Místico, pondo-lhe na alma essa Fé que vale mais que o Génio, porque só ela comunica ao homem a força que pertence a Deus. É, com efeito, uma ideia de misticismo que impele Colombo para os mares. O que ele pretende não é completar o mapa do mundo, em bem da ciência, mas achar essa misteriosa Índia onde há o ouro (o ouro excelentíssimo, como ele dizia) para com ele, em bem da Fé, equipar dez mil cavalos, cem mil infantes, e ir conquistar Jerusalém!
O que Colombo procurava através das névoas atlânticas, era na realidade o Santo Sepulcro.
E de que essa Índia seria descoberta, e colhido todo esse ouro, seguro estava ele - porque assim o predissera o profeta Isaías!
Parte enfim de Palos. Decerto levava roteiros e mapas. Mas que lhe importavam? O mapa único com que estudava, na incerteza dos altos mares, era o que lhe desdobravam de noite, diante da proa da Santa Maria, dois grandes anjos, e onde ele via brilhar num contorno de lua, a Índia e todo o seu ouro! Por isso quando os ventos sopravam com desusado furor, ele, indignado, mandava-os emudecer, em nome de Deus. E se as altas vagas batiam devoradoramente essas pobres caravelas, mal pregadas, frágeis como os nossos caíques de cabotagem, Colombo, indiferente à manobra, debruçado da amurada, à luz mortiça dum farol, lia às vagas, para as serenar, o Evangelho de S. João. Assim era no século XV um almirante mayor del mar oceano. E assim chegou pilotado pelo Espírito Santo. Além está a terra... A Pinta dá naquelas solidões, com uma velha colubrina o primeiro tiro, anúncio primeiro das mortandades que hão-de vir. Mas, nesse instante só se pensava em cravar depressa nel mundo novo, uma cruz, signo de infinita paz, do divino ensino trazido aos infiéis! Finalmente Colombo desembarca. Gajeiros e pilotos choram de pura alegria, aclamam o Almirante. Só Colombo está sereno. Porquê? Ele o diz - "porque nesta empresa das Índias não me aproveitou razão, nem matemática, nem mapas mundi; simplesmente se cumpriu o que disse Isaías!"
Há certamente razões para celebrar este homem - mas não sei se as há realmente para celebrar a sua descoberta. Dela datam a decadência e todas as ulteriores misérias de Portugal e de Espanha.
Até a essa fatal partida de Palos, nós éramos duas nações ditosas, compostas sumariamente de homens de espada e de homens de enxada. O homem de espada ia adiante rechaçando o Mouro, e o outro seguia atrás, com a sua enxada, granjeando a terra (que de resto o mouro já regara e preparara bem destramente!) Assim íamos edificando a prosperidade da pátria sobre a base de trabalho. E, dentro de nossa casa, éramos ricos. Todas as grossas e lentas caravelas da Europa vinham a Lisboa buscar trigo: e na Andaluzia, terra da amoreira e gado, havia dezasseis mil teares tecendo alegremente a seda e a lã. Era o tempo dos Bucolistas. E o mais ambicioso poeta, exclamava:
A mí, una pobrecilta
mesa, de amable paz bien abastada,
me baste!...

De repente, porém, uns atrás dos outros, nau após nau, Colombo descobre as Antilhas, Vasco da Gama acha o caminho da Índia, Ponce de León avista a Flórida, Balboa atravessa o Panamá, Álvares Cabral aporta ao Brasil!

E todos eles voltam perturbados, trazendo a notícia e já a posse de terras cheias de especiarias, de marfim, de ouro e de diamantes! Foi como se a estes dois homens, honestamente curvados sobre a terra, o Espanhol e o Português, tivesse saído o prémio grande da lotaria.

Houve uma brusca revolução nas suas ideias, nos seus hábitos, na sua moral. Todos, tumultuosamente, abandonam casais e teares. Para quê trabalhar? Para juntar ao fim de uma vida suada e dura, dois dobrões no fundo de uma arca? Mas só nas Molucas há um ilhéu, cujo solo é todo de ouro, de ouro bruto! Mas as Índias estão atulhadas de pimenta e cravo, e uma mão cheia de especiarias vale uma légua de centeio e milho! Mas o Samari, que é mouro, e portanto presa justa, tem no seu palácio cestas cheias de rubis e diamantes! Basta embarcar, trazer e mercadejar! E tudo embarca. Campos e teares ficam desertos. Dos sete milhões de carneiros que tinha a Andaluzia, escassamente lhe restam alguns milhares, comendo cardo pelas fráguas.

Lisboa já não tem trigo para vender - já não há pão próprio em casa. Há pimenta - com que se compra o pão alheio. Espanha e Portugal não são já duas nações, que pelo trabalho se desenvolvem normalmente, mas duas metrópoles ociosas, de braços cruzados, diante dos seus contadores, explorando ao longe, por meio de escravos, jazigos de ouro e feitorias de tráfico. E, opulentas, gozam a vida.
Mas que sucede? Que pouco a pouco se esgotam os jazigos de ouro. Que outras raças vindas do Norte, dextras nos mares, mais tenazes e mais hábeis, com aptidões de mercancia imensamente superiores se apoderam das suas feitorias, das suas naus. E aqui fica o desventuroso peninsular sem feitoria e sem ouro! Nada lhe resta. Os campos? Incultos. Os teares? Partidos. Os gados? Comidos nos tempos dos festins, com a pimenta e o cravo do Oriente. E, pior que tudo, perdido o hábito forte e salutar do trabalho! Que fará? Quando ele era rico, e para que Deus lhe perdoasse os meios sangrentos por que enriquecia, fundara e dotara muitos mosteiros, agora poderosos. É esse o seu recurso extremo. E o peninsular, lançando aos ombros a capa do Lazarilho, vai esmolar o caldo de todos os dias à portaria dos conventos.
Tem todavia ainda outro recurso. As descobertas, essas Américas e essas Índias, com o seu comércio, tinham feito desenvolver entre as raças do norte que com elas aproveitaram, uma instituição nova e estranha - o Banco. O Banco era ainda mais rico que o mosteiro - de facto ia substituindo o mosteiro. De sorte que o Peninsular (apenas adquiriu esta certeza) retomou a capa de Lazarilho e partiu a implorar a vida de cada ano aos Bancos de Inglaterra e França... E assim vive desde que os seus grandes pilotos o presentearam com um mundo. Não vejo por isso que haja uma superior razão em celebrar estas descobertas...
Nós, os Portugueses, fomos talvez mais justos, atendendo apenas, na descoberta, ao poema que ela ocasionou - esquecendo prudentemente a passagem do Cabo, e glorificando só os Lusíadas.
Enquanto à América, só ela realmente se orgulha em ter sido descoberta (vivia tão feliz, quando ignorada!) não me parece que deva especialmente celebrar Cristóvão Colombo como o homem sine qua non, a quem ela deve a sua vida de civilizada.
O genovês não lhe foi essencial, para ela emergir do segredo do Mar tenebroso!
"A América lá estava", como dizia o bom Narváez.
Ora, sempre que no século XVI se tratava de ir buscar um Mundo, quando não partia já um galeão espanhol, partia logo um galeão português. Em Cádis ou em Lisboa, havia constantemente um mareante, pronto a ir com alguns mapas incertos, e o coração posto em Deus, fundar, através dos mares, um reino novo. E se em 1492 Colombo não tivesse descoberto a América pelo norte, lá estava já Pedro Álvares Cabral que, em 1500, a descobriria pelo sul. Eram para esse continente mais oito anos de sossego e obscuridade ditosa!

Garatujas: #5

domingo, 20 de julho de 2008

TATI A FECHO


FORZA BASTIA
Jacques Tati, Sophie Tatischeff
França, 1978

No longínquo ano de 1978 uma equipa da Córsega chega pela primeira vez à final de uma competição europeia, a da Taça UEFA, tendo como adversário o PSV Eindhoven. Consciente da importância e solenidade daquele dia o presidente do Bastia, Gilbert Trigano, decide registar o momento para a posteridade. Para tal dirige-se a uma das maiores referências da comédia do cinema mundial, Jacques Tati (1907-1982), encomendando-lhe um filme sobre os acontecimentos. O resultado é um documentário com cerca de 26 minutos de duração que, por várias vicissitudes, acabou por se tornar num símbolo marcante nas vidas de todos os intervenientes. Naquela comunidade, porque registou a magia de um dia histórico e único, um acontecimento que perdurará para sempre na sua memória colectiva. Na vida do realizador por se tratar do seu último trabalho antes de morrer e também por funcionar de certa forma enquanto essência da sua brilhante obra, pequeno espaço fílmico onde se podem encontrar as linhas mestras de uma expressividade criativa que fez escola e influenciou a carreira de outros comediantes que se lhe seguiram.
Antigo jogador de Rugby e mimo de cabaret, Tati entra para o cinema na fase de transição do “mudo” para o “ sonoro”. A sua compleição e destreza física são uma das armas de que se socorre para desempenhar personagens que se exprimem muito mais com o corpo do que através da fala. Em FORZA BASTIA Tati mergulha nas entranhas de uma comunidade como um médico no corpo de um paciente. Encontra-lhe a respiração, o bater do coração, a vibração dos sentidos, a fotografia do sistema nervoso, o diálogo entre a alegria e a ansiedade. Os únicos sons humanos que conseguimos ouvir são os que provêm do ruído indistinto da multidão. De resto, quem fala é o sino da igreja, as buzinas dos carros, o passo apressado do andar das pessoas, um cão ao longe. Nesta pequena parábola documental, Jacques Tati ilustra e regista a experiência do jogo através da diversidade do espaço envolvente dando-lhe uma densidade social que ainda hoje é alvo de estudo em meios académicos.
Embora não referenciado em muitas das suas filmografias, este filme não deixa de ser o último da sua obra. A explicação radica talvez no facto de o realizador nunca ter chegado a concluí-lo na fase da montagem. Por alguma razão o filme andou perdido vários anos até que foi (re)descoberto nas instalações do cine clube local. Entregue a Sophie Tatischeff ( filha do realizador), coube-lhe a tarefa de o terminar na sala da edição. De certa maneira Tati regressou da morte quando a sua filha terminou o seu último trabalho…
FORZA BASTIA é um daqueles raros momentos em que, à força do encontro entre diferentes áreas de actividade e diferentes maneiras de ler a vida, a Humanidade se vê confrontada com uma razão forte para celebrar (-se). Um jogo de futebol, um dia único na vida de uma comunidade, um filme documental, um reencontro familiar… um dia de festa.

ARTUR

Garatujas: #4

terça-feira, 15 de julho de 2008

Releituras: #3 "Se Vós Entrais"


Vem, muito naturalmente, até às portas da percepção e, do mesmo singelo passo, as tentarás transpor. Concedo. É também natural, que, aí chegado, queiras - pois, porque não? - ultrapassar o que tolhe e em flor s'espraia, multicor. Nem são as coisas deste mundo que t'importam; sabes - mesmo que ignorar não fosse, como é, impossível - que entrando no balanço da onda, o caleidoscópio é ainda vertigem. Que a vertigem é, d’igual, abismo. Que este é um descer às fundas profundas e que dele, do abismo, apenas sobrevém - diria sobrevive - a morte.
Tudo isso sabes, pelo exemplar exemplo d'outros fantasmas que passam, verdescentes, ou que guardas na memória, mesmo naquela recôndita. Porque viste tantos desses nem te preocupas em pensar que breve engrossarás as fileiras. Ademais, como resistir à fronteira, àquele limiar não mais umbrado? Qualquer, na tua exacta situação faria o mesmo; qualquer, se de símile sorte e ventura, não pestanejaria, porquanto todos temem que a mais breve desatenção desvie o rumo d'onerosa alvura, d'essencial essência do que virá; ao encontro almejado; esse cerne sagrado-profano que compensará tantos futuros - mas certos - agravos, penas e humilhações. Ora - isto é importante - é necessário estar maximamente desperto para s'alcandorar à transcendência, à paz suprema e final, serenidade de mil fontes raiadas, enfim, paraíso transideral onde se transgride esse famigerado limite que, desde há séculos, nos roubou as coisas no em si de si próprias para nos devolver um mero teatro cambado, adulterado, onde faíscam pálidas luzes que lambuzam o céu de falsa feérica coloração.
Colocada a questão nestes termos, o que t'impede de cumprir o inevitável destino de, por menos qu'em fugazes momentos, ser completa e infindamente feliz?

quarta-feira, 9 de julho de 2008

OLHOS DE CAÇADOR


OLHOS DE CAÇADOR
António Brito
Sextante Editora
Lisboa, Nov. 2007

“Colado ao chão, como um intruso, o vento trazia-me aos ouvidos inquietos, o ritmo dolente dos tambores misteriosos: a voz de África. Os homens, alheios à morte que se acercava, cantavam e dançavam ao ritmo do batuque, rodeando fogueiras, agitando velhas Mausers como lanças emplumadas, contorcendo os corpos suados, embebidos em poeira. As mulheres, que palmilhavam quilómetros pelas veredas estreitas da floresta, transportando sobre as cabeças molhos de granadas de morteiro para a s bases distantes, numa logística de formiga quando a noite caía, esqueciam as armadilhas em que tropeçavam, montadas por nós, e batiam palmas. Pareciam competir com o arfar dos tambores de pele de elefante ou o som cavo dos troncos ocos. Uns e outros rivalizavam com os sons mais alegres dos xilofones de bambu. Era estranho, muito estranho, mas eu amava de noite esses homens e mulheres que odiava e metralhava de dia…”
In Olhos de Caçador

Os veteranos de guerra, de quase todas as guerras, são seres extremamente incómodos, se fizerem a si próprios o favor de sobreviver. Completamente alheios ao processo decisório, acabam por ser os protagonistas de um cenário terrível cujas memórias nunca mais os abandonarão até ao fim dos seus dias. Se morrerem lá, ao serviço da Pátria, tornam-se heróis, nomes relembrados em dia de festa. Se regressam, estragam o retrato da nova ordem diplomática, pedem subsídios e reformas, têm doenças crónicas nomeadamente do foro psiquiátrico, em suma, atrapalham os dias do novo poder político que preferia celebrá-los enquanto glórias do passado em vez de problemas do presente. Portugal, talvez pela sua natureza semita de comércio de vão de escada, tem muita dificuldade em aceitar que houve pessoas da sua gente que deu o último sacrifício pelo seu país. Mas houve, e muitos deles continuam vivos para testemunhar que assim aconteceu.
Neste livro escrito por um veterano pára-quedista, vamos acompanhar o percurso de Zé Fraga, um contrabandista e passador de emigrantes da Beira Baixa que, após a sua detenção pala GNR é alistado e mobilizado compulsivamente para África. Colocado no Norte de Moçambique numa companhia de caçadores, para além das péssimas condições com as quais se tem de desenvencilhar todos os dias, Fraga é também vítima da prepotência do seu capitão (Galo Doido), que para além de violento e brutal na sua conduta para com os subordinados, passa os dias dentro do acampamento. A perseguição a Fraga, um rebelde incorrigível, intensifica-se quando percebemos que um GNR que este tinha deixado coxo para a vida era nem mais nem menos que o próprio irmão de “Galo Doido”.
O livro, para além de uma série de situações habituais de campanha, tem a particularidade de introduzir o leitor no teatro de operações profundo sem grande espaço para tiradas filosóficas que não fossem as que se prendem com a sobrevivência. Os personagens com nos vamos cruzando são extractos de pequenas histórias de vida, como a do jovem Capelão ou do Alferes Perdigoto. Umas que regressam a casa e outras que terminam no continente africano. É pois no âmbito do registo que vamos acompanhando a vida de Fraga entre combates e restrições da pior espécie, prepotências, doenças, calor e chuvas intensas, etc, etc. Não sendo um tipo inédito de romance, não deixa de ser extremamente aliciante de acompanhar tendo em conta que ainda muito falta escrever e filmar sobre uma guerra que durou treze anos e se estendeu por três frentes distintas. Um período terrível da nossa memória colectiva que consistiu numa guerra com todas as letras. Não foi uma brincadeira e esteve longe de ter sido fácil. A prová-lo estão as cerca de 10 mil baixas em combate e as centenas de veteranos que ainda hoje vivem entre nós, muitos na nossa própria família. Porque é preciso ter memória também é preciso ter respeito. Se desconhecermos o nosso passado, ou o decidirmos ignorar, estamos a hipotecar o futuro, perdendo a identidade. E um povo sem identidade é um povo que não existe. E eu quero continuar a ser português…

ARTUR

Box-Art (série)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Releituras: #2 "A Chave"



Eis o guardador da chave, que a transporta, como deveis calcular para maior sossego e cuidado, ao pescoço. Essa abre para as sete setenta portas que dão o almejado acesso, e só esse, a sete outras setecentas que permitem alcançar os solitários caminhos das sete setenta mil daquelas, qu'escondem (mas também poderão revelar) cada qual o seu misterioso, definitivo e final segredo. Uma explica, cabal completamente, os inumeráveis peixes, outra as plumiformes aves, outra os leopardos, outra as montanhas, outra as leves nuvens e as mais etéreas estrelas, os duros cravos da cruz, o mar e os rios, o canto e a voz, os instrumentos de culinária, os rios do nosso sangue, as pulgas, as moscas, o suave trinado, o próprio rouxinol, os elefantes, as casas, os labirintos, a saída dos labirintos, a perdição nos labirintos, as rugas e cãs que vos comovem, a alba e o crepuscular ocaso, o acaso, os trens, os cavalos, as chaves, as portas, o enlutado, as searas, os degraus do patíbulo, os cães, os cães raivosos, as árvores, as plantas medicinais e a medicina, os venenos, as invejas, os penicos, a alma que s’evola do corpo, o corpo, o porco, o pêlo, o novelo, o gato que brinca, os telhados, as cercanias, as piruetas do velho, as cabriolas da noiva, a festa e o de comer, a bebida e a sede, o dessedentado, o ídolo carcomido, o dente cariado, as vagens, os tapetes, os taipais e canivetes, o mandarim refinado, o azeite, o vizinho agastado, a morsa, a cabala, o anzol, a centelha e o trovão, o crepitante fogaréu, o lar, as pantufas, os tesourões, os tubarões sangrentos e ainda esfomeados, os dobrões que já s'esverdinham e o verdete, as tarântulas, a meia-luz, a sola e o prego (do sapato), as camisas de punhos em primor, os botões, as decisões, as circunvalações, as convulsões, revoluções e outras tantas questões que entretêm os homens e assim os distraem da soberba desse qu'esconde e preserva a cifra da porta para toda quanta maravilha.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

SERMÃO AOS MATRAQUILHOS (pequeno extracto)

As viagens para as Azenhas do Mar à Sexta-feira à tarde eram autênticos números de circo, animados e repletos de acontecimentos. Talvez por se ver toda reunida sem ser à mesa, a família manifestava o seu desconforto de proximidade naquele exíguo espaço do “carocha” 1300 que o meu pai andava eternamente a pagar todos os meses em suaves prestações. Começava logo por ele e por um ridículo boné de pala aos quadrados (tipo Lenine) que ele usava apenas para aquela ocasião e umas luvas cortadas a meio dos dedos de piloto de automóveis. Cigarrilha ao canto da boca e estava completo o quadro. A mãe, em permanente pose muito distante observava distraída a paisagem, fazendo aqui e ali a sua breve interrupção para mandar o marido andar mais devagar “olha as crianças” “ não vês que vai ali o camião”, etc. Cá atrás, eu e os meus irmãos já há muito que tínhamos iniciado a nossa disputa universal pela posse de território, uma luta inglória, sempre longe de solução definitiva. Normalmente a Matilde sentava-se ao meio, entre mim e o Rodrigo, “instruções de cima”. Com o tempo e os nossos corpos mais crescidos o mais natural era nunca chegarmos às Azenhas na mesma posição em que partíamos. O carro virava para a esquerda, vai de esmagar o desgraçado sentado à esquerda, o carro virava para a direita, toca a esmagar o gajo do lado direito. O carro mantinha-se em linha recta, esmagava-se o que se sentasse ao meio. Tentando não nos ouvir, o pai ligava o rádio aos berros e aproveitava para trocar ideias com a mãe sobre o momento político actual. Muito mais optimista que ela, encontrava sempre uma ponta de esperança na mais negra nuvem de previsão de futuro. Os comunistas eram apenas uns galhofeiros habituados a folclore, mas com pouca capacidade de chegar ao governo. O país tinha ainda muito que andar até aprender a viver em Democracia. Provavelmente só na geração dos netos é que isso poderia acontecer. A mãe culpava os comunistas por todos os males do mundo, inclusive as doenças do Papa. Estava sempre com receio desde os tempos convulsivos que se seguiram à revolução. Achava que havia demasiada liberdade e demasiada bandalheira à solta. Os jovens era só droga e isto e aquilo. A igreja nunca tinha sido tão maltratada. O pai respondia-lhe com a tranquilidade de três eleições decorridas sem problemas de maior, de como era mais que urgente a mudança, que o tempo tudo cura, etc. Depois das notícias a música. Se era música pseudo-popular o Rodrigo esganiçava uma voz de matrona minhota e enchia o carro com guinchos ensurdecedores. A Matilde levantava os braços e fingia que estalava castanholas. Era a risota geral. Se saía do rádio um “rock” a bagunça cá atrás era garantida. Cabeças que se tentavam desprender dos corpos, guitarras imaginárias a saltarem nos braços, gritaria. Como a movimentação fosse demasiado viril, os choques eram inevitáveis. Seguia-se mais uma sessão de chapada e gritaria. Antes de chegar a Sintra o “carocha” 1300 encostava para uma paragem “técnica” à beira da estrada. Nesse momento o condutor fechava as duas mãos e rodava os braços na nossa direcção em curvaturas inevitavelmente agressivas que acabavam por chocar em tudo o que mexia. Uma decisão terrivelmente injusta se tivermos em conta que o maior culpado podia não ser o mais “privilegiado” da distribuição do castigo. Em dias normais havia sossego e tranquilidade até ao fim da viagem. Em dias mais agitados, geralmente na Primavera, o meu pai sentia necessidade de uma segunda paragem técnica perto de Colares.
Finalmente chegávamos. A correria para a escolha do beliche de cima, o pequeno tornado que tudo virava à passagem, janelas escancaradas, os brinquedos esquecidos desde a última vez, os concursos de traques antes de ir dormir. Por volta dos nossos 15 anos um novo elemento veio compor o efectivo da família. Chamava-se Ajax e era pastor alemão. Foi mais ou menos quando tivemos as nossas primeiras motas para ir até à Praia das Maçãs ou à Praia Grande “armar aos cucos” de capacete integral AGV debaixo do braço. O Ajax seguia-me para todo o lado, adoptando-me como referencial de dono. Afinal de contas era sempre eu em Lisboa que o levava à rua. Os fins-de-semana nas Azenhas eram aventuras graduais cuja magia evoluía conforme a idade. Ainda hoje é…pelo menos para mim. Mesmo depois da estúpida morte da Matilde…

ARTUR

Caprichos (série)

terça-feira, 1 de julho de 2008


JOYEUX NOEL
Christian Clarion
França, Alemanha, Reino Unido (2005)


Um desafio de futebol no meio de uma guerra seria um dos cenários mais improváveis de imaginar. No entanto, esse e outros acontecimentos menos ortodoxos ilustraram uma das partes mais caricatas da I Guerra Mundial, mais concretamente no Natal de 1914. Mas comecemos pelo princípio, pelas personagens. Nikolaus Sprink é um jovem tenor de sucesso na ópera de Berlim que vê a sua carreira subitamente interrompida pelo recrutamento para a guerra; Audebert, um jovem tenente do exército francês deixa para trás a mulher grávida numa região do Norte da França entretanto ocupada pelos alemães, o que o impede de ter notícias da família; Palmer, um padre anglicano escocês decide alistar-se e acompanhar o jovem Jonathan, que o costumava ajudar na missa, para o tentar proteger.
Começada no fim do Verão a “Grande Guerra Civil Europeia” está a entrar no seu primeiro Inverno. Com a chegada das primeiras neves aproxima-se a noite de natal, a primeira nas trincheiras, para milhares de homens longe de casa. Na noite escura os homens tentam compensar a tristeza da melhor forma possível. Acompanhados das gaitas de foles os homens do Corpo Expedicionário escocês começam a cantar canções de Natal. Do lado alemão o tenor Sprink resolve responder da mesma moeda. Timidamente, o mesmo Sprink decide colocar um abeto, símbolo natalício por excelência, na “terra de ninguém”. Aos poucos, alemães, escoceses e franceses vencem o medo e começam a sair de dentro das trincheiras. Em pouco tempo os oficiais dos vários exércitos combinam uma trégua para aquela noite que se irá prolongar pelo dia seguinte. Os homens trocam chocolate, champanhe, mostram as fotografias das famílias. Ergue-se um altar improvisado e Palmer celebra uma missa campal dedicada ao aniversário de Cristo. No dia seguinte, dia de Natal, a trégua é prolongada para que os corpos dos que ficaram na terra de ninguém possam ser resgatados e enterrados condignamente. Pelo meio há ainda tempo de organizar uma partida de futebol. Ao tomar conhecimento destes acontecimentos as altas patentes reagem com mão de ferro sobre toda aquela insubordinação. Há castigos, fuzilamentos por traição e, no caso dos alemães, envio forçado para a frente russa.
Baseado em documentos e testemunhos presenciais, este Natal aconteceu mesmo contrariando todas as regras e todas as lógicas que presidem à gigantesca carnificina que é qualquer guerra. O episódio é retirado do livro Batailles de Flandres et d’Artois 1914-1918, mais concretamente do capítulo L’incroyable Noel de 1914. Muito antes dos célebres motins de 1917, este episódio da noite de Natal de 1914 encerra em si apenas uma vontade: a de tréguas numa fase ainda pouco definida da guerra, funcionando enquanto elemento simbólico da loucura e da condição humanas, perdidas entre fogos civilizacionais. Homens comuns são retirados às suas vidas para servir com a própria vida uma quantidade de interesses que nada lhes dizem respeito. Decidido, discutido e ordenado nas suas costas os soldados limitam-se a seguir o curso previamente trilhado. No entanto, simbolicamente numa noite de Natal a sua humanidade vem ao de cima fazendo imperar por algumas horas a boa vontade solidária. Ao contrário da exploração e análise da crueldade (PATHS OF GLORY, Stanley Kubrick), ou da exibição do desperdício de uma geração inteira (A OESTE NADA DE NOVO), JOYEUX NOEL funciona aqui como uma pausa simbólica, um raio de lucidez que rasga por instantes a tirania das trevas, uma pausa no absurdo da loucura da carnificina. A simplicidade da sua história é reforçada pelo facto de ter sido contada por uma testemunha presencial. Além de premiado nos festivais internacionais de Valladolid e Leeds (2005), o filme foi também nomeado para o melhor Óscar de filme estrangeiro (2006), melhor filme de língua estrangeira dos prémios BAFTA (2006) além de várias nomeações para os Césares (óscares do cinema francês).

ARTUR

Releituras: #1 "As Garras do Tigre"



Rafael, o esbelto, tinha um tigre de papel. Como gostava, Rafael, do seu tigre de papel. Passeava-o preso por um lindo cordel, em longos devaneios pela rua, ora pensativo, ora comendo um pastel. Que delícia, Rafael, passeando o seu tigre de papel, preso por um cordel, saboreando um grande pastel, sonhando, já, com a sua lua-de-mel com Anicas Redondel, a mais bela donzela, lá prós lados de Pinhel. Levaria, decerto, o tigre de papel, preso por um cordel, e comeria um suculento pastel junto de Anicas Redondel, a mais bela esposa, lá prós os lados de Pinhel, quando fosse na viagem da sua lua-de-mel ao salutar Cabo Espichel. E foi a banhos Rafael, ao Cabo Espichel, em lua-de-mel com Anicas Redondel, a mais bela mulher, lá prós lados de Pinhel, e levou também consigo, preso por um cordel, o mais-que-estimado tigre de papel. Que tristeza, Rafael, quando pôs o pé na água com seu tigre de papel. Dissolveu-se o tão amado, só ficando, Rafael, continuando a segurar, naquele grande e belo mar, o inútil cordel, sem o tigre de papel.

Com a desdita, Rafael, até espumou fel.

Perdeu a fome, já não comia, nem sequer um pastel, e a Anicas Redondel, a mais bela senhora, lá prós lados de Pinhel, corria em tropel a arranjar diversões para alegrar Rafael. Em vão, Anicas Redondel, a mais bela cozinheira, lá prós lados de Pinhel, se desfez em engenhos para alindar a vida do inconsolável Rafael, inventando iguarias para convencer o marido a comer o seu farnel. Não queria, Rafael, nem o mais pequeno pastel, mas bebia, todos os dias, de vinho, quase um tonel. E em grande embriaguez, corria Rafael, a afogar as suas mágoas no mais ignóbil bordel dos arredores de Pinhel, agarrando-se, ainda, ao esgarçado cordel mas todo esquecido da sua Anicas Redondel, a mais bela chorosa, lá prós lados de Pinhel. Não podia durar muito, este excessivo Rafael, sem ouvir a sua Anicas Redondel, a mais bela sábia, lá prós lados de Pinhel, e sem poder, sequer que fosse, com o cheiro de um pastel. Mas segurando, sempre, o mesmo cordel e bebendo todos os dias, de vinho, mais de um tonel, com a lembrança perene do seu tigre de papel, levado pela maré forte do Cabo Espichel, quando lá foi a banhos na sua lua-de-mel, com a mais bela sereia, lá prós lados de Pinhel, a tão fiel e padecente Anicas Redondel. Consumiu Rafael, a saudade cruel do seu tigre de papel. Só ficou de Rafael, um fio do velho cordel, e a memória vincada de Anicas Redondel, a mais bela viúva, lá prós lados Pinhel, que maldizia o dia em que o seu finado marido lhe aparecera à porta, trincando um soberbo pastel e segurando, ladino, por um fino cordel, a terrível criatura, o tigre de papel.