quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

MENINA PÔR DO SOL


 

 

 

Acorda-me o uivo do vento que entra pela frincha da janela.
Abro as cortinas de manter a luz lá fora e vejo o mar tão perto.
Uma senhora de capolana passa com um alguidar azul na cabeça com dois peixes para o almoço. Três corvos marinhos ensaiam voos picados entre as palmeiras. Quatro meninos cor de chocolate atiram pedras ao mar cinzento. Cinco coqueiros batem as folhas como quem bate palmas. Seis gaivotas rasam sete ondas baixinhas. Oito cocos amarelos juntam-se para não cair antes de tempo.
Nove gotas de água. Dez respingos. Onze minutos para chover.
Doze horas sem parar.
Entre frases contadas e momentos cá dentro do quarto e dentro de mim, continuo a olhar pela janela. Já puxei o cadeirão de vimes para a frente dela. Não é todos os dias que tenho o mar a vinte metros do parapeito, e não posso perder nada.
Há um pontão de cimento a uns duzentos metros para a minha direita. Estreito, prolonga-se mar adentro deslizando por ele até desaparecer numa linha suavemente inclinada.
Quatro homens vestidos da mesma maneira aproximam-se.
Calças escuras e camisa azul clara de manga curta. Altos e esguios, cor de áfrica austral recortados pela luz deste dia nunca demasiado sombrio.
O primeiro homem segue até ao fim do pontão, quase a tocar na água.
O segundo homem fica a meio. O terceiro no princípio.
O quarto homem fica na areia. Ajoelha-se, curvando-se até o peito tocá-la, e deixa-se estar de braços abertos.
O primeiro homem dança virado para o horizonte e os outros dois imitam-no. Ora levanta os braços em súplica, ora os balança alternadamente para cima e para baixo. Ajoelha-se e grita para o mar.
Levanta-se e dança até ao segundo homem. O segundo homem dança
até ao terceiro. O quarto homem permanece prostrado sobre a praia.
Durante uma hora deixam-se estar neste ritual de beira mar até que, um a um, comecam a ir-se embora. Parte o quarto homem, em primeiro lugar. Depois o terceiro. Segue-se o segundo. O primeiro fica até que a maré, que começa a encher, lhe tape os pés. Braços abertos. Palmas das mãos voltadas para este oceano índico, aguarda uma espécie de resposta que não chega. Retira-se a barafustar num canto triste.
que também entra pela mesma frincha da janela do uivo do vento.
Fecho os olhos. Sentada no cadeirão de vimes que arrastei para
a frente da janela, deixo o lá fora continuar. Com as ondas
a ressoarem-me nos tímpanos, respiro ao ritmo delas e adormeço.
Logo regresso.
Acordo com o bater de panos de seda dum sari laranja pôr do sol
duma menina cor de bronze.
Entre as mãos arde um ramo de frangipanis em cores de fim de tarde.
As mãos esticam-se até o céu mais possível daqueles braços pequeninos e finos. Não consigo ver-lhe a cara que está voltada para o horizonte mas vejo a incandescência daquela prece.
Até ao último fio de dia permanece naquela posição. Os braços mantêm as flores erguidas sem qualquer oscilação. A qualquer momento imagino que uma mão invisível receba aquela oferenda e lhe devolva o que tanto deseja. Outra mão aproxima-se e pousa-lhe no ombro e, antes que o sol se apague, ficam imóveis até a escuridão os desaparecer do meu olhar.
 

 .
Pintura para o conto, menina por do sol, 
 
por Elsa Bettencourt.

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