terça-feira, 31 de agosto de 2010

Re-Blog Escrevinhices

A pedido do Artur aqui fica o post, de 28 de Julho, comemorativo dos 5 anos do Escrevinhices:

1. Há exactamente cinco anos começou o Escrevinhices. E, mil e tal posts depois, mantém-se e mantém a sua parca audiência, uma gota que se quer sã no oceano d'inanidades que infecta o nosso espaço público: é interessante constatar que muitos dos blogues de referência desapareceram; é fácil de explicar: a moda dos blogues passou - agora, em 2010, as redes sociais interessam mais àqueles espíritos de escol que, no afã de manterem a notoriedade, abandonaram os seus badalados espaços da blogosfera logo que perceberam que havia outra coisa no horizonte... Talvez esteja a ser injusto, afinal o facebook chega aos 500.000.000 de utilizadores, porém ... a vaidade é uma fraqueza tão humana e universal que, por tão banal e corriqueira, pouco interessa combater (e ademais, essa gente esqueceu a maravilhosa plataforma criativa que é um blogue, porque não estão interessados em criar nada; nesse contexto que mal tem que os líderes de opinião sigam as modas?)... o problema, e que diz respeito a todos os media, é que a questão que hoje se põe não é já tanto a do suporte da comunicação mas do sobre-excesso de meios que se deparam com uma insuspeita escassez: a da atenção; todos nós, bombardeados por mensagem, temos de ratear o tempo e esforço a despender; numa espécie de dariwnismo comunicacional: só a mensagem mais eficiente triunfa e os critérios dessa selecção, sofisticada e implacável, passam pela relevância da autoria mediada pela vox populi, em termos que importa aqui definir: são os mass media, ie, os agora tradicionais por contraposição à net, que estabelecem uma reputação; os cidadãos anónimos que ganharam uma voz na era dos blogues continuaram anónimos e por isso irrelevantes, a não ser pela força dos números, da massa, o que é uma contraditio in adjecto em relação à noção de autor; um verdadeiro autor é aquele, entre outras coisas - como a qualidade do seu trabalho - cuja voz, pessoal e idiossincrática, tem peso e o poder de se projectar de forma suficientemente eficiente; e hoje luta-se mais pela audiência do que pelo ideal romântico e quiçá ingénuo de um valor intrínseco, fecundo e perene; por isso o efeito pernicioso de uma intelectualidade fútil e até medíocre – detêm, monopolisticamente, o poder de se fazer ouvir, contudo o seu talento não é o de criar uma obra profunda, bela, ou tão-só pertinente mas, justamente, o talento de se fazer ouvir, de perpetuar a sua voz estéril mas que por ser, então, ubíqua, sempre existe como incontornável e algumas vezes insuportável, por ruidosa; o verdadeiro drama é, assim, quando esses mecanismos da sociedade-espectáculo corroem a intelectualidade que, por tradição, deveria resistir a tais processos; isso explicará o triste panorama actual das letras, embora se acredite que só o tempo separa o trigo do joio...


2. Ora, a verdadeira dificuldade, não é pugnar pelo apuro da escrita, servida num quantum, ainda que modesto, de originalidade, estilística e semântica, o difícil é resistir à obscuridade, continuando a trabalhar sob um manto de invisibilidade, enquanto se assiste à progressiva sofisticação e glória desses autores que vampirizam a atenção de todos com um chorrilho de vacuidades, que sufocam, com sua mera presença , qualquer outra voz.

3. Repare o leitor: não tem este escriba a pretensão de possuir talento, nem é pessoa amargurada ou rancorosa; não ataca ninguém em particular por lhe repugnar a polémica: quem isto ler lembrar-se-á de alguns nomes a quem serve a carapuça; muito menos é profeta de uma qualquer hodierna decadência.
Apenas se tenta tecer algumas considerações, não-cientificas e subjectivas é certo, sobre o panorama literário.

4. Crises, houve tantas, que qualquer idade-de-ouro será um mito; e o que é curioso é sempre haver exagero na análise secular do contemporâneo: por vezes os coevos estão convencidos de um imenso fulgor, risível aos olhos dos vindouros, outras, afundam-se em depressiva consciência da queda e no futuro há quem encontre riquezas nessa época desprezada por quem a viveu.
Talvez a realidade melhor se encontre no meio termo: vantagens e desvantagens, virtudes e defeitos.

5. Hoje, qualquer pessoa tem à disposição (e quase de borla) um vasto repositório de informação.
Não é demais salientar esse assombro: nunca houve tal coisa (e a breve trecho poderá deixar de haver, quando as forças censórias, enfim, triunfarem e a ideia criminosa da pretensa protecção dos direitos de autor for imposta a ferro-e-fogo) que faz empalidecer a Biblioteca de Alexandria e a Babel borgiana.
É, porém, inegável que o predomínio da técnica porta consigo perigos relativamente a um certo ideal - porventura vago - humanista das letras.
Perguntais: o que tudo isto tem a ver com o Escrevinhices?
Muito mais do que parece: o objectivo deste blogue, permitido pela técnica, contém-se na luta pela elevação do humano através da cultura e da beleza. Discreto - como o seu autor - não abdica de um alto ideal, de um thelos ambicioso - dir-se-ia, um pouco utópico - mas nem por isso menos real porque em tal fundamente se acredita. Por muito humilde que seja o alcance deste Escrevinhices.
Por isso não acaba.
Desculpem o desabafo.
A emissão prossegue dentro de momentos.

domingo, 15 de agosto de 2010

CRÓNICAS DO BAIRRO II


(Porque o Cristiano morreu)
Naquela época vivia-se “em andamento”, isto é, não havia muito tempo para pensar, porque os acontecimentos sucediam-se a uma cadência demasiado acelerada obrigando-nos a comportar como melgas no Verão…um ciclo de existência muito curto e uma avidez ofegante de vida. Deixar picadelas em todas as carnes, beber todo o sangue possível, evitar as armadilhas electrificadas dos estabelecimentos comerciais, rodopiar alegremente em torno dos lampiões da avenida, e no fim… estoirar. Parar para reflectir os mistérios de tudo isto era tempo perdido, uma armadilha idêntica àquelas duas barras de néon azul penduradas no tecto da geladaria, que de tempos a tempos nos avisavam num estalo ruidoso que alguém tinha caído. A depressão ficava para mais tarde. Para quem conseguisse chegar ao Inverno inteiro. A música ajudava, as miúdas aliviavam, as drogas a adormeciam, as motas aceleravam e a estrada corria à nossa frente sem que nunca a conseguíssemos agarrar.
Um dos acontecimentos que faziam o favor de nos ocupar colectivamente era o Rally de Portugal, com a sua maravilhosa descida nocturna da Rampa da Pena”. De comboio, mota, à boleia, etc, a comunidade deitava mão ao que havia e punha pés ao caminho. Uma dessas excursões começou com um jantar em casa do A nos arredores de Sintra. Para variar, ninguém se lembrou que “dava jeito” ter levado comida para o efeito. Vinho, vodka, berlaites, comprimidos e pó, claro que sim. Agora para ocupar a dentadura estávamos a zeros. Visita de estudo à cozinha, revista aos armários. Um pacote de canja resistia estóico, ou esquecido, o que vai dar ao mesmo, às últimas refeições do Verão passado. Água ao lume, pacote lá para dentro, umas massas milagrosas oferecidas por um Templário de passagem a caminho da terra santa com uma moca nos cornos maior do que o cavalo, e vai de mexer a “poção mágica” para matar a fome àquelas alminhas antes de uma noite inteira nas brenhas da serra à espera dos bólides. Debaixo do ar húmido e penetrante de Sintra, lugar onde invariavelmente, de Verão ou de Inverno…está sempre frio. À medida que era confeccionado o manjar, na sala, as provisões trazidas escorriam goela abaixo, ou consciência acima, conforme a situação. A celebração do rally tornava-se um congresso de convívio amalucado, uma rave “avant la lettre”. Afinal de contas, o rally era uma desculpa, o que interessava era estarmos juntos…a celebrar.
Lembro-me de um diálogo com o P num intervalo da Faculdade, em que corria uma discussão acalorada sobre quem seria o melhor piloto da actualidade. Vendo-me alheado do debate, olha para mim e pergunta: “Então qual é para ti o melhor?” – respondo-lhe que não percebo nada de rallys e que nem sequer ligo muito a desporto motorizado. Por isso não tenho opinião. A resposta pronta, espírito do tempo e da idade, saiu certeira: “Isso se percebes ou não é o que menos interessa! Escolhes um nome e dizes que é o melhor do mundo! Ou pensas que alguém aqui é perito no assunto?”
Voltando à canja, enquanto se faziam ouvir na sala os primeiros grunhidos das invasões normandas, na cozinha o A tem uma ideia de génio. “Eh pá, esta canja está muito fraquinha, vamos ter que lhe acrescentar mais qualquer coisa. Um bocado de vodka, por exemplo” Concordei, até porque um cheirinho numa sopa insípida só poderia encorpá-la de sabor. Assim foi. E voltou a ser, e foi mais outra vez. Para aí meia garrafa para dentro da panela. Claro que o jantar foi um sucesso. As “bóias” começaram a vir ao de cima, umas melhores, outras nem por isso. No fim dos cafés ouvimos a voz do C, como se estivesse a falar de dentro de um nave espacial com uma porta aberta, ou seja, a gritar com a cabeça enfiada na retrete. Dizia que ia morrer, ou qualquer coisa do género. O jantar tinha-me caído na fraqueza obliterando-me a capacidade de decifrar mensagens extraterrestres. Vai tudo a correr na direcção da casa de banho, tentar ajudar no que podia. A muito custo conseguimos deitar o C numa cama, descalçar-lhe os sapatos e cobri-lo com uma manta. Quando já íamos a voltar para a sala, alguém se lembrou que o gajo tinha lentes de contacto e que não podia adormecer com elas postas. A equipa de cirurgia voltou então ao bloco operatório para mais uma missão de alto risco. É claro que se tratava de uma tarefa complicada. Andavam então quatro cirurgiões de volta dos olhos adormecidos do C, quando no corredor passa a figura do irmão dele, o “cara de peixe”, num estado ligeiramente menos comatoso do que o dele. Empurrado por ventos contrários que o obrigavam a abanar como uma árvore à procura da sua postura vertical, o “cara de peixe” tentava focar o que se estava a passar em torno do irmão. Assim que se apercebe, grita para nós: “Ninguém tira as lentes ao meu irmão que ele não é nenhuma máquina fotográfica…” Risota geral, rotas cambaleantes de regresso à sala, C a dormir, casacos vestidos e toca a andar que a rampa da Pena é daqui a menos de uma hora.
Não me lembro de quem ganhou a descida da rampa, nem mesmo o Rally daquele ano. Mas o célebre jantar da canja com vodka e o episódio da máquina fotográfica…esses vou guardar no fundo das minhas memórias para sempre.

Artur