terça-feira, 1 de julho de 2008

Releituras: #1 "As Garras do Tigre"



Rafael, o esbelto, tinha um tigre de papel. Como gostava, Rafael, do seu tigre de papel. Passeava-o preso por um lindo cordel, em longos devaneios pela rua, ora pensativo, ora comendo um pastel. Que delícia, Rafael, passeando o seu tigre de papel, preso por um cordel, saboreando um grande pastel, sonhando, já, com a sua lua-de-mel com Anicas Redondel, a mais bela donzela, lá prós lados de Pinhel. Levaria, decerto, o tigre de papel, preso por um cordel, e comeria um suculento pastel junto de Anicas Redondel, a mais bela esposa, lá prós os lados de Pinhel, quando fosse na viagem da sua lua-de-mel ao salutar Cabo Espichel. E foi a banhos Rafael, ao Cabo Espichel, em lua-de-mel com Anicas Redondel, a mais bela mulher, lá prós lados de Pinhel, e levou também consigo, preso por um cordel, o mais-que-estimado tigre de papel. Que tristeza, Rafael, quando pôs o pé na água com seu tigre de papel. Dissolveu-se o tão amado, só ficando, Rafael, continuando a segurar, naquele grande e belo mar, o inútil cordel, sem o tigre de papel.

Com a desdita, Rafael, até espumou fel.

Perdeu a fome, já não comia, nem sequer um pastel, e a Anicas Redondel, a mais bela senhora, lá prós lados de Pinhel, corria em tropel a arranjar diversões para alegrar Rafael. Em vão, Anicas Redondel, a mais bela cozinheira, lá prós lados de Pinhel, se desfez em engenhos para alindar a vida do inconsolável Rafael, inventando iguarias para convencer o marido a comer o seu farnel. Não queria, Rafael, nem o mais pequeno pastel, mas bebia, todos os dias, de vinho, quase um tonel. E em grande embriaguez, corria Rafael, a afogar as suas mágoas no mais ignóbil bordel dos arredores de Pinhel, agarrando-se, ainda, ao esgarçado cordel mas todo esquecido da sua Anicas Redondel, a mais bela chorosa, lá prós lados de Pinhel. Não podia durar muito, este excessivo Rafael, sem ouvir a sua Anicas Redondel, a mais bela sábia, lá prós lados de Pinhel, e sem poder, sequer que fosse, com o cheiro de um pastel. Mas segurando, sempre, o mesmo cordel e bebendo todos os dias, de vinho, mais de um tonel, com a lembrança perene do seu tigre de papel, levado pela maré forte do Cabo Espichel, quando lá foi a banhos na sua lua-de-mel, com a mais bela sereia, lá prós lados de Pinhel, a tão fiel e padecente Anicas Redondel. Consumiu Rafael, a saudade cruel do seu tigre de papel. Só ficou de Rafael, um fio do velho cordel, e a memória vincada de Anicas Redondel, a mais bela viúva, lá prós lados Pinhel, que maldizia o dia em que o seu finado marido lhe aparecera à porta, trincando um soberbo pastel e segurando, ladino, por um fino cordel, a terrível criatura, o tigre de papel.


1 comentário:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Momento de belo recorte literário. Ganda malha João.
ARTUR