quarta-feira, 7 de novembro de 2018

ALBERT CAMUS

"Celui qui, souvent, a choisi son destin d'artiste parce qu'il se sentait différent, apprend bien vite qu'il ne nourrira son art, et sa différence, qu'en avouant sa ressemblance avec tous. L'artiste se forge dans cet aller retour perpétuel de lui aux autres, à mi-chemin de la beauté dont il ne peut se passer et de la communauté à laquelle il ne peut s'arracher".
---- Albert Camus, Discours du 10 décembre 1957 à Stockholm (Suède)

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Segunda Entrada do Diário Laboratório de 15/3/2018

15/3/2018
(Segunda Entrada)
Completa-se a espera com uma astúcia: transcrever tudo o que passar pela cabeça. Talvez um dia se arrumem as ideias, os escritos, os papéis, os projectos editoriais; se dê destino e propósito a tal corpo.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Primeira Entrada do Diário Laboratório de 15/3/2018

15/3/2018
(Primeira Entrada)
É possível compreender aqueles que viveram através da escrita. A realidade prática, com todas as suas dificuldades, repugna. A escrita, pelo contrário, é sortilégio: permanente fuga imaginosa ou um cumprir-se ante a danação alienante de um estrepitoso século, experienciar possibilidades, impossíveis doutro modo, seduzir e até afastar maleitas, na literatura, se é de são vigor ou, no limite, exorcizar a morte pois, enquanto se é pleno a morte nada é.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Segunda Entrada do Diário Laboratório de 14/3/2018


(Segunda Entrada)

No contar, a importância axial do exercício da minúcia. De outro modo, o perigo da generalização e do vago, da tese e não da história, isto é, da sua circunstância num tempo; o que foi assim e não d'outra maneira qualquer. O que é mais do que a forma. É, em conjunto, inseparável com o seu conteúdo; mas que só o poderia ser naquele momento, com tais personagens, nesse espaço cénico e tudo o mais que seja relevante e que, além disso, é único.

sábado, 20 de outubro de 2018

Primeira Entrada do Diário Laboratório de 14/3/2018


14/3/2018
(Primeira Entrada)
Ventos atrozes os da impaciência.
Os da obsessão fragmentária.
Quisera a obra extensa e, por isso, também intensa pois, num certo sentido, amiúde puramente quantitativo, a respiração dilatada permite a exploração das intensidades intrapsíquicas, do detalhe descritivo, da modelação lenta, por exemplo, de um personagem.
A brevidade, fulguração exígua, tem evidentes limitações.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Entrada do Diário Laboratório de 13/3/2018


13/3/2018
A ansiedade é sempre um sentimento d’angústia - um aspecto existencial que é uma captura. Sentem-se, obsessivamente, as seguintes perguntas: «porquê eu?»,«porquê eu, nesta conjugação cósmica que fez levantar-se esta urgência?». Porque também há algo de urgência - no fazer, quando se quer restar quedo; no não fazer ainda, quando se exige a espera.
A ansiedade: suster (ou acelerar) a temporalidade específica do contexto ansiogénico, de tal modo que se suspendam as causas ou que se remetam, instantaneamente, para o passado.
Não custa entender que esse sentimento, na escrita, seja lídimo produtor do fragmento: suspende-se o texto no momento em que surja a primeira dificuldade; remetê-lo para o passado, começando logo outro escrito; por igual curto, provisório e já arcaico.

domingo, 14 de outubro de 2018

Entrada do Diário Laboratório de 12/3/2018


12/3/2018
(Consideração)
É algo de terrível a hora-do-lobo.
Tempo de calma e desolação.
É algo de terrível porque se contempla já – isto é, em qualquer momento da vida - a senelescência e a sua miséria, a fauce escancarada da ceifeira, tudo o que se perdeu e, ademais, parece fazer-se presente tudo o que se irá perder.
É também bela a hora-do-lobo pois é a vivência do vício da melancolia.

sábado, 13 de outubro de 2018

Entrada do Diário Laboratório de 11/3/2018


11/3/2018
A literatura não é quem sou mas estou todo nela.
Um modo, quiçá, de me saber em tod’esta errância. Um modo, quem o adivinha?, de entender o devir do mundo e eu nele ou de o compreender na sua faceta mais externa, como se eu nele não existisse.
Um dia, saberei quem fui.
Há um perigo, contudo. Esse é o de viver excessivamente imerso na dimensão poético-literária; e a vida não é isso. Antes pelo contrário, é, em rigor, tudo o que está fora dela.
Melhor a metáfora do espelho ou a de um eco ou, ainda, de fantasmagoria activa pois talvez convenha ao labor estético reduzir o estrépito das coisas a um murmúrio.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Entrada do Diário Laboratório de 18/2/2018


18/2/2018
Ficção narrativa como função-de-verdade (verdade-do-tempo, bem entendido; está implícito).
Mas, o que é que isso implica?
Um método exploratório cuja pesquisa é descobrimento. Não, o autor não é livre.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

DIVA


Jean Jacques Beineix
                                       
França, 1981


A primeira de várias lições que aprendi com este filme foi a de que era possível filmar um poema, facto até aí considerado completamente impossível na mais imaginativa e jovem mente que me orientava no final da minha adolescência. Um poema em fundo azul feito de formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante atirando-nos para um universo único de sonho e emoção.  O impacto causado por este filme foi de tal maneira profundo que o decidi ver e voltar a ver vezes sem conta sem nunca me cansar ao longo de uma vida inteira. Baseado no livro homónimo de Daniel Odier (1979) com o pseudónimo Delacorta, DIVA representa à partida uma primeira tentativa do cinema francês em se afastar do modo realista até aí imperante na década de 70 bem como o regresso a um estilo melódico e colorido mais tarde definido como cinéma du look (*). Um estilo onde se incluiriam além do próprio Beineix, cineastas como Luc Besson e Leos Carax que privilegiavam o estilo sobre o conteúdo, o espectáculo sobre a narrativa, num visual focado em personagens jovens representantes de uma certa marginalidade na França de Miterrand. Há uma cantora lírica (interpretada pela soprano americana Wilhelmenia Fernandez) que se recusa a fazer registo das suas actuações, um jovem carteiro amante de ópera que consegue uma gravação pirata num concerto, um grupo de mafiosos que procura por todos os meios obter essa mesma fita, uma rede de tráfico de mulheres dirigida por um inspector da policia e sobre tudo isto, Paris. Mas a história acaba por ser o que menos interessa na medida em que o tempo é escasso para absorver tanto a beleza das imagens como do objecto filmado. Mais uma vez o Cinema assume a sua linguagem directa exprimindo-se na sua dimensão mais pura de significação deixando a narrativa e a sequência da acção num plano secundário. Desde a alucinante cena da perseguição no Metro até à explosão de um clássico Citroen branco e imaculado dos anos 30 passando por um farol idílico e um "puzzle" gigantesco que só vamos conseguir entender mesmo no fim vai pairando sobre nós uma área da ópera "La Wally" (1892) do compositor italiano Catalani.  Num filme de enquadramento e folclore típicos da cultura pop, a sua inspiração principal vem do amor à ópera reforçando as possibilidades ilimitadas de diálogo entre estilos, artes e discursos que aparentemente nada têm a dizer entre si. O compasso entre a beleza do canto lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem carteiro, bem como com o auxílio dos seus companheiros de aventura.
O cartaz deste filme é uma expressão de identidade visual daquilo que pretende representar, ou seja, um jogo de formas e personagens de várias dimensões em harmonia interactiva. Um fundo azul, rostos inacabados, assustados, caminhos sem direcção, universos distintos comunicantes entre si.
Para mim, para além de um dos filmes da minha vida, DIVA é um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é também um convite à imaginação e à obrigação que todos temos de construír algo de belo num espaço onde estamos apenas de passagem.





Artur Guilherme Carvalho

(escritor/cinéfilo/crítico de cinema)




(*) Designação atribuída ao crítico de cinema Raphael Bassan em "La Revue Du Cinéma" nº 448 de Maio de 1989.

Publicado na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema, na colecção Textos e Imagens. 

Lisboa 05/07/2018

quinta-feira, 7 de junho de 2018

SUNRISE



SUNRISE

F. W. Murnau

EUA, 1927





Foi em Outubro de 1981, ao fim de tarde, que conheci a minha segunda casa.
Ainda nada tinha visto de Murnau, apenas sabia, do que já tinha lido, que era um dos maiores realizadores de sempre, mau grado a curta filmografia, interrompida brutalmente, aos 42 anos de idade, por um acidente de viação cujas concretas circunstâncias nunca foram totalmente esclarecidas.
Já tinha vistos filmes mudos, já me sentia fascinado pelas possibilidades dos silent movies, e até já sabia que Murnau, a esse nível, havia realizado um filme único, quase sem intertítulos – Der Letzte Mann – mas foi só nesse fim de tarde que percebi a verdadeira maravilha que era poder contar uma história de forma intrinsecamente visual, com recurso, essencialmente, a imagens, em que as palavras são meramente acessórias para a dinâmica da narrativa.
Hitchcock – cineasta que me é tão caro – dizia que o verdadeiro Cinema era o mudo, pois começou por ser a arte de contar uma história apenas por imagens e pela capacidade de, utilizando os seus próprios mecanismos, câmara, iluminação, actores, cenários e figuração, torna-la percebível e credível aos olhos dos espectadores.
Sunrise é um exemplo máximo dessa Arte, como, aliás, todos os demais filmes mudos de Murnau, quase todos eles, obras máximas da História do Cinema.
Nosferatu dispensa apresentações pela genialidade da realização, O Último dos Homens é magistral, Tartufo espanta pelo rigor da encenação, Fausto é brilhante no rigor dos enquadramentos e nos espantosos claros-escuros, mas Sunrise é tudo isso junto.
São muitas as suas exegeses, centenas os seus trabalhos de análise, inúmeros os livros que o analisam, pela história, pelos subterfúgios, pelo modo de contar, onde o mesmo é dissecado, plano a plano, fotograma a fotograma.
Nessa medida, apenas quero relatar, um pouco melhor, a impressão que me causou a espantosa história, tão simples nos seus pressupostos e tão singela na forma de ser contada, que quase me faz pensar que qualquer pessoa poderia filmar assim.
O eu vi em Sunrise, nessa tarde de 1981, é que ao lado de uma aparente apologia da felicidade doméstica, o filme mergulhava nalguns dos mistérios mais fundos do ser humano, como o amor, o desejo e a culpa.
Modelo maior disto mesmo, é fabulosa panorâmica, num longo plano único, logo no início do filme, em que acompanhamos a viagem de George O`Brien até Margaret Livingston, a perversa mulher da cidade, a erótica e sensual vamp, pelo qual se perde de desejo, admitindo até matar a sua angélica mulher, para poder vender a sua quinta e partir com aquela para a cidade.
É uma sequência admirável, com alguns pormenores absolutamente geniais.
Os arbustos que cedem à passagem de O`Brien, a atmosfera onírica, a sensação de pecado que emerge das imagens e Margaret Livingston a retocar o rosto e os lábios, assim que se apercebe da aproximação daquele, tudo demonstrado de forma exclusivamente visual, sem a protecção de qualquer som.
Depois há os beijos e vamos percebendo – sempre e só, através da força das imagens - o domínio que aquela mulher, vestida de preto (difusamente iluminada, por contraste com a claridade que sempre recai sobre a simples Janet Gaynor), tem sobre a personagem de George O`Brien e a forma como este dificilmente resiste aos seus encantos.
Exemplo paradigmático disso, é como apesar de, ao princípio, se horrorizar com a sugestão que ela lhe faz de matar a mulher, acabar por admitir essa realidade, assim que vislumbra, num espantoso plano sobreposto, a loucura da movida da cidade e as possibilidades que se lhe abrem quando antevê a possibilidade de a gozar com uma mulher tão atraente e apetitosa.
Por isso, gosto tanto desta fotografia.
O`Brien, vergado ao fascínio do mal, irreversivelmente seduzido pela perversidade absoluta daqueles olhos negros, do cabelo preto, do chapéu escuro, da blusa preta, das pernas com meias de rede, dos sapatos de salto alto e de tudo o que este conjunto promete em conjugação com as delícias do mundo da cidade.
Sabemos todos a continuação da história e como O`Brien passará todo o filme a gerir a culpa de ter preparado o assassínio da sua mulher, a procurar redimir-se e como encara o naufrágio desta como uma punição pelo seu anterior comportamento.
Naquela tarde de Outubro de 1981, estava ainda longe de saber que a culpa seria um conceito que me apaixonaria e que me iria perseguir a vida toda em termos profissionais.
Em Sunrise, esse percurso criminal, de luta entre a honesta ruralidade e a maldade citadina, de culpa e redenção, começa nessa sublime sequência inicial, que esta fotografia reproduz parcialmente.
Também foi com Sunrise, que iniciei um percurso do qual me orgulho como pessoa.
Sunrise foi o primeiro dos muitos filmes que vi na Cinemateca, a casa onde aprendi a ver cinema.
Também por isso, Sunrise é um dos filmes da minha vida.


Renato Barroso

Juiz Desembargador



Nota: Este texto foi publicado originalmente na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema
no âmbito da série "Textos e Imagens".


  

segunda-feira, 4 de junho de 2018

AZEITONAS

                  

                                                                         Sofia

terça-feira, 29 de maio de 2018

SINOS QUE TOCAM


                                                             
                                                                       Sofia

quarta-feira, 23 de maio de 2018

EMPTY BELLY





            

                                                                        Sofia

quinta-feira, 17 de maio de 2018

ANDRÉ BAZIN










Nota: Este texto foi originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.






“Qu’est-ce que le cinéma ?”


                O que é André Bazin ? Obviamente, a pergunta não visa a identidade formal do autor; sabemos, e afirmámo-lo em texto anterior desta rubrica “Textos & Imagens” dedicado ao nº 1 da revista “Cahiers du Cinéma”, que é o mais importante e influente crítico e teórico do pós-guerra. A medida dessa importância e dessa influência é sobejamente conhecida, sobretudo entre os autores da Nouvelle Vague. Sobretudo, mas não só; basta que pensemos na plêiade de autores (já não autores de cinema, mas pensadores de cinema) que, dos dois lados do Atlântico, se reclamam seus herdeiros e também seus contestários. Aliás, a contestação é uma outra forma de reconhecimento, manifestando-se muitas vezes através de uma figura a que Harold Bloom chamou “angústia da influência”  (ver “O Cânone Ocidental”).
                Assim, a pergunta inicial dirige-se a um núcleo de sentido que tem a sua origem no modo como jogou “o jogo das categorias”, entendendo-se “categorias” no sentido filosófico de conceitos e constelações de conceitos que criam zonas de discursividade progressivamente radicadas numa determinada cultura, fazendo evoluir o horizonte de inteligibilidade do(s) objecto(s) sobe os quais se debruçam. Utilizando uma expressão de Michel Foucault, a ordem do discurso de André Bazin inaugura aquilo a que mais tarde se chamaria “cinefilosofia”, ou seja de um tipo de pensamento que pesquisa a essência do cinema recorrendo à pura forma interrogativa da disciplina filosófica, a pergunta “o que é”, que remete para uma ontologia do cinema. Se dúvidas houvesse sobre a afirmação do acto fundador de uma reflexão filosófica sobre o cinema (apoiada em categorias e conceitos ), bastaria a referência a uma dimensão ôntica do objecto para que todas essas dúvidas se dissipassem.  No texto fundamental, datado de 1945[1], “Ontologie de l’image photographique”, Bazin expõe o seu postulado : “O cinema aparece como a ealização no tempo da objectividade fotográfica”[2]. Evidentemente, a abordagem filosófica do cinema por André Bazin conhece um limite, que é também uma possibilidade: a sua relação com a realidade e é precisamente nessa relação com a realidade, ou melhor, é na teorização dessa relação entre o cinema e a realidade que se funda a reflexão filosófica. Até aqui, nada de muito relevante se pode extrair destas formulações; é um dado adquirido que o cinema regista mecanicamente a realidade e a reproduz também de um modo mecânico, numa relação documental. Aquilo que, a nosso ver, representa o salto quântico do pensamento de André Bazin é a crença na capacidade cinematográfica de, ao revelar o real, participar efectivamente no próprio ser do real. Dir-se-á que esta caracterização sumária do pensamento de Bazin carrega consigo um vocabulário tecnicamente filosófico, tomado de empréstimo à Ontologia, a mais grave e metafisicamente comprometida disciplina filosófica. Para dissipar essa impressão, dizemos que o vocabulário é o do próprio Bazin que, descendo ao nível da matéria, refere numa das mais luminosas páginas destes ensaios a principal qualidade do acto revelatório existencial do cinema: o facto de “tocar a carne e o sangue da realidade” [3].  É por isso que à montagem , que retalha e escamoteia o real, Bazin prefere o plano-sequência que deixa aflorar a vibração das coisas, o que nos faz pensar no imenso talento do acaso e na sua quota parte de responsabilidade na criação cinematográfica; se substituirmos “coisas” por “fenómenos” teremos uma outra perspectiva filosófica que o teórico não desdenharia: a abordagem fenomenológica, o real tal como ( nos) aparece e se manifesta (perante a câmara). O que introduz ainda uma outra perspectiva correspondente a um âmbito de reflexão filosófica por excelência: a ética, pela qual mede as implicações morais do registo mecânico / técnico do qual refere a principal característica: a fidelidade. O neo-realismo, levado ao apogeu por Roberto Rossellini, fornece a Bazin um magnífico exemplo prático da sua teoria. Diferentemente das escolas artísticas que o precederam,  o realismo do neo-realismo, na obra de Rossellini mais do que na obra de qualquer outro cineasta, reside menos nos temas que na estética, a acreditarmos no seu credo:  “As coisas estão aí, porquê manipulá-las ?”, pergunta o cineasta italiano. Para Bazin, o neo-realismo é uma tomada de consciência do real, que produz um novo tipo de imagem, a imagem-facto : “Sem dúvida a sua consciência, como toda a consciência, não deixa passar todo o real, mas a sua escolha não é lógica, nem psicológica: é ontológica no sentido que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global”[4]. Essa tomada de consciência (um termo com uma longa carreira filosófica) produz um grão de realidade, “um acrescento de realidade no ecrã”.[5]
O fervor com o qual foi recebido o pensamento baziniano é emblemático da filosofia do cinema , em particular da tradição crítica da revista “Cahiers du Cinéma”: os seus fiéis depositaram uma fé imensa no seu pensamento, portador de valores morais e criador de uma extraordinária foça simbólica. Eric Rohmer, talvez o seu herdeiro mais directo (não filmar senão aquilo que é), mediu, apaixonadamente, o impacto dessa teoria reflexiva. Bazin foi o primeiro a oferecer ao cinema a sua consciência : “À maneira de um explorador, Bazin entrega-se a uma verdadeira prospecção no interior do ser do cinema”. [6] Santificando a objectividade cinematográfica, Bazin não realizou nada menos do que uma “revolução coperniciana, análoga à que Kant realizou em filosofia. Copérnico deslocou a perspectiva da Terra em direcção ao Sol, Kant do objecto ao sujeito, e Bazin , inversamente, do sujeito ao objecto”.[7] Dessa adoração do ser puro do cinema à religião de um cinema de autor auto-produzido, em ruptura com forças profissionais, económicas, políticas e ideológicas, não foi mais do que um passo.


Arnaldo Mesquita



[1] Utilizamos neste texto a compilação de ensaios Qu’est-ce que le cinéma ?, editada em 1990 pelas Éditions du Cerf, que constitui uma selecção de textos constantes da edição em quatro volumes, publicada em 1958 pela mesma editora e que se encontra disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca. De igual modo, encontram-se disponíveis as edições nas línguas portuguesa e inglesa desta versão reduzida.
[2] “Le cinéma apparaît comme l’achèvement dans le temps de l’objectivité photographique”, ibidem
[3] “Le réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération” ibidem
[4]  “Sans doute sa conscience, comme toute conscience, ne laisse-t-elle pas passer toute le réel, mais son choix n’est ni logique ni psychologique: il est ontologique en ce sens que l’image de la réalité qu’on nous restitue demeure globale” 
[5] “un plus de réalité sur l’écran”, ibidem
[6] ROHMER, Éric, “La «Somme» d’André Bazin” in Le Goût de La Beauté, Paris, Cahiers du Cinéma, 1984. Este volume encontra-se disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.
[7] “[…) une révolution à la Copernic, analogue à celle que Kant accomplit en philosophie. Copernic a déplacé la perspective de la Terre vers le Solel, Kant de l’object vers le sujet, et Bazin, à l’inverse, du sujet vers l’objet”. ibidem

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sábado, 12 de maio de 2018

COMO UM COMBOIO A RASGAR A NOITE









Na solidão escura do sono, no frio sem respostas para tantas perguntas que se continuam a fazer, nas lágrimas solitárias de uma almofada absorvente, na insónia teimosa de um tempo que passa e continua a passar, num caos de sombras decorado de medos, em tudo o que nos perturba sem nos deixar acontecer…alguma coisa…desejamos que alguma coisa aconteça, que interrompa um ciclo sem luz, alguma coisa que apareça das trevas da noite e que a rasgue de uma vez. Um comboio ruidoso e libertador a caminho do seu destino. Um trilho metálico que gema a cada volta das rodas da locomotiva. Qualquer coisa que se chama com um grito desesperado de interrogação, de raiva e de insistência em cavar uma vala, abrir um espaço de luz que nos alivie por instantes, que nos aqueça, que nos faça uma festa de cabeça e nos dê por pouco tempo que seja a certeza de um conforto, a tranquilidade de um sono despreocupado, a memória de outro lado no universo. Como um comboio a rasgar a noite, uma massa metálica em movimento, uma linha aberta que por onde passa não deixa nada igual ao que estava. Um comboio a rasgar a noite e a dar respostas a seres solitários que desesperam no silêncio. Os carris desenhados pelo correr ritmado do peso das rodas…ou será uma bateria a marcar o ritmo, a dar a entrada para os primeiros acordes? Um farol a acordar  cada buraco escondido, todo e qualquer espaço adormecido obrigado a acordar, um apito estridente suspenso no ar embriagado de vertigem que explode, uma direcção, um destino, uma velocidade alucinada. Ou então uma guitarra rendilhada a saltitar ao longo de uma escala, um solo, uma melodia. Um comboio a rasgar a noite como uma seta que assobia e atravessa o vento a uma velocidade vertiginosa. O baixo a acompanhar o bater do bombo da bateria a delimitar os cantos do ritmo com arranques roufenhos. E depois uma voz, feminina, doce e ao mesmo tempo grave, uma voz de menina a trautear sem letra, apenas uma área inventada que afaga embalando. Com todos os componentes no seu lugar os seres embarcam preparando-se para desfrutar a viagem. Agora sim. A noite pode continuar a ser noite, o frio, o escuro, a solidão e o medo. A imensa tela negra pode continuar absoluta, imponente, pesada sobre a cidade. O comboio arrancou e já nada o vai conseguir fazer parar. E lá dentro há passageiros, espectadores, companheiros de viagem que se empolgam com o som, que se maravilham com a velocidade, que vibram com a harmonia. A sua viagem é agora tudo o que lhes fazia falta para melhor atravessar o vale das sombras. A música é o seu guia por instantes, as canções as carruagens que se vão seguindo atreladas umas às outras. Eventualmente o comboio acabará por chegar ao seu destino, por parar. Mas nessa altura já terá cumprido a sua função. Não sei explicar quem sou mas reconheço-me se me encontrar…
Como um comboio desembestado a rasgar a noite com um potente farol a abrir caminho nas trevas, uma canção ritmada, uma harmonia embalada, um espaço aberto de esperança ou uma pausa para respirar. Um tempo limitado e vertiginoso em que por uma fracção de segundo os seres se apresentam a si mesmos, abraçando-se, reconhecendo-se. Um apito estridente a envergonhar o silêncio. Um tubo metálico que passa numa enorme pausa onde nos conseguimos encontrar. Uma viagem ao interior de quem somos, de quem nunca deixámos de ser. Uma vertigem que passou por aqui e que nos fez aguardar a manhã com muito mais ânimo, vontade e capacidade para continuar.

Artur


sábado, 14 de abril de 2018

GAIVOTAS AO FIM DA TARDE




    Ao fim da tarde, mais ou menos à mesma hora, quando resolvo ir lá fora fumar um cigarro, é como se houvesse encontro marcado. Elas passam em bando sempre de Sul para Norte em direcção ao mar. São para aí umas vinte gaivotas em formação desordenada. Fazem-se anunciar porque emitem dois tipos de pios, um logo a seguir ao outro. Dois tipos de pio distantes entre si. Julgo que no pelotão compacto há uma, talvez o guia, o "fila guia" para usar uma expressão de cavalaria, que pia primeiro. Responde-lhe outra gaivota (ou outras) mais distante da formação. Como se a primeira quisesse dizer: "Estamos aqui…vamos a passar…junta-te a nós." A outra responde e começa a aproximar-se. Quando já estão todas juntas calam-se e apontam ao mar.
Todas as tardes  mais ou menos à mesma hora elas passam por aqui quando estou lá fora a fumar um cigarro. Como bando organizado e instintivamente conhecedor do seu rumo agrupam-se desenhando várias formas quase geométricas em sucessivas modalidades de formação. Uma esquadrilha da passarada, a voar alto sempre na mesma direcção. Como almas entre encarnações, preocupadas em não deixar ninguém para trás, organizadas de acordo com a variação dos elementos. Há sobre a casa e sobre mim um espectáculo posto em cena pela Natureza que nenhuma mão humana organizou. Como se fosse parte de uma espécie dispensável que se não existisse também não fazia diferença nenhuma para a organização da vida. Ou então elemento de uma harmonia muito maior que a minha espécie, ou a delas, ou mesmo de todas as espécies num gigantesco universo. Nesta actuação sou um simples espectador, função passiva de quem não só se deslumbra como aprende qualquer coisa. Ou então elemento constitutivo de um quadro em que duas realidades se encontram à mesma hora como vizinhos e se cumprimentam fraternalmente. Tudo isso ou coisa nenhuma, que importa?
As gaivotas agrupam-se nos céus escuros do fim da tarde enquanto as observo cá de baixo e tudo pára em espasmos de contemplação e harmonia.
Deito o cigarro fora e aceno. Bom voo. Até amanhã.

Artur

terça-feira, 27 de março de 2018

OS VENTOS DA HISTÓRIA NUNCA MENTEM




Estamos a viver tempos que só não lhes chamaria estranhos na medida em que se inscrevem na ordem repetitiva da História. Tudo acaba por se repetir embora nunca da mesma forma. Em espiral (ascendente ou descendente depende do ponto de vista). E não é preciso avaliar os acontecimentos à lupa para deles conseguir obter uma visão mais ou menos transparente, para encontrar atrás do folclore, do circo propagandístico em que se transformou a comunicação social, uma outra realidade, uma outra intencionalidade quanto à forma como se pretende que as populações pensem. Há nos últimos tempos duas referências que me chamam demasiado a atenção para não conseguir ficar calado. São elas o assassinato do ex espião russo em Inglaterra e a prisão de dirigentes catalães acusados do crime de sedição (incitação à rebelião, levantamento popular). Denominadores comuns das duas situações, a ignorância estimulada e a desagregação de um império.
Na Catalunha aguarda-se a próxima colecção de disparates. Puidgemont foi demasiado depressa demasiado longe, Rajoy utilizou a força excessiva e desadequada, o rei escondeu-se atrás do chefe do governo em vez de assumir as suas responsabilidades de chefe do estado, logo, elemento agregador, árbitro, moderador de conflitos. Nesta história onde não há heróis, apenas incompetentes, uma questão política que só poderá ter um desenvolvimento e uma conclusão política foi tratada (e mal) como uma questão judicial; um sentimento de autonomia e independência foi transformado numa afronta directa à potência ocupante sem recursos para a resposta musculada; a instituição de onde se reconhece a postura de equilíbrio e ponderação das décadas anteriores (aquela que conduziu o processo de transição democrático e que o reafirmou quando Tejero Molina ocupou o Parlamento, que encerrou os tempos negros da luta armada da ETA, que mandou calar ditadores em directo em cimeiras internacionais, e que , por fim tornou a Espanha num estado soberano democrático e europeu aos olhos do mundo) é hoje uma sombra daquilo que foi.
Aguarda-se a próxima sucessão de disparates, dizia eu. Os dirigentes catalães estão detidos não pelo crime de sedição (que a meu ver não cometeram) mas sim por crime de pensamento. Nessa linha Rajoy vai ter que prender mais alguns milhões de catalães que votaram favoravelmente no referendo que previa a possibilidade da independência catalã. E os independentistas?  O que é que se segue? A revolta armada? Porque com o regresso de conceitos como "presos políticos", "exílio", etc, daqui a não muito tempo já não estamos a falar num estado democrático. Porquê? Porque num estado democrático é suposto aceitar as opiniões divergentes, é suposto dialogar, negociar, encontrar compromissos. A última vez que uma situação semelhante teve lugar em Espanha os guerrilheiros da ETA eram condenados à morte pelo garrote e o carro de um primeiro ministro voava à altura de quatro andares num atentado terrorista. E agora Filipe VI? Qual é a Espanha que sua majestade está preparado para dirigir? A continuação do legado do seu pai, uma nova guerra entre os seus súbditos ou o regresso aos tempos negros do franquismo? A União Europeia também tem uma palavra a dizer sobre a crise da Catalunha. Ainda ninguém percebeu é qual…
E por fim uma palavra de desagrado para o PSOE e de certa forma toda a esquerda espanhola que neste processo ou assobiou para o lado ou se escondeu atrás dos acontecimentos em segundo plano. Espanha é um estado composto de várias nações e é no equilíbrio, no diálogo e no compromisso que assenta a sua vitalidade. Ignorar a identidade cultural, linguística, ignorar a diferença para impôr a autoridade das botas da polícia, dizem os ventos da História, acaba sempre mal.

Por fim o assassinato de um ex espião russo em solo inglês. A histeria do ocidente a expulsar diplomatas russos. Uma história muito mal contada, a fazer lembrar as armas de destruição maciça do Iraque que afinal não existiam. Uma primeiro ministro britânica a tratar do Brexit com a delicadeza de um elefante numa loja de louças que diz que foram os russos mas insiste em não apresentar provas com o coro e a aprovação do império em declínio que viu furados os seus planos para tomar conta da Síria e que vai assistindo à perda da hegemonia isolada no mundo com a ascensão de novas potências a descartar o dólar enquanto moeda de referência nas transacções petrolíferas. Nada tenho contra ou a favor de Putin, não mora perto de mim. Mas já quanto aos Estados Unidos e Inglaterra, assusta-me ver os destinos destas duas grandes nações nas mãos de incompetentes em estado de negação. Lembram-se da I Guerra Mundial? Começou porque um Arquiduque foi assassinado. A partir daí, de erro em erro a Europa mergulhou numa das suas mais negras noites em que milhões se mataram alegremente para nada. No fim quem é que ganhou alguma coisa com isso? Bancos e conglomerados económicos. É preciso pensar duas e três vezes de cada vez que as notícias são despejadas em cima de nós. Já repararam que as estações de "informação"dizem todas a mesma coisa sem diferenças que se vejam? Que as notícias são bombardeadas vindas do nada até à exaustão e depois desaparecem? Hoje só se fala de amendoins, daqui a um mês só existem melões. Ao crimethought (conceito orwelliano de crime de pensamento) dos catalães juntamos  o pensamento monolítico de verdade variável. E toda esta conjugação, todo este cenário nos vai afastando quer da realidade quer da nossa natureza. Ao aceitarmos como naturais as atrocidades do passado, ao entendermos como inevitável a destruição e o cataclismo humano, ao sermos carneiros entregues aos lobos para que nos devorem. Os ventos da História sopram sempre mais do que uma vez. E nunca mentem.

Artur

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segunda-feira, 19 de março de 2018

THE MASS ORNAMENT - SIEGFRIED KRACAUER




The Mass Ornament . Weimar Essays, Siegfried Kracauer  Siegfried Kracauer; translated by Thomas Y. Levin.-London : Harvard University Press, 1995



Na introdução à versão norte-americana de “Das Ornament der Masse”, Thomas Levin chama a atenção para uma metodologia programática presente na secção de abertura do ensaio com o mesmo título, datado de 1927, na qual Kracauer enuncia o modo como a insignificância dos artefactos quotidianos os capacita para se tornarem índices ou sintomas de condições históricas específicas:
                “A posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada com maior rigor a partir de uma análise de expressões inconspícuas ao nível superficial do que a partir dos juízos que essa época produz a propósito de si mesma. Já que esses juízos são expressões de tendências de uma era particular, não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição geral. Pelo contrário, as expressões ao nível superficial, em virtude da sua natureza inconsciente, providenciam acesso não mediado à substância fundamental do estado das coisas. Correlativamente, o conhecimento do estado das coisas depende da interpretação dessas expressões de nível superficial. A substância fundamental de uma época e dos seus impulsos desapercebidos iluminam-se reciprocamente”.

Como se entende este programa e quais as suas consequências no esquema interpretativo desenvolvido por Kracauer ao longo dos ensaios que constituem esta colectânea ?  Noutros termos,  como é que o domínio da realidade empírica – e em particular as suas superfícies, previamente rejeitadas como reino do vazio e da ausência – veio a assumir um papel tão central no pensamento de Kracauer ? Cremos que tal se deve a uma alteração radical da compreensão da filosofia da história, fruto de um longo diálogo com Walter Benjamin e Theodor Adorno, que redunda na substituição de um modelo histórico estático como queda ou declínio por uma concepção da história como processo de desencanto e de antagonismo entre as forças da natureza e as da razão. Por outro lado, o estudo sobre as novelas detectivescas revela uma combinação dos seus interesses filosóficos iniciais com a investigação da cultura de massas; ostensivamente um estudo sobre a acção detectivesca, esse ensaio conhece uma dívida para com a obra de Kierkegaard, cujo modelo de esferas interrelacionadas  (estética, ética e religiosa) foi apropriado por Kracauer. Esta importação de Kierkegaard  só aparentemente é arcaica; tal como Hannah Arendt comentou a Anson Rabinbach  (“In The Shadow of Catastrophe: German Intelectuals Between Apocalypse And Enlightment”), depois da I Guerra Kierkegaard era o filósofo do dia. Que razão dita a  profunda influência de um pensador tão intensamente cristão em intelectuais de confissões religiosas diferentes é uma questão que não pode ser respondida aqui, bastando que fiquemos com a ideia de que o pensamento de Kierkegaard  configurou a noção de vocação crítica desenvolvida por Kracauer e que esse pensamento oferece um enquadramento trágico para a agenda político-cultural de Kracauer durante o período de Weimar.
No que ao cinema diz respeito, Kracauer é sobretudo conhecido pela obra “From Caligari To Hitler : A Psychological History Of The German Cinema”  de 1947, na qual apresentava uma história do cinema alemão dos anos entre as guerras mundiais, argumentando que os seus temas reflectiam as condições psicológicas e sociais que conduziram ao nazismo, e também pelo livro “Theory of Film: The Redemption of Physical Reality” (1960), no qual assume a noção chave que subjaz à sua conceptualização de estética cinematográfica  “material”: o cinema é essencialmente uma extensão da fotografia, partilhando com esse médium uma marcante afinidade com o mundo físico e visível que nos rodeia. O cinema torna-se ele próprio quando regista e revela a realidade física.  Apesar da importância capital destas duas obras, acreditamos que elas estão longe de sintetizar todo o pensamento cinematográfico de Kracauer, sendo justamente nos ensaios dos anos 20 aqui coligidos que podemos encontrar as perspectivas, antevisões e visões prospectivas que hão-de configurar as teorizações posteriores, conferindo-lhes um sentido e uma lógica interna que, de certo modo, as tornou um cânone. Assim,  a estética do cinema construída por três dos mais importantes  pensadores do século XX – Theodor Adorno, Walter Benjamin e Sigfried Kracauer, abre a possibilidade de pensar a experiência da modernidade sob a perspectiva de uma crítica filosófica  que opera a partir da arte e dos meios de comunicação de massas.  Habitualmente, a maioria dos trabalhos no domínio da teoria crítica sobre a temática da arte, da tecnologia e da cultura de massas reduzem o campo problemático a uma caracterização da indústria cultural de Adorno e Max Horkheimer como pessimista e elitista oposta ao optimismo tecnológico que Benjamin desenvolveu no ensaio  “A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Mecânica”.  É neste contexto que se revela a importância fulcral da obra de Siegfried Kracauer , autor central para fundar e  discutir ao mesmo tempo uma teoria do cinema.
     Os escritos coligidos neste volume, cujo significativo subtítulo “Weimar Essays” remete imediatamente para uma época histórica e as suas determinações,  para além de críticas de cinema, são constituídos por recensões de novelas detectivescas e literatura de divulgação, textos sobre o circo, a cidade, o desporto, o teatro, entre outros) e manifestam exuberantemente a intenção de desenvolver uma estética cinematográfica a partir de uma perspectiva da modernidade. Ao longo da obra torna-se evidente uma outra translação muito significativa do pensamento de Kracauer: a compreensão pessimista da modernidade, que compartilha com Max Weber e Georg Simmel, entre outros,  que afirma a privação humana de um horizonte de experiência que permitiria aos homens conferir sentido aos processos relacionados com a técnica, a ciência e a economia capitalista, evolui para uma curiosidade astuta em relação aos fenómenos da vida moderna, em particular, a cultura de massas.  O objectivo passa a ser, não o fundamento de uma noção expandida de modernismo estético, mas relacionar a fotografia e o cinema com aquilo que, para o autor, define o século XX : a produção, o consumo e a emergente sociedade de massas. Se quisermos levar mais longe e aprofundar o contraste com o pensamento de Walter Benjamin, diremos que, onde Benjamin via o esvaziamento do tradicional sentido aurático  como  algo de positivo que poderia libertar as massas de qualquer tendência de queda no totalitarismo (nazi ou fascista), Kracauer acreditava que a modernidade representava “um esvaziamento de sentido, uma bifurcação do ser e da verdade” (Thomas Levin “Introduction”). Portanto, ao contrário de Benjamin, Kracauer descreve o modo como a ascensão das massas mediatizadas é acompanhada pelo esvaziamento de sentido – um esvaziamento impulsionado pelos valores capitalistas que competem com e minam as formas não-fetichizadas de conferir poder às massas.

Arnaldo Mesquita


 Nota: Este texto foi originalmente publicado na página web da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

     

segunda-feira, 5 de março de 2018

DESEMBARAÇO


                                                             Belém do Pará / Brasil


                                                                          Sofia