segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O SER ESDRÚXULO

 


Décimo quinto dia do oitavo mês de dois mil e vinte e um. Dizem que a meio da oração, neste dia, apareceu Santa Maria, exatamente a ilha onde estou agora, a ilha de Gonçalo Velho Cabral, mais coisa menos coisa, meu décimo quinto tio avô. O que é que isto diz senão o chamado da raíz? Quando me perguntam que raio estou aqui a fazer, eu respondo que estou. Estar é das coisas mais difíceis de ser. Ser, e ser verdadeira, é um lugar muito esdrúxulo para se estar, sobretudo quando nos olhamos de fora, mas nunca quando olhamos para fora. Há pouco tempo perguntaram-me como é que eu conseguia viver numa caravana ou numa casa em reconstrução, conhecendo tanto mundo, de dentro de tanto hotel de cinco estrelas.


Respondi que por isso mesmo, que quando estamos no lugar certo pode ser qualquer um, desde que em paz connosco e com os nossos. É como quando se fala de amor, tanto pode ser príncipe como pescador. E o amor soma-se ou divide-se? O amor acrescenta sem contas nenhumas. Se não acrescentar deixa de usar esse nome e passa a todos os diminutivos.



Ser verdadeira é ser livre, só ou acompanhada, ser a assunção de nós próprias, a aceitação das nossas forças e fraquezas, sabendo que às últimas temos a capacidade de as converter em mais força. É preciso cortar o cordão umbilical da culpa com que nos arrastaram durante séculos pelos recantos do planeta. E ser esdrúxula com convicção.


Elsa Bettencourt

domingo, 1 de agosto de 2021

CONTANDO FEIJÕES

 



Trigésimo primeiro dia do sétimo mês de dois mil e vinte um. Hoje é o dia do meu pai Leão. O dia em que cumpre as noventa e três voltas ao sol. Há quase vinte anos que o seu corpo não o faz mas enquanto houver memória o seu espírito as cumprirá. Eu sei que o tempo não conta mas eu conto. Conto estórias. Conto feijões. Conto como gente e como animal. Na realidade conto pouco, matemáticamente falando. Se contasse ficava louca. Se contasse as perdas até ficava rouca. A essas ponho-as na barra olímpica que já pesa nove quilos e ganho músculo. Nós é que contamos, sabias? O mal que fazemos dilui-se nas águas do bem do tempo. É por isso que à distância parecemos quase santos sem ordem papal. Na realidade não há mal se não for capital. Há circunstâncias que transformam os acontecimentos conforme a química de cada um e a física de cada encontro.
Sem ti eu não existiria, sem mim tu também não. Vamos dar uma volta ao Cais ou a Santo Antão?