sábado, 30 de janeiro de 2021

ENTRE NEVOEIRO E GOTAS DE CHUVA

 


A entrar pelo trigésimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e um. Também já não ouço notícias em nenhuma estação e acabei por dar preferência à minha lista musical ou ao silêncio. É coisa rara ouvir o silêncio tão pormenorizadamente como nesta ilha. É tão raro e estive tantos anos a ouvir tantas vozes sobre os reactores dos aviões que isto me sabe a cerejas e pêssegos acabados de colher num dia de sol de escachar. Qualquer janela por onde espreite só vejo números a serem discutidos e fronteiras a serem impostas. Não estamos em guerra senão uns com os outros, a batalhar opiniões sobre assuntos que não entendemos. Há sempre alguém com gráficos, com discursos de personalidades mundialmente reconhecidas, com mézinhas, tisanas e rezas, velas, laços pretos e, claro, o olho grande, do grande irmão, a adivinhar que eu devo precisar dum treinador para o cão, dum impermeável à prova de ciclone, duma motoserra ultra leve, ou de emplastros para as juntas que se empenam em dias de noventa e nove por cento de humidade. A minha realidade nestes últimos anos tem sido sobre aquilo que posso fazer para melhorá-la. Fazer isso é a forma menos egoísta de resolver grande parte dos problemas da humanidade, na ótica desta utilizadora a um toque de router de distância.
Além do silêncio, há as estrelas que a ausência das mil luzes das cidades brilhantes despe sem nenhum pudor e se revelam bem longe da luz azul que absorve os espíritos desatentos. Há também o mau tempo, o barco que encosta a custo e que reabastece as prateleiras de víveres que poderiam ser de origem local mas que não.
A pouca distância tenho o melhor que as pessoas têm, e a noção de que estou no paraíso.
Aqui, o vírus da desconfiança e da revolta não se apoderou das horas que se cardam na lã dos dias. Aqui, sou eu e a independência que escolhi, a incapacidade que me escolheu,apesar do catálogo das dependências ser mais apelativo às congregações que ditam e desditam. Sempre fui pouco obediente, mas utilizo os três dedos de testa que alicerçaram a postura de meio século e dois anos na forma como me dou e me aceito.
Isto não é uma guerra e nós não somos soldados.
Somos manietados mas não mais do que na altura em que nos apetece ir de férias até ao destino paradisíaco que a agência de viagens mais poderosa publicitou.
Há que guardar o olhar espantado sobre o presente que se nos apresenta e usar a nossa capacidade de desconstruir os moldes impostos sem abalar a segurança dos nossos.
E mais, temos que usar a fé que os nossos antepassados tinham nos deuses, trazê-la até nós, e venerar o que temos de melhor.
 
Elsa Bettencourt 
 
(quadro: paisagem marítima de Gaugin)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

JEAN GRATON

 

 

 

 

 





 

Foram horas e horas de leitura, de fascínio, emoção e aventura desde o final da infância e através de toda a adolescência. As máquinas, os circuitos, os Grande Prémios, a Formula 1, os personagens perfeitamente normais compostos de falhas e virtudes como toda a gente. A transcrição dos sons dos carros, o VRRROOARR do arranque o Bing do choque metálico, as viagens pelo planeta na senda dos roteiros do automobilismo, a paixão pela Ferrari, pelo Gilles Villeneuve, e tanta coisa que me ajudou a crescer, a alargar horizontes... Por tudo isto e muito mais que me esqueci de lembrar....

Muito obrigado Jean Graton

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A JARDINAR MAIS DO QUE A ESCREVINHAR

 

Décimo nono dia do primeiro mês de dois mil e vinte um.
Há pouco mais de um ano sonhava com regressos e abraços. Contava os minutos para voltar a estar ao teu lado. Era um tempo em que colava a cara ao vidro que antecipava a chegada, que esmiuçava os pequenos cristais de gelo colados nele como ao interior da própria anunciação. As partidas eram um local de lágrimas, as chegadas de alegria. Eis-me aqui, suspensa no espaço e no tempo, com um passaporte desnecessário, com chuva quase ininterrupta, com uma máscara no pulso em vez do adorno costumeiro de contas e berloques. Eis-me sem contar os minutos, a vivê-los compassadamente com a languidez dos dias amenos no peito, com sempre algo por fazer, com mais ainda por concretizar. Todos os dias deito uma semente à terra, todas as horas elas eclodem como pequenas saudades a brotar em muitas, verdes e esperançosas. Um dia serão um embondeiro já sem memória do início que lhes provocou a eclosão. O carteiro vem cada vez menos vezes, mas as cartas são cada vez maiores. Eis-me aqui à espera sem nunca desesperar.
Hoje a vizinha de 1926 estava assustada. Falava daquilo como quando um dia avistou um zepelim. Disse-me que aquilo vinha pelo ar, que lhe ia levando o filho, e que tinha passado a noite a chorar. Que lhe tinham dito que até se metia nos aviões e pelas frinchas da porta.
- abrigue-se, menina, abrigue-se! Aquilo vai até ao fim do mundo!
Só lhe disse para não se preocupar demasiado, que não era como um bando de pássaros com mira no milho das galinhas do vizinho. Ela riu-se e seguiu amparada pela canadiana até casa.
Ei-lo, vitima do mundo e do medo, da abstenção dos medrosos. Caiu ao chão agarrado ao peito e eles ficaram a pasmar, mudos, receosos, e embasbacados. Não o acudiram porque aquilo podia pegar-se, nem deixaram que o acudissem porque aquilo podia pegar-se. Tinham todos telemóvel para dizer aos familiares que estavam na fila do álcool gel, para mostrarem as micoses causadas pela máscara, mas ninguém se lembrou de pedir socorro, nem ninguém quis. Nem serviria de nada a explicação que dei à idosa vizinha. Aquilo já se pegou, a merda do medo, a incapacidade de sentir compaixão, a distribuição de culpas como outrora as estrelas em peitos alheios. Discutimos as vacinas e a falta delas, discutimos porque não nos protegemos, discutimos nada que interesse, porque é exatamente a lugar nenhum que elas nos levam. Passamos ao lado, assobiamos para o lado, bloqueamos o que não queremos ver nem ouvir, e acabamos na janela que nos faz pior, a deixar entrar em nossa casa as opiniões mais vis, as criaturas mais abjetas e as noticias mais tristes. Descobri que não sou pior pessoa se não me debulhar a chorar por quem está na uci, mas tenho a certeza de que nunca deixaria de ajudar quem caísse ao meu lado.
Já esperei para ser vista em pelo menos três macas de hospitais públicos. Já vesti batas de três hospitais e fiquei de rabo ao léu sem me sentir diminuída por isso. Fui sempre atendida e por duas vezes salvaram-me a vida. Sou do tempo em que os filhos se pariam em boxes da MAC. Do tempo em que a anestesia epidural começou a ser administrada em parturientes, e vulgarizada ao ponto de não se imaginar um parto sem ela. Quando a minha filha mais velha nasceu éramos dez na enfermaria, e aprendi mais com aquelas enfermeiras e companheiras de quarto do que em qualquer lado. Quando o meu filho do meio nasceu, já éramos oito na enfermaria e eu já nem quis epidural. Quando a minha filha mais nova nasceu, esperei a passear e a respirar entre o ctg e o bloco de partos, e eu é que avisei que estava na hora. A enfermeira parteira é que me assistiu e nunca vi o médico. Ela só me disse para não fazer muita força porque a menina tinha o cordão umbilical à volta do pescoço.
- para quê esta divagação à volta dos partos, Elsa?
As coisas que eu me pergunto... Porque há coisas que podemos controlar e outras que nos fogem das mãos. A respiração, muito bem inculcada pela dra Graça Mexia,
que nos ensinou o método Lamaze e que dizia que iríamos utilizar o que aprendemos para o resto da nossa vida.
Antes de dizer uma baboseira, respiro. Quando me dói uma junta, respiro. Quando os putos chateiam, respira profundamente e imagina-te numa ilha deserta cheia de sol. Quando o passageiro te dá um apalpão, respira, sorri, e vai fazer o café que ele te pediu. Espera pela turbulência e faz pontaria. Voilá! Já não tenho passageiros, mas mantenho a atitude. Se alguém precisar de ajuda, age. Não precisas de desligar a televisão porque não tens, se tens usa para ver coisas longe da atualidade. Não tenhas medo de parecer desinformada. Se o mundo acabar, vais dar por isso. Entretanto, faz pelos outros o que fazes para ti. Se não te amas, começa. Dá espaço a quem já não precisa de ti e não olhes para trás. Choram sempre quando estamos a olhar.
Daqui a um ano estarei a contar os segundos para estar ao teu lado. O nó na garganta, as borboletas na barriga, a boca seca e a cara colada ao vidro. O olhar a esmiuçar a paisagem que se aproxima. O gelo na janela, o calor e as águas cor de esmeralda. As palmeiras lá em baixo como negas malucas a dançar funk na areia, os pinheiros de camisola de neve a dedilhar Chopin com as falanges enregeladas.
Paisagens mescladas com o sonho das chegadas.
 
 
Elsa Bettencourt,

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

QUALQUER COISA QUE INSISTE EM SE FECHAR...

 





 

A Paciência saiu de manhã sem grande ruído, pouco depois de me ter levantado. Não me conseguia aturar mais, queria outra coisa da vida, ia seguir um rumo novo e aquelas coisas que se costumam dizer quando deixamos alguém para trás. Fiquei ali preso àquela cena matinal, de roupão vestido e caneca de café esquecida na mão em forma de esboço de um adeus que não cheguei a dizer. Acompanhei-lhe o movimento com o saco na mão a entrar para o carro. Acho que todos temos o direito de chegar como de partir já que nenhum de nós consegue durar para sempre e fui-me enchendo de razões, lugares comuns e frases feitas para conseguir acordar e voltar à vida. Sentado na mesa da cozinha vejo a porta que se vai descascando de tinta e artroses de madeira à medida que perde a forma. Mal se consegue fechar a não ser com um empurrão firme. Envelhece em silêncio, como o café que arrefece, como a casa, como eu. Tudo desliza devagarinho para o grande nada de onde veio. Ainda fui sair duas ou três vezes com a Depressão mas rapidamente nos apercebemos que não ia resultar. Tudo correu mal. Às vezes falo com a minha tia Esperança mas é difícil porque está cada vez mais surda. Obriga-me a repetir as coisas, a falar alto e isso cansa-me. Lembro-me das mãos delas a fugir para dentro como um líquido que se vai escoando, os ossos dos dedos a espreitar por baixo da pele, a falta de força.

A verdade é que não me apetece falar com ninguém. Esgotei as palavras, as razões e os sentidos, e a única coisa que quero é ficar em silêncio dentro desta casa sem fazer nada, sem pensar, enquanto as minhas mãos se vão escoando num movimento de maré vaza deixando mais salientes os ossos dos dedos, evidenciando um fim de um ciclo. Já se gastaram todas as conversas, já se deu várias vezes a volta às coisas e pouco ou nada mudou. Talvez a tecnologia…vagamente a tecnologia, o que é manifestamente pouco para o esforço de um ciclo inteiro. Por isso é em silêncio que gosto de estar, nessa casa envelhecida pelo tempo onde a luz entra de manhã e se retira ao fim da tarde sem fazer perguntas. Nesse lugar onde os móveis, os retratos em cima da mesa da sala, os estalos do soalho…onde nada existe para além de existir simplesmente. Não há ordens, obrigações, urgências. Há estes breves diálogos com os cantos, estes breves pensamentos que saem e entram como os pássaros habituados ao telhado da garagem. Tudo vai existindo simplesmente até deixar de existir e não há nenhum problema com isso. A porta da cozinha vai deixando de conseguir fechar, vai encolhendo, a casa vai encolhendo e eu lá dentro. Ao fim de algum tempo em silêncio fico na dúvida: serei eu algum ser que existe ou simplesmente uma coisa que cumpre a sua função, que é apenas respirada?  Farta de me aturar a Paciência partiu. Não a posso censurar. Qualquer dia a tia Esperança morre e vou ficar ainda mais despido, vou prolongar os meus silêncios e fico por aqui com os horários dos pássaros, com a porta da cozinha, com a sala que anoitece comigo lá dentro. E embora tudo isto pareça estupidamente vazio de sentido, algo doloroso, ou mesmo triste não há razão nenhuma para desesperar. Afinal a coisa que respira ou que é respirada fez o caminho todo, parou em várias estações, tropeçou, levantou-se, riu e chorou e voltou à estrada. Um dia destes a outra há-de aparecer. Não me abordará directamente, não me virá bater à porta da cozinha até porque ela já mal consegue fechar. Ficará dentro do carro ao fundo da rua sem pressa até eu estar pronto. Atravessará a rua para ir até à esplanada beber um café enquanto eu faço a mala. Depois, quando estiver pronto saio de casa, deixo aberta a porta da cozinha e entro no carro com ela. Pelo caminho há-de me estender dois ou três manuais de instruções para melhor me ambientar na minha nova dimensão. É capaz de me dizer que era tudo um enorme barrete que me enfiaram enquanto avaliavam se estava com atenção. Uma ilusão, uma piada de muito mau gosto a ver se tinha sentido de humor. Nessa altura vou tentar olhar para trás e rever o telhado da garagem onde entram e saem os pássaros, a porta da cozinha, a sala que anoitece em silêncio, a casa que encolhe na distância e no tempo. Hei-de os voltar a ver a todos mais uma vez e quando acenar a dizer adeus vão perceber que os amei profundamente.

 

Artur

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

AVESTRUZIA

 

Olha a pandemia, caem que nem tordos, olha o especialista muito sério e a esbanjar verdades na televisão, olha o político a apanhar bonés e a enfiá-los nas nossas cabeças.

  Isto é tudo uma treta - diz o esclarecido - a mim não me enganam, foi tudo um ganda grupe que os chineses inventaram enquanto cozinhavam morcegos.

Já lá para dentro - diz a autoridade - ninguém sai até que alguém vos chame.

Então e o Natal? Então e quem é que me vai pagar a despesa dos balúrdios que fazia sem pagar impostos? Cheguem-se mas é à frente porque a economia não pode parar.

Vá podem saír por alguns dias, mas vejam lá como é que se portam. Mas ninguém se importa, todos querem chegar primeiro, à frente de tudo e de todos. Primeiro Eu e depois Eu e no fim ainda eu. Que se lixem as regras, estava só ali…são só cinco minutos… não quer dizer nada…

E os tordos voltam a adoecer, a encher as enfermarias, a cair do céu às centenas. E toca a andar tudo já para dentro outra vez. Ninguém sai, ninguém pia. E mais especialistas e mais donos da verdade e mais cientistas de formação instantânea e mais enterradores de bonés. E mais, Eu já tinha dito, está tudo mal feito, a culpa é daquele e do outro. E as avestruzes correm em todas as direcções, enterram a cabeça na areia pensando que ninguém as consegue ver. De cu para o ar e a brisa a entrar em vez de sair com contaminações na bagagem.

Olha a vacina liindaaaa! grita o vendedor de rua, Olha a bela vacina. E todos correm para lá. Olha a beeela vacina, onde é que está a vermelhinha, não estou aqui para enganar ninguém, olha o belo cobertor leva dois e poupa um pintor.

E a avestruz corre, corre desenfreada de nada e direcção enquanto o fogo alastra pelo campo todo e não lhe deixa espaço onde se esconder.

Olha a política, olha a economia, olha um mundo antigo inteiro que se recusa a queimar consumido pelas chamas, olha os mortos, olha o desnorte, a paranóia.

Olha a vermelhinha embrulhada no cobertor para a vacina mais colorida. Olha para aqui, olha para ali, olha para dentro de ti e procura, tenta encontrar. Estás morto dentro de tanto ruído, desorientado debaixo de tantos sinais de trânsito, estás perdido num amontoado caótico de um mundo em pedaços que insistem em ficar de pé. Não há chuva tão cedo antes de tudo arder. Não há rumo, não há doença nem cura. Só este ar estúpido de avestruz científica que ora corre para lado nenhum ora enterra a cabeça pensando que ninguém a consegue ver. E acabas em silêncio num quarto às escuras a falar sozinho de cu para o ar enquanto uma brisa passa pela janela fazendo questão de entrar trazendo consigo o elixir da vida a solução de vendedor de esquina e o arrepio da morte. Ou da sorte ou do caminho que continuará mas que te vai obrigar a reinventar, a ser outro animal se por acaso conseguires voltar a atravessar a savana queimada onde outra savana começará a nascer.

Sei lá…

 

Artur


 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

AINDA NÃO...

 


 


O livro escolhe vários cantos da casa para se esconder nomeando duas ou três vozes que brincam comigo como em criança.

 

Ainda não……

 

E eu parto determinado a encontrar as suas palavras, o seu discurso, aquilo que têm para me contar. Depois junto tudo numa mesa de montagem improvisada que vai colando capítulos, aproveitando frases, seleccionando ideias para a frente e para trás até ficar o filme completo.

 

Ainda não…..

 

E por vezes paro a busca, fico a olhar para o Nada á minha frente, para o Nada que sou sem que um pensamento me visite. Um vazio estranho e prolongado que se senta ao meu lado e me obriga a ouvir o silêncio. Despojado de ideias, de direcção, despojado de vontade para continuar, as interrogações vão entrando á medida que aumenta a paralisia. Fico ali meio agitado meio desesperado até que o vazio volta a olhar para mim e me repete a instrução. Deixo voltar o silêncio que educadamente vai empurrando as interrogações uma a seguir à outra enquanto uma das vozes me indica que está pronta para começar o seu discurso.

 

Já pode…..

 

Então, como um miúdo que nunca deixei de ser volto entusiasmado e vou à procura. Neste momento escrevo sobre três mulheres,  mãe  e  duas filhas.

Insisto em escrever porque é a única forma de continuar vivo, a profilaxia mental que me afasta do vazio e me ocupa as horas. Insisto em escrever porque julgo ser a única coisa que sei fazer bem. Em todas as outras dimensões da minha existência oscilei entre a incompetência e o amadorismo. Por isso gosto de contar histórias inventadas ou tiradas da realidade, gosto de ouvir as vozes que decidem falar comigo e tomar nota do que dizem. Dessa forma vou conseguindo fugir da morte, do vazio e da falta de sentido,

 

Ainda não…

 

Dessa forma vou ganhando tempo e vou conseguindo falar com outros como doentes na sala de espera do consultório. Contando-lhes histórias, distraindo-os, vou deixando que me distraiam a mim atrasando-se assim a hora da injecção ou do tratamento doloroso que ninguém quer mesmo sem saber do que se trata.

 

Ainda não…

 

E a senhora da recepção  atrás de uns óculos e uma maquilhagem assustadores enquanto nos avalia e ao mesmo tempo deita o olho a uma lista de espera na secretária à sua frente.

 

Ainda não….

 

Duas irmãs e uma mãe cada uma perdida no seu universo pessoal que se amam e odeiam sem o conseguir dizer , três mulheres em três tempos diferentes que comunicam vagamente entre si. Escrevo aquilo que elas me quiserem contar, não vou inventar nada. Sigo pela casa fora a rebuscar os cantos e a guardá-los no saco até ter o embrulho de um romance. Depois será como um filho que atingiu a maioridade e segue o seu caminho

 

Ainda não…

 

Kurosawa não falava português mas também se lembrava de brincar às escondidas em criança. Por isso dizia "Madadayo" em vez de

 

Ainda não…

 

Por isso fez um filme com esse título entre uma série de obras primas. Longe de mim fazer comparações. Escrevo também porque percebi que há uma linguagem que todos falamos por mais distantes que possamos estar culturalmente. Todos brincámos ás escondidas em pequenos. E continuamos a brincar pelo resto da vida. Umas vezes descobrimos os outros, outras vezes deixamo-nos encontrar. Umas vezes ouvimos os outros, outras somos nós que temos alguma coisa para contar. Chama-se a isto a Linguagem Universal. A ferramenta que nos permite adivinhar os "segredos imortais que no fundo são iguais em todos nós". É essa ferramenta que tento usar quando ouço as vozes, quando busco os cantos de um romance, quando me torno num contador de histórias. Para que a espera possa ser um pouco mais lenta e menos dolorosa. A espera que terminará quando atingir o número razoável ou suficiente de histórias para contar aos outros. Para depois me poder virar para a senhora da recepção escondida atrás de uns óculos e uma maquilhagem assustadores…para que possa dizer convictamente…

 

 

Já pode……

 

Artur

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

NA FORMA MAIS ARCAICA DE ESTAR

 

Sétimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte um.
Viver com as botas de cano (galochas) à porta, um casaco para intempéries, chão para ir pintando à medida que salta a tinta, sofás de palhinha que no verão saltam para o balcão, eletricidade, água corrente e quente por trinta litros, um colchão ortopédico com tamanho para dois em que um fica mais à vontade e dois bem aconchegados, um forno de lenha que ainda não cozeu este pão de massa por levedar, duas tábuas a fazer de mesa, cinco cadeiras compradas em Santo Espírito sendo a quinta a de escrever e criar. Um pequeno tear para tricotar de onde saiu um gorro para cabeça pequena e outro para cabeça tonta, um berbequim já com algumas rotações e vários serrotes com muitos dentes, uma plaina trazida duma feira de velharias feita de madeira preciosa já aplainada por sua avó, pincéis, tintas, papéis, madeiras, bambus, galhos, rendas, fios e lãs, arames e despojos encontrados sob a terra molhada- um ferro a carvão, uma panela de ferro de quatro pés já só com três, uma chaleira de ferro, todos enferrujados. É verdade que chove sem parar. Até a casa tem três pingas estrategicamente instaladas. E é verdade que fui eu quem quis vir para aqui. Até eu, quando quero, acerto no brinde sem passar pela fava. É verdade que nenhuma das pingas encheu o alguidar e que houve uma quarta que me atingiu a cabeça por duas vezes. Até há uma janela que nem se abre porque se abrir parte-se em dez. É verdade que a terra está mais molhada do que devia e por isso quando desço ao pomar desço de bordão, para não tombar cada vez que o cão de tão feliz me dá um encontrão. Até há guarda chuvas naturais debaixo das copas dos bambuzais. E é verdade que entre eles não passo porque tenho de desenhar um caminho, da minha cabeça para o terreno, com as lâminas que tenho à espera que tudo amaine. Até as árvores já me passaram do umbigo para onde já não olho há algum tempo. É maturidade isso de deixar de olhar para o umbigo, jamais desmazelo. Meu umbigo é lindo e eu sei, por isso vivo à volta dele, porém caminho em diante. O mais importante para mim é moldar a luz que me define,a música que me compõe. Viver a vida simples sem o sufoco da vida complicada é como um tesouro a que todos os dias acrescento uma pérola. Ávida dela, escolhi-a na forma mais arcaica de estar, com devaneios de modernidade que me mantêm informada do que se passa por aí. O recolher obrigatório tornou-se uma abstracção. A invasão daquela casa branca, contada por vocês, leio-a sem o pânico de quem ouviu a Guerra dos Mundos em 1938. Afinal não estou assim tão isolada, tão fora de tudo, e considero-me uma pessoa bastante informada. Sei sobretudo que este vento forte, se não houvesse tantas árvores à minha volta, levaria o meu telhado pelos ares. E que é assim com tudo onde uns protegem os outros. Sei que sou limitada e que não há ninguém que não seja e que isso é só por termos um prazo de validade que ignoramos para nosso bem. Se hoje o dia acabasse definitivamente para nós, iríamos felizes e com tudo feito? Teríamos o troco certo para a barca de Caronte? Um òbolo ou um dânaca, alguma moeda atualizada para estes ainda mais loucos anos vinte? Não me parece. É requisito do ser humano ser insatisfeito e é isso que nos afasta da nossa humanidade. Não são as máscaras que nos impõem que nos afastam da nossa humanidade, mas sim a cegueira que nos impusemos sem perceber que o fazíamos. Estarmos cientes de que antes do umbigo havia um cordão umbilical é voltarmos a reconectar com o melhor que a nossa natureza tem. E voltarmos a abraçar fisicamente, com força, e espiritualmente com a potencia do universo que nos comanda.
Enquanto o vento uivava apercebi-me da chuva que tinha parado. Percebi que tinha rondado para norte, pus as botas de cano, o colete mais quente, o casaco impermeável, o gorro da neve, os petiscos no bolso, o clicker na mão, a trela no cão. Tenho a lanterna mais potente das redondezas e chamo-lhe o meu farol. O céu estava estrelado como há muito tempo não estava. Andamos entre rajadas e ensinei-lhe onde se proteger. Rondamos as árvores caídas e saltamos valas de folhas, fechamos os portões que se tinham aberto, tiramos a água dos vasos dos pés de café e ainda estendemos toalhas molhadas sob a luz do farol. Ele assustou-se com as nossas sombras na copa das criptomerias e eu pasmei naquela nova tela de cinema. Tenho tanto por fazer e tanto já feito. Caminho sob o sorriso etéreo dos meus pais, sozinha, acompanhada, completa. Desafiem-se nas coisas mais simples e sintam a plenitude a chegar. É esta a diferença entre o contentamento e a felicidade. Sou pouco feliz mas muito contente. Até há notícias que não me chegam além do canto dos pássaros e há roupa que seca debaixo da chuva torrencial. É por isso que estou aqui.
 
 
Elsa Bettencourt

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

MENINA PÔR DO SOL


 

 

 

Acorda-me o uivo do vento que entra pela frincha da janela.
Abro as cortinas de manter a luz lá fora e vejo o mar tão perto.
Uma senhora de capolana passa com um alguidar azul na cabeça com dois peixes para o almoço. Três corvos marinhos ensaiam voos picados entre as palmeiras. Quatro meninos cor de chocolate atiram pedras ao mar cinzento. Cinco coqueiros batem as folhas como quem bate palmas. Seis gaivotas rasam sete ondas baixinhas. Oito cocos amarelos juntam-se para não cair antes de tempo.
Nove gotas de água. Dez respingos. Onze minutos para chover.
Doze horas sem parar.
Entre frases contadas e momentos cá dentro do quarto e dentro de mim, continuo a olhar pela janela. Já puxei o cadeirão de vimes para a frente dela. Não é todos os dias que tenho o mar a vinte metros do parapeito, e não posso perder nada.
Há um pontão de cimento a uns duzentos metros para a minha direita. Estreito, prolonga-se mar adentro deslizando por ele até desaparecer numa linha suavemente inclinada.
Quatro homens vestidos da mesma maneira aproximam-se.
Calças escuras e camisa azul clara de manga curta. Altos e esguios, cor de áfrica austral recortados pela luz deste dia nunca demasiado sombrio.
O primeiro homem segue até ao fim do pontão, quase a tocar na água.
O segundo homem fica a meio. O terceiro no princípio.
O quarto homem fica na areia. Ajoelha-se, curvando-se até o peito tocá-la, e deixa-se estar de braços abertos.
O primeiro homem dança virado para o horizonte e os outros dois imitam-no. Ora levanta os braços em súplica, ora os balança alternadamente para cima e para baixo. Ajoelha-se e grita para o mar.
Levanta-se e dança até ao segundo homem. O segundo homem dança
até ao terceiro. O quarto homem permanece prostrado sobre a praia.
Durante uma hora deixam-se estar neste ritual de beira mar até que, um a um, comecam a ir-se embora. Parte o quarto homem, em primeiro lugar. Depois o terceiro. Segue-se o segundo. O primeiro fica até que a maré, que começa a encher, lhe tape os pés. Braços abertos. Palmas das mãos voltadas para este oceano índico, aguarda uma espécie de resposta que não chega. Retira-se a barafustar num canto triste.
que também entra pela mesma frincha da janela do uivo do vento.
Fecho os olhos. Sentada no cadeirão de vimes que arrastei para
a frente da janela, deixo o lá fora continuar. Com as ondas
a ressoarem-me nos tímpanos, respiro ao ritmo delas e adormeço.
Logo regresso.
Acordo com o bater de panos de seda dum sari laranja pôr do sol
duma menina cor de bronze.
Entre as mãos arde um ramo de frangipanis em cores de fim de tarde.
As mãos esticam-se até o céu mais possível daqueles braços pequeninos e finos. Não consigo ver-lhe a cara que está voltada para o horizonte mas vejo a incandescência daquela prece.
Até ao último fio de dia permanece naquela posição. Os braços mantêm as flores erguidas sem qualquer oscilação. A qualquer momento imagino que uma mão invisível receba aquela oferenda e lhe devolva o que tanto deseja. Outra mão aproxima-se e pousa-lhe no ombro e, antes que o sol se apague, ficam imóveis até a escuridão os desaparecer do meu olhar.
 

 .
Pintura para o conto, menina por do sol, 
 
por Elsa Bettencourt.

sábado, 2 de janeiro de 2021

PRIMEIRO DIA


 

Primeiro dia do primeiro mês de dois mil e vinte um. Há anos que venho a pedir que os feitos superem as expectativas, que os dias sucedam as noites, as semanas o fim delas, que os meses culminem num ano e que outro o suceda. E, sem foguetes nem rufar de tambores, eu me deite a dormir e acorde pela mão dum princípio, o olhe com a surpresa que todas as primeiras vezes contêm. Ontem acordei a caminho duma enxaqueca, passeei pela ilha com o lobo-urso e, quando faltava pouco mais de duas horas para a meia noite, já chamava pelo Gregório bem do fundo das minhas vísceras. Assim, sem alaridos e com um chá de limão morno, quase frio, adormeci descansada, com um amigo peludo deitado no tapete ao lado da cama a zelar pelo meu sono. Ladrou com os foguetes, mas não se assustou. Olhou para mim, pousou o focinho na minha mão, e voltou a deitar-se. Acordamos, a lua estava alta e o galo vizinho cantava. Passeamos pelo campo iluminado por mil gotículas de orvalho pousadas sobre a erva. Parecia um céu estrelado no chão e nós a avançarmos sobre ele. A fogueira que tínhamos acendido no fim de tarde passado já tinha consumido toda a lenha. O cheiro a pinhas e a criptomérias queimadas, misturado com a humidade desta manhã por nascer, anunciava a simplicidade dum novo começo. Optamos pelo intervalo e voltamos a dormir só mais um bocadinho até a manhã chegar a meio e o sol a metade. Ao princípio da tarde desci à baia da minha infância e almocei com a amiga de sempre, guardiã deste lugar desde que me lembro dela. Este sentimento de amizade, a partilha dos pratos, de conversas e gargalhadas, relembra-me de que tudo está certo e tudo é um feito, quando se tem o coração no lugar.
Fecho o dia a ouvir o magnífico senhor que nos deixou hoje no cabo da boa esperança e sonho que este comanda a vida que deve sempre ser vivida como a tal bola colorida nas mãos duma criança. 
 
 
Elsa Bettencourt