terça-feira, 29 de maio de 2018

SINOS QUE TOCAM


                                                             
                                                                       Sofia

quarta-feira, 23 de maio de 2018

EMPTY BELLY





            

                                                                        Sofia

quinta-feira, 17 de maio de 2018

ANDRÉ BAZIN










Nota: Este texto foi originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.






“Qu’est-ce que le cinéma ?”


                O que é André Bazin ? Obviamente, a pergunta não visa a identidade formal do autor; sabemos, e afirmámo-lo em texto anterior desta rubrica “Textos & Imagens” dedicado ao nº 1 da revista “Cahiers du Cinéma”, que é o mais importante e influente crítico e teórico do pós-guerra. A medida dessa importância e dessa influência é sobejamente conhecida, sobretudo entre os autores da Nouvelle Vague. Sobretudo, mas não só; basta que pensemos na plêiade de autores (já não autores de cinema, mas pensadores de cinema) que, dos dois lados do Atlântico, se reclamam seus herdeiros e também seus contestários. Aliás, a contestação é uma outra forma de reconhecimento, manifestando-se muitas vezes através de uma figura a que Harold Bloom chamou “angústia da influência”  (ver “O Cânone Ocidental”).
                Assim, a pergunta inicial dirige-se a um núcleo de sentido que tem a sua origem no modo como jogou “o jogo das categorias”, entendendo-se “categorias” no sentido filosófico de conceitos e constelações de conceitos que criam zonas de discursividade progressivamente radicadas numa determinada cultura, fazendo evoluir o horizonte de inteligibilidade do(s) objecto(s) sobe os quais se debruçam. Utilizando uma expressão de Michel Foucault, a ordem do discurso de André Bazin inaugura aquilo a que mais tarde se chamaria “cinefilosofia”, ou seja de um tipo de pensamento que pesquisa a essência do cinema recorrendo à pura forma interrogativa da disciplina filosófica, a pergunta “o que é”, que remete para uma ontologia do cinema. Se dúvidas houvesse sobre a afirmação do acto fundador de uma reflexão filosófica sobre o cinema (apoiada em categorias e conceitos ), bastaria a referência a uma dimensão ôntica do objecto para que todas essas dúvidas se dissipassem.  No texto fundamental, datado de 1945[1], “Ontologie de l’image photographique”, Bazin expõe o seu postulado : “O cinema aparece como a ealização no tempo da objectividade fotográfica”[2]. Evidentemente, a abordagem filosófica do cinema por André Bazin conhece um limite, que é também uma possibilidade: a sua relação com a realidade e é precisamente nessa relação com a realidade, ou melhor, é na teorização dessa relação entre o cinema e a realidade que se funda a reflexão filosófica. Até aqui, nada de muito relevante se pode extrair destas formulações; é um dado adquirido que o cinema regista mecanicamente a realidade e a reproduz também de um modo mecânico, numa relação documental. Aquilo que, a nosso ver, representa o salto quântico do pensamento de André Bazin é a crença na capacidade cinematográfica de, ao revelar o real, participar efectivamente no próprio ser do real. Dir-se-á que esta caracterização sumária do pensamento de Bazin carrega consigo um vocabulário tecnicamente filosófico, tomado de empréstimo à Ontologia, a mais grave e metafisicamente comprometida disciplina filosófica. Para dissipar essa impressão, dizemos que o vocabulário é o do próprio Bazin que, descendo ao nível da matéria, refere numa das mais luminosas páginas destes ensaios a principal qualidade do acto revelatório existencial do cinema: o facto de “tocar a carne e o sangue da realidade” [3].  É por isso que à montagem , que retalha e escamoteia o real, Bazin prefere o plano-sequência que deixa aflorar a vibração das coisas, o que nos faz pensar no imenso talento do acaso e na sua quota parte de responsabilidade na criação cinematográfica; se substituirmos “coisas” por “fenómenos” teremos uma outra perspectiva filosófica que o teórico não desdenharia: a abordagem fenomenológica, o real tal como ( nos) aparece e se manifesta (perante a câmara). O que introduz ainda uma outra perspectiva correspondente a um âmbito de reflexão filosófica por excelência: a ética, pela qual mede as implicações morais do registo mecânico / técnico do qual refere a principal característica: a fidelidade. O neo-realismo, levado ao apogeu por Roberto Rossellini, fornece a Bazin um magnífico exemplo prático da sua teoria. Diferentemente das escolas artísticas que o precederam,  o realismo do neo-realismo, na obra de Rossellini mais do que na obra de qualquer outro cineasta, reside menos nos temas que na estética, a acreditarmos no seu credo:  “As coisas estão aí, porquê manipulá-las ?”, pergunta o cineasta italiano. Para Bazin, o neo-realismo é uma tomada de consciência do real, que produz um novo tipo de imagem, a imagem-facto : “Sem dúvida a sua consciência, como toda a consciência, não deixa passar todo o real, mas a sua escolha não é lógica, nem psicológica: é ontológica no sentido que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global”[4]. Essa tomada de consciência (um termo com uma longa carreira filosófica) produz um grão de realidade, “um acrescento de realidade no ecrã”.[5]
O fervor com o qual foi recebido o pensamento baziniano é emblemático da filosofia do cinema , em particular da tradição crítica da revista “Cahiers du Cinéma”: os seus fiéis depositaram uma fé imensa no seu pensamento, portador de valores morais e criador de uma extraordinária foça simbólica. Eric Rohmer, talvez o seu herdeiro mais directo (não filmar senão aquilo que é), mediu, apaixonadamente, o impacto dessa teoria reflexiva. Bazin foi o primeiro a oferecer ao cinema a sua consciência : “À maneira de um explorador, Bazin entrega-se a uma verdadeira prospecção no interior do ser do cinema”. [6] Santificando a objectividade cinematográfica, Bazin não realizou nada menos do que uma “revolução coperniciana, análoga à que Kant realizou em filosofia. Copérnico deslocou a perspectiva da Terra em direcção ao Sol, Kant do objecto ao sujeito, e Bazin , inversamente, do sujeito ao objecto”.[7] Dessa adoração do ser puro do cinema à religião de um cinema de autor auto-produzido, em ruptura com forças profissionais, económicas, políticas e ideológicas, não foi mais do que um passo.


Arnaldo Mesquita



[1] Utilizamos neste texto a compilação de ensaios Qu’est-ce que le cinéma ?, editada em 1990 pelas Éditions du Cerf, que constitui uma selecção de textos constantes da edição em quatro volumes, publicada em 1958 pela mesma editora e que se encontra disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca. De igual modo, encontram-se disponíveis as edições nas línguas portuguesa e inglesa desta versão reduzida.
[2] “Le cinéma apparaît comme l’achèvement dans le temps de l’objectivité photographique”, ibidem
[3] “Le réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération” ibidem
[4]  “Sans doute sa conscience, comme toute conscience, ne laisse-t-elle pas passer toute le réel, mais son choix n’est ni logique ni psychologique: il est ontologique en ce sens que l’image de la réalité qu’on nous restitue demeure globale” 
[5] “un plus de réalité sur l’écran”, ibidem
[6] ROHMER, Éric, “La «Somme» d’André Bazin” in Le Goût de La Beauté, Paris, Cahiers du Cinéma, 1984. Este volume encontra-se disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.
[7] “[…) une révolution à la Copernic, analogue à celle que Kant accomplit en philosophie. Copernic a déplacé la perspective de la Terre vers le Solel, Kant de l’object vers le sujet, et Bazin, à l’inverse, du sujet vers l’objet”. ibidem

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sábado, 12 de maio de 2018

COMO UM COMBOIO A RASGAR A NOITE









Na solidão escura do sono, no frio sem respostas para tantas perguntas que se continuam a fazer, nas lágrimas solitárias de uma almofada absorvente, na insónia teimosa de um tempo que passa e continua a passar, num caos de sombras decorado de medos, em tudo o que nos perturba sem nos deixar acontecer…alguma coisa…desejamos que alguma coisa aconteça, que interrompa um ciclo sem luz, alguma coisa que apareça das trevas da noite e que a rasgue de uma vez. Um comboio ruidoso e libertador a caminho do seu destino. Um trilho metálico que gema a cada volta das rodas da locomotiva. Qualquer coisa que se chama com um grito desesperado de interrogação, de raiva e de insistência em cavar uma vala, abrir um espaço de luz que nos alivie por instantes, que nos aqueça, que nos faça uma festa de cabeça e nos dê por pouco tempo que seja a certeza de um conforto, a tranquilidade de um sono despreocupado, a memória de outro lado no universo. Como um comboio a rasgar a noite, uma massa metálica em movimento, uma linha aberta que por onde passa não deixa nada igual ao que estava. Um comboio a rasgar a noite e a dar respostas a seres solitários que desesperam no silêncio. Os carris desenhados pelo correr ritmado do peso das rodas…ou será uma bateria a marcar o ritmo, a dar a entrada para os primeiros acordes? Um farol a acordar  cada buraco escondido, todo e qualquer espaço adormecido obrigado a acordar, um apito estridente suspenso no ar embriagado de vertigem que explode, uma direcção, um destino, uma velocidade alucinada. Ou então uma guitarra rendilhada a saltitar ao longo de uma escala, um solo, uma melodia. Um comboio a rasgar a noite como uma seta que assobia e atravessa o vento a uma velocidade vertiginosa. O baixo a acompanhar o bater do bombo da bateria a delimitar os cantos do ritmo com arranques roufenhos. E depois uma voz, feminina, doce e ao mesmo tempo grave, uma voz de menina a trautear sem letra, apenas uma área inventada que afaga embalando. Com todos os componentes no seu lugar os seres embarcam preparando-se para desfrutar a viagem. Agora sim. A noite pode continuar a ser noite, o frio, o escuro, a solidão e o medo. A imensa tela negra pode continuar absoluta, imponente, pesada sobre a cidade. O comboio arrancou e já nada o vai conseguir fazer parar. E lá dentro há passageiros, espectadores, companheiros de viagem que se empolgam com o som, que se maravilham com a velocidade, que vibram com a harmonia. A sua viagem é agora tudo o que lhes fazia falta para melhor atravessar o vale das sombras. A música é o seu guia por instantes, as canções as carruagens que se vão seguindo atreladas umas às outras. Eventualmente o comboio acabará por chegar ao seu destino, por parar. Mas nessa altura já terá cumprido a sua função. Não sei explicar quem sou mas reconheço-me se me encontrar…
Como um comboio desembestado a rasgar a noite com um potente farol a abrir caminho nas trevas, uma canção ritmada, uma harmonia embalada, um espaço aberto de esperança ou uma pausa para respirar. Um tempo limitado e vertiginoso em que por uma fracção de segundo os seres se apresentam a si mesmos, abraçando-se, reconhecendo-se. Um apito estridente a envergonhar o silêncio. Um tubo metálico que passa numa enorme pausa onde nos conseguimos encontrar. Uma viagem ao interior de quem somos, de quem nunca deixámos de ser. Uma vertigem que passou por aqui e que nos fez aguardar a manhã com muito mais ânimo, vontade e capacidade para continuar.

Artur