domingo, 20 de junho de 2021

ANGOCHE (Os Fantasmas do Império)


 

 

 


 


 Carlos Vale Ferraz

 

Porto Editora, Maio de 2021

 

 

Confesso que li este livro sem parar, coisa que já não me acontecia há muito tempo. Da mesma maneira que os cemitérios estão cheios de heróis e pessoas saudáveis, os impérios fazem-se de atrocidades, sacrifícios e razões duvidosas. A glória, a superioridade moral e a lenda são os elementos usados para construír posteriormente a narrativa que os justifica. No meio correm existências, vidas de pessoas apanhadas no tempo que lhes foi concedido e que por sua vez actuam conforme as circunstâncias. As que se lhes apresentam e as que transportam na bagagem da sua personalidade. Mas vamos por partes.

A 23 de Abril de 1971 parte do porto de Nacala (Moçambique) um navio mercante português com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba) levando consigo a tripulação e um civil num total de vinte e quatro ocupantes, além de um carregamento de material de guerra destinado ao exército português no Ultramar. No dia seguinte de madrugada, um petroleiro encontra esse mesmo navio, de seu nome "Angoche", à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo. A PIDE/DGS abre um inquérito e ao longo do tempo vão-se acumulando várias versões. Os possíveis culpados vão-se alinhando sucessivamente embora sem provas. Mais tarde, depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE desaparecem. Se existiram testemunhas elas permanecem em silêncio adensando o mistério deste navio fantasma. É a partir daqui que Carlos Vale Ferraz (CVF) vai desenvolver um romance puramente ficcional cujas linhas narrativas acabarão por se cruzar a todo o instante com a realidade. Entre os serviços de informação, as operações clandestinas e mais uma série de protagonistas, debaixo de um cenário de guerra condicionado pelos subterrâneos da diplomacia e do xadrez internacional da região o romance abre-nos uma vasta paisagem de acções e intervenções em relação à quais as visitas ao rigor histórico não só são permanentes como se apresentam vestidas da sua roupagem ficcional nos momentos em que é difícil chegar à sua comprovação concreta. O mistério aprofunda-se ainda mais quando após várias viradas do processo histórico, por um lado não se consegue chegar a uma conclusão definitiva nem por outro ninguém ousou reclamar os louros dos acontecimentos. Ficam as memórias, os testemunhos e o silêncio. Um silêncio profundo, quase religioso, entre aqueles que poderiam ter alguma informação pertinente sobre o navio fantasma.

Mas "Angoche" é muito mais que uma passagem "wagneriana" nas páginas da nossa história colectiva, muito mais que um simples jogo de "passa-culpas" entre as forças existentes. Trata-se da materialização alegórica do fim de um ciclo protagonizado por personagens, ficcionais ou não, que são antes de mais o testemunho humano do fim do império.  Através do processo ficcional CVF vai construindo uma teia de silêncios que se adensa no comportamento dos seus personagens mas que ao mesmo tempo nos ajuda a interpretar não só aquele trágico evento como todo o cenário mais vasto de um mundo que acaba por ser engolido pelos ventos da História. Na sua fase inicial os impérios produzem heróis, mártires e génios de todo o tipo. Na sua fase final limitam-se a fabricar fantasmas, testemunhos pálidos de uma tragédia inevitável. E quer na primeira quer na última fase o grande conflito de cada um estabelece entre a moral e o egoísmo a contenda maior que os irá acompanhar até ao fim dos seus dias.

O romance é todo ele um tributo à lucidez e ao realismo pragmático de que são feitos os homens. Homens que, uma vez conscientes do seu papel de fantasmas acabam por aceitar o seu destino seja ele qual for. As suas memórias, os seus ódios e os seus amores acabarão por morrer com eles fechando desta forma o ciclo da sua existência. O Futuro cantará a cantigas que quiser ao sabor do Tempo e da conveniência dos regimes em vigor. Mas a verdade morrerá com aqueles que com ela privaram como uma amante fugaz e despreocupada de alguns dias. Se foi amor, desporto ou se nem aconteceu, só eles saberão. Os barcos vazios encontrados à deriva no mar não falam. E a História é uma velha caprichosa que só conta o que lhe apetece contar. Resta aos romances apanhar os pedaços narrativos e estimular a inteligência dos seus leitores…

 

Artur

segunda-feira, 14 de junho de 2021

REGRESSOS

 

Décimo nono dia do quinto mês de dois mil e vinte e um ( a última vez que escrevi aqui no diário que passou a mensário). O meu despertador interior, as minhas inquietações, ou o anjo da guarda ( como dizia a minha mãe), acorda-me a tempo de assistir ao renascimento da luz de hoje. Há muito tempo, há quase doze anos, decidi reger-me pelo que me contenta. Se a felicidade se juntar ao contentamento então melhor ainda. Estar contente com o que alcanço, com quem me alcança, é o que me faz sentir quase sempre em estado de graça ( às vezes é só uma hora por dia). As minhas dores, os meus desesperos, as minhas fúrias e revoltas, deixo-as para as batalhas campais, para o corpo a corpo, para as armas que escolher. Quem me conhece sabe que a minha doçura equivale aos vapores que emano pelas ventas quando irritada.
Quando regressei à ilha mãe há quase sete meses, vim extenuada e pronta para lamber as minhas feridas até sararem. Vim para acompanhar a minha filha mais nova o mais à distância possível. Vim para preparar a terra que sofre com a ausência de cuidados. Não estou instalada no passado morgadio da família paterna, nem a abanar-me com achaques à espera que a tormenta passe. Choveu dentro de casa quase todo o inverno e eu só acrescentei a quantidade de vasilhas para recolher a água que caía. Encontrei um desumidificador, uma máquina de secar e uma de lavar. Um colchão ortopédico, um pirógrafo, canetas e tintas, sementes e bolbos. E mais um monte de coisas que contribuem para a minha sanidade mental, entre as quais um machado,uma motoserra e uma roçadeira. Alguns livros e muitos cadernos. Tudo coisas que me capacitam além do tempo para me sentar em qualquer rocha a desfrutar do espetáculo divino que se apresenta diante do meu olhar. A primavera chegou, o verão aproxima-se, e o cansaço dissipou-se.
Cair e levantar, andar e dançar, dormir e acordar, ligar e desligar, ver e observar, ouvir e ser ouvida,escrever e descrever, viver e deixar viver, amar e ser amada, orar e agradecer, são movimentos vitais para manter a humanidade no núcleo da minha existência. Qualquer falha neste processo é como menos uma pedra na calçada., como um caminho que se faz irreversivelmente diferente. Por isso tantas vezes coxeio. E por isso às vezes tenho dores. Por isso me corrijo e emendo. E me dou permissão de aceitar a mão que se estende.
No décimo primeiro dia do sexto mês de dois mil e vinte um, recomeço. Continuo o movimento contínuo que me trouxe de volta ao lugar onde sempre quis regressar. 

Elsa Bettencourt

terça-feira, 8 de junho de 2021

Diário Laboratório 2021

12/1/2021

Contudo, é evidente que se sofre de um tipo de bloqueio que é, aliás, muito profundo: o bloqueio pela proliferação disforme do fragmento.

domingo, 6 de junho de 2021

Diário Laboratório de 2021

 11/1/2021

Talvez se possa recorrer, mesmo, à noção de destino: o destino do escritor é um destino de predestinação e pouca coisa haverá que se possa fazer quanto a isso. Ou se nasceu para a escrita ou não. Todavia, além do trabalho intenso, a completude dos projectos e a consequente multiplicação das publicações permitirão, quiçá, multiplicar também as chances que propiciem o encontro supremamente feliz com aquelas circunstâncias que vindiquem uma existência dedicada às letras.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Diário Laboratório de 2021

 10/1/2021

Mais ainda: nem é só, o mais das vezes, o livro o único fiel de um texto. O livro-projecto é, tão-só, a unidade de avaliação da escrita, pois também o todo-da-obra é critério valorativo enquanto contexto constitutivo mais geral onde se inserem cada texto e cada livro.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Diário Laboratório de 2021

 9/1/2021

Na verdade, a única possibilidade de análise valorativa será, porventura, a aferição da fidelidade entre projecto ideado e escrita consubstanciada em livro terminado, ainda que na modalidade de obra aberta...