sábado, 17 de agosto de 2019

ALEXANDRE, O GRANDE EMPRESÁRIO E COMPANHIA

Morreu Alexandre Soares dos Santos.

O omnipresidente Marcelo evocou a personalidade singular de Alexandre Soares dos Santos e o seu relevante papel na vida económica, social e cultural portuguesa.
A última coisa que considero ser Marcelo, é desatento ou distraído. Mas aqui existe uma clara desconformidade na nota emitida à imprensa portuguesa. O relevante papel na vida económica, social e cultural que ele deveria mencionar, não é na portuguesa, mas sim na holandesa já que é na Holanda que o grupo Jerónimo Martins paga os seus impostos. Se for eu, não posso e até aconteceria essa minha eventual aspiração (que não tenho) ser olhada como antipatriótica. Um grande grupo económico, pode. E pode também pagar ordenados miseráveis aos seus funcionários. E pode também  exigir o cumprimento de horários e sacrifícios muito para além do humanamente aceitável.
Tal como Belmiro ou Amorim e outros ‘grandes empresários’ que já deixaram este plano da existência, a única coisa que devemos aprender com eles, é a forma como não repetir a sua acção e exemplo de responsabilidade para com quem para eles trabalha.
É por isso que o ‘branqueamento’ da memória de alguém após a sua morte, seja quem for, não passa de pura hipocrisia. No caso de Marcelo a este propósito, não é. É mais grave.
Na morte, o que fica é a memória de quem parte e as suas acções enquanto por cá andou.
O elogio marcelístico é redutor e formatador, contribuinte explicativo da pequenez de um Portugal absurdamente desigual.
Um lugar onde o sacrifício de milhares ou milhões de portugueses, é justificável no lucro de outros poucos, pouquíssimos, em milhares ou milhões.
Que esta gente na morte, encontre a paz que a ganância ilimitada não lhes permitiu em vida.

Em última análise, são estes os verdadeiros donos de Portugal e dos lugares onde se legisla e decide.

Ao povo, nada.

Hélder 

terça-feira, 13 de agosto de 2019

ENTÃO? AINDA CÁ ANDAS?





Naqueles tempos a Faculdade era um espaço estranho e grandioso para os seus alunos mais novos. Tinha tanto de fascinante como de fascizante no que às relações humanas dizia respeito. Por um lado era o último patamar da formação, o último desafio antes da vida adulta. A sabedoria, a cultura e as inteligências bailavam entre si fazendo-nos sentir importantes, proprietários progressivos de um pedaço de conhecimento…quase donos de um pedaço do universo. As estatísticas diziam que, naquele tempo, apenas cerca de 38% de cada geração chegava ali. Por outro lado a enorme quantidade das cargas de trabalho, as pautas sempre a nivelar por baixo e a vomitar notas baixas e muitos dos mestres distantes e austeros concorriam para a desmotivação e o desalento.
Ele era um merdas como tantos outros em todos os tempos e em todas as gerações. Um Assistente ainda novo que seguia o regente da cadeira como um cãozinho amestrado sempre disponível para qualquer recado, rir das piadas idiotas do velho, em suma, sempre pronto para qualquer habilidade requerida em nome de um doutoramento futuro. Por isso não só não lhe vou dar um nome como nem sequer uma alcunha. Era um merdas e pronto.
O Manuel da Horta (nome propositadamente fictício) era e é ainda hoje, um dos meus melhores amigos de sempre. Um tipo tranquilo, conciliador, afável, conversador e, acima de tudo, um dos seres mais inteligentes que conheci. Volta na volta surpreendia-nos com comportamentos fora do comum, como por exemplo fazer questão de atravessar a rua para cumprimentar pessoas de que não gostava. Ou fazer uma declaração de amor a uma betoneira das obras ( mas isso já em épocas “festivas”).
Chegámos à Faculdade convencidos que éramos uns geniozinhos e que, uma vez ali, o resto do caminho seria um pic nic no parque. Não foi. Um após outro fomos nos habituando ao sabor amargo da derrota, das notas negativas, dos chumbos. O Manuel foi o último a atravessar esta experiência dolorosa. Na oral do cadeirão do 1º ano, com o tal merdas, terminou o dia com um chumbo e um requinte de humilhação pela sua ignorância. Ficou de tal modo traumatizado que no ano lectivo seguinte resolveu não meter os papeis de dispensa e avançar para o SMO (Serviço Militar Obrigatório). Ofereceu-se voluntário para os Rangers.
Na altura, ao abrigo da lei militar havia a possibilidade de fazer o curso com marcações de exames todos os meses, uma forma de minimizar o impacto do afastamento quotidiano das aulas. O Manuel aproveitou esse regime.
A tropa é de certa maneira uma grande Faculdade da Vida onde se somam várias cadeiras de vários saberes. É também uma escola que nos ajuda a crescer de uma forma mais rápida e nos despe de muitas inibições. Corre-se de manhã em tronco nu com um frio glacial, caminham-se kilómetros, dão-se uns tiros, levam-se uns socos, etc,etc. Como dizia outro merdas de um Alferes que me deu recruta: “Procura-se que o instruendo termine a sua formação tendo adquirido uma certa “rusticidade”…”
Na segunda vez que o Manuel veio de Lamego foi directo à secretaria da Faculdade antes de ir a casa, não tendo sequer tirado a farda. Na fila viu que, mesmo à sua frente estava o merdas que o tinha chumbado na época anterior. Não pensou duas vezes. Alçou da mão e pregou-lhe uma palmada enorme nas costas que o fez saltar dois lugares na fila involuntariamente. – Então? Ainda cá andas? – o outro, meio atordoado virou-se para trás. – Ainda cá ando? Mas você conhece-me de algum lado? – O Manuel não perdeu a pose e ripostou: - Schh…vira-te para a frente e caladinho senão ainda levas outra. –
Nessa noite com mais um amigo e no meio das imperiais da cervejaria do bairro contou-nos a façanha como quem explica que foi comprar cigarros. Foi o que lhe saiu naquele momento e pronto. Estava feito. Eu e o outro amigo ficámos embasbacados a olhar para ele. Ainda ia repetir o exame. E se lhe calhasse outra vez aquele gajo? O Manuel mantinha-se tranquilo. Era muito azar levar duas vezes com o mesmo gajo numa oral. Ainda para mais ele estava fardado, de modo que nem o iria reconhecer.
Um mês depois o Manuel foi outra vez à oral da tal cadeira que tinha reprovado no ano anterior. Azar dos Távoras, o tipo que lá estava à espera dele era o mesmo que tinha levado a pantufada na fila da secretaria. O Manuel nem teve tempo de responder a nada. A primeira frase do outro foi: - Então ainda cá andas?


Artur