quinta-feira, 30 de junho de 2011

A ARTE E O IMPOSSÍVEL




Da autoria de Jacques Henri Lartigue (1894-1986), esta foto de 1921 é em si um hino ao movimento e ao impossível. Um instantâneo impossível de reter a olho nu, uma situação exterior à nossa capacidade de registo, um movimento parado que insiste em fugir.
Pintor de profissão, Lartigue fez fotografia desde os seis anos, numa época em que havia ainda tudo por fazer nessa área. No cinema trabalhou com nomes como Abel Gance, Jacques Feyder, Robert Bresson, Truffaut e Fellini. Desde miúdo que me sentia fascinado por esta imagem. A arte é precisamente aquilo que a realidade não consegue fazer. (uma homenagem à nossa “partista” Sofia.)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Negatio

... tens a cor, a promessa da cor ... o sentimento do vário do mundo ou, se preferires, suas partes, disjuntas e entre si belicosas, em profunda paz naquelas poucas alturas em que a chã hipótese de um sentido desponta. Consiste assim em diferença ess'orbe desavindo ou d'harmonia dos seus constituintes mas o que resta e que o forma é isso o que lá, inadvertidamente quero crer, pões: um sonho ou vago anelo, uma virtude sã, o que foi outrora e ilumina o porvir, a mutação tua na corrente dos dias.
E, é assim, que nunca são as partes o todo.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Declaração




Não resisto a também eu fazer esta declaração, agradecendo a um amigo que me enviou esta imagem que, para além de ter piada, é de uma tremenda acutilância. É claro que não serve para nada: tal como na Grécia, e dentro em breve noutros países, é sobre nós que recairá a factura dos erros que estes indivíduos cometem, ou das políticas a que nos submetem ao serviços dos interesses e grupos de interesse que servem. De qualquer modo, a declaraçãozinha mal não há-de fazer...


Ray, Nicholas Ray



"Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora há também o cinema. E o cinema é Nicholas Ray"

Jean-Luc Godard

Quando penso na obra de Nicholas Ray - e penso muitas vezes na obra de Nicholas Ray, não consigo dizer qual o meu filme preferido: "Johnny Guitar" ? "On Dangerous Ground" ? "Rebel Without A Cause "? "Bigger Than Life" ?. De repente, surgem-me as imagens do deserto e dos homens nele; das suas lutas; da cobardia e da coragem; do sacrifício e da renúncia. E esse filme chama-se "Bitter Victory" (Cruel Vitória). E lembro-me sempre da resposta do Capitão Leith (Richard Burton) ao Major Brand (Curd Jürgens) : "I always contradict myself". Leith (o corajoso) morre para salvar Brand (o cobarde e pusilâmine), congraçando em si, apaziguando e fazendo convergir ou tornar irrelevantes os pares de contrários que mencionei. "I always contradict myself". Eu também.

sábado, 25 de junho de 2011

SLIP SLIDING AWAY



Chorus:
Slip sliding away, slip sliding away
You know the nearer your destination, the more you slip sliding away

Whoah and I know a man, he came from my hometown
He wore his passion for his woman like a thorny crown
He said Dolores, I live in fear
My love for you's so overpowering, I'm afraid that I will disappear

Chorus

I know a woman, (who) became a wife
These are the very words she uses to describe her life
She said a good day ain't got no rain
She said a bad day is when I lie in the bed
And I think of things that might have been

Chorus

And I know a father who had a son
He longed to tell him all the reasons for the things he'd done
He came a long way just to explain
He kissed his boy as he lay sleeping
Then he turned around and he headed home again

Chorus

Whoah God only knows, God makes his plan
The information's unavailable to the mortal man
We're workin' our jobs, collect our pay
Believe we're gliding down the highway, when in fact we're slip sliding away

Paul Simon / Art Garfunkel

quinta-feira, 23 de junho de 2011

TO SERVE THEM ALL MY DAYS



TO SERVE THEM ALL MY DAYS

SÉRIE TV

INGLATERRA (BBC)

REALIZAÇÃO: Vários, 1980


Após a sua participação na I Guerra Mundial, ferido e traumatizado, o capitão David Powlett-Jones regressa a casa. Ao reconstruir a sua vida acaba por aceitar o cargo de professor num colégio interno no sudoeste de Inglaterra.
Baseado no romance de R. F. Delderfield (publicado em 1972), a adaptação de TO SERVE THEM ALL MY DAYS conta-nos o percurso de um homem num estabelecimento de ensino que, começando como professor de História acabará por se tornar reitor. Filho de um mineiro do País de Gales, David vai encontrar no choque de classes (os alunos privilegiados) um dos seus primeiros desafios. Aos poucos David vai emergindo na vida espartana e nas tradições da escola, um envolvimento que lhe permitirá a ultrapassagem das duas grandes tragédias que abalarão a sua existência: a memória da guerra e o trágico acidente de automóvel que vitimou a sua mulher e as suas duas filhas pequenas. O desenvolvimento narrativo apoia-se essencialmente na evolução dos seus elementos na medida em que acompanha as várias idades, (alunos, professor, país) ao longo de um período crucial, o do espaço entre as duas guerras mundiais. Dono de um ambiente fechado e com regras muito próprias, o colégio interno segue esse modelo de ensino britânico secular em que os jovens se vão integrando na sociedade enquanto cumprem as etapas do seu ensino secundário. Mas nenhum modelo é completamente estanque por mais conservador e mais disciplinado que se afirme. De facto, centrando-se na vida de um colégio interno, o micro ambiente analisado não consegue ficar imune ao que se passa lá fora. E se, umas vezes as posições do exterior e interior são contrastantes, noutras acabam por entrar em harmonia. E é esta intranquilidade que se vai desenvolvendo enquanto factor de crescimento dos personagens. De facto, este período que medeia entre as duas guerras em Inglaterra está repleto de acontecimentos decisivos que determinaram os anos seguintes. A agitação social personificada pelas lutas laborais dos mineiros, a incerteza do mundo industrial, a perda de influência na sociedade de uma aristocracia até então totalmente dominante, a emergência das doutrinas socialistas e do anti-semitismo na Europa, etc, são aspectos bastante bem documentados.
Em 13 episódios de cerca de 50 minutos de duração, cada um e realizado por três nomes (Ronald Wilson, Peter Jefferies e Terence Dudley), TO SERVE THEM ALL MY DAYS é mais um excelente apontamento de entretenimento e serviço público a que a BBC nos habituou. A escola de Bamfylde nunca existiu, é apenas uma referência ficcional. Os cenários utilizados foram os de Milton Abbey School em Dorset.

Artur

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Outro Fragmento para As Partes do Todo

... nem uma parte é o todo, cousa banal e evidente, nem o todo amiúde entende sua parte: como o poderia se é seu mester ser total-totalizante? não pensas em teu fígado a não ser, claro está, se ele, com seu parcelar poder, te põe amarelo como um limão...

sábado, 18 de junho de 2011

Um Fragmento para As Partes do Todo

... e, se vos disser: de um tanto tirai um todo? porque tudo é fragmento e memória - ela mesma descontínua - em um presente agostinianamente opresso; e muito há a faltar pois quanto o que é vos basta se tendes de andar e viver e de comer e respirar nem sempre o mesmo ar mas com a saudável variação que convém ao vasto orbe? ainda assim muito se diga que carecidos sempre andamos, ora no firme tempo da vida ora pelos caprichos d'ideal e sã saúde ora ainda pela perfídia das gentes... porque o que é preciso é um caminho, este ou qualquer outro...

GUARDADOR DE MEMÓRIAS


Ontem finalmente ganhei coragem e fui buscar dois sacos grandes do lixo para dar destino definitivo á antiga videoteca. Porém antes de começar, por descargo de consciência ou de simples estado de negação em ver partir uma parte substancial da minha vida, decidi fazer uma ultima experiência. Em primeiro lugar verificar se o funcionamento do vídeo antigo ainda era possível. Passada esta fase com sucesso, experimentar as cassettes VHS (K7s), na esperança de poder aproveitar alguma coisa entre manchas de humidade, camadas de pó, etc, etc. Para grande espanto meu, muito do que era para ir fora ainda se podia aproveitar. O vídeo funcionava como se sempre o tivesse feito nestes últimos 10 anos. As K7s, a grande maioria, ofereciam ainda uma imagem mais do que razoável, um som perfeitamente audível. Ao fim das primeiras dez, constato que apenas 2 estão fora de jogo. A alegria que esta situação inesperada me proporcionou foi enorme. Não era só o dinheiro investido ao longo dos anos em mais de 400 títulos que estava prestes a desaparecer. Eram pedaços da minha própria história que nunca mais se voltariam a repetir. Um filme, um documentário, tal como um livro, às vezes conta-nos muito mais do que o seu próprio conteúdo. Recorda-nos um tempo, um dia, um estado de espírito, reconcilia-nos com nossa própria memória. Passei o resto da tarde a acelerar e a rebobinar feito maluquinho, a conversar com as memórias que as K7s me iam trazendo. Um reencontro de amigos.
De alguma forma dei por mim na pele de um monge medieval a quem foi incumbida a tarefa de inventariar e preservar o espólio da biblioteca do convento enquanto lá fora a guerra destrói e aniquila tudo o que vive. Terras, animais, homens, esperanças e memórias. Indiferente a tudo isto, prossigo o inventário e a preservação do conhecimento adquirido até aí. Imagino uma arrecadação, um subterrâneo, qualquer tipo de esconderijo onde estes testemunhos mudos da espécie se possam esconder, preservar de toda uma loucura destrutiva. A quem servirá este esforço? A alguém, certamente. Um dia virá em que a loucura terá que terminar. E nesse dia haverá alguém que saia de casa e encontre um esconderijo. Um lugar adormecido que acordará outra vez. Alguém vai interessar-se por este pedaço de conhecimento, por este pedaço de memória. Porquê? Porque alguém se interessou em o proteger… Tudo o que fazemos, fazemos sempre para alguém.

Artur

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A LILI



O ultimo gato que eu tive foi a Lili. Uma fêmea atlética e enérgica, dotada de uma ternura incomparável. Pertencia àquele ramo dos felinos que fazem a maior parte da sua vida na rua, vindo a casa só para comer e dormir. Essa era a sua natureza. Como a maioria destes gatos de rua, estava sujeita a vários riscos, muito mais do que se optasse por fazer a sua vida em casa. Atraídos pela sua beleza e pela comida sempre à disposição, outros gatos foram aparecendo. Um deles, não sei nem quero saber qual, deu-lhe uma sova tal que a matou. A Lili ainda não tinha um ano. Depois daquela estúpida morte, até hoje, fiquei sem vontade de voltar a ter um bicho comigo.
Hoje, três anos depois da Lili, ao me aproximar com o carro da casa dos pais da Ana vejo dois gatos encostados à porta da entrada. Um preto e um tigrado, as mesmas pelagens dos dois amigos da Lili. Talvez descendentes deles em busca de alívio junto ao canteiro da buganvília. Fugiram à minha frente. Da Lili, que era a companhia da avó da Ana, resta uma marca no quintal junto à nespereira. A avó morreu um ano depois. Estes dois mafarricos que vi hoje não têm memória nem duma nem de outra. Se calhar descendem dos outros dois que eram amigos da Lili. Se calhar foi um deles que a matou. A vida continua e nunca pára. Este planeta é uma festa promíscua de violência e continuidade. A indiferença tudo anima e tudo esquece. Pobres de nós, criaturas finitas orientadas por memórias…


Artur

quinta-feira, 16 de junho de 2011

CANÇÃO DE EMBALAR


Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será pra ti
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme quinda à noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

José Afonso

Quando não me apetece nada a não ser voltar a vestir calções e adormecer sem me preocupar, ouço esta canção...e fico lá perto.

terça-feira, 14 de junho de 2011

ALEGRIA



Rejubilam nossos corações angustiados : os jornais de hoje anunciam que Passos e Portas já têm acordo político para a constituição do novo governo do país e que, embora não o divulguem, o elenco ministeriável está também ele definido. Segundo os jornalistas, Portas será mesmo o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros, única nuvem negra neste céu azul: uma pessoa tão preocupada com os problemas reais das pessoas, com a Lavoura e as Pescas, tão emocionado com os dramas pessoais e com a instabilidade social resultante das condições de vida com que os protugueses se defrontam deveria, no mínimo, ocupar um Ministério que se passaria a designar - seguindo a nova lógica de fusão e extinção - Ministério da Lavoura,Trabalho, Segurança Social, Pescas, Mar, Defesa, Assuntos Sociais e Nossa Senhora de Fátima. Desiludindo aqueles que se deixaram encantar com as proclamadas preocupações com a vida quotidiana dos descamisados e dos agricultores, vai Paulo Portas ocupar a difícil e negregada pasta dos Negócios Estrangeiros, fastando-se da Pátria para conviver com os grandes deste mundo e, quem sabe, partilhar com eles as suas geniais ideias sobre a salvação das gentes e dos países. Mas, dizia eu, é dia de júbilo: com estas duas luminárias e o seu acordo; Cavaco na Presidência e Deus no Céu, estamos garantidos: vamos mostrar ao Mundo (especialmente ao eixo franco-alemão, com passagem pelo FMI) que não somos a Grécia e que, se já fomos o bom aluno dos nossos mestres europeus, podemos voltar a sê-lo. Também os banqueiros e os grupos económicos podem dormir descansados: nenhum destes próceres os tirará do seu sossego e poderão continuar a fazer as suas negociatas e cambalachos na paz dos Anjos. Um amigo meu, descrente até ao âmago, comenta que desce sobre nós uma longa noite de pobreza, mental e material, uma espécie de "Noite e Nevoeiro", fria, escura e interminável. Respondo-lhe desabridamente : "Homem de pouca fé ! Não vês que, sem o ser, este é um Governo de Salvação Nacional !? Não entenderás que é na Lavoura e no Liberalismo económico que reside a nossa última oportunidade de redenção ? Louvemos o Senhor por se ter apiedado de nós, os corrécios e mal-afamados gastadores e irresponsáveis e nos ter enviado estes dois Génios que, conjuntamente, com o de Belém, nos hão-de conduzir a um novo paraíso terrestre, mas um paraíso melhorado, cheio de auto-estradas, urbanizações de luxo (sem os incómodos sobreiros) e submarinos modernaços e alemães para irmos ao fundo do fundo deste nosso Mar tão português (Oh Mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal, agora transformáveis em pepitas de ouro e depósitos bancários)". Falta conhecer o novo Ministro das Finanças, para então entoarmos novo e definitivo Te Deum. Esperemos que seja o venerável Catroga, esse génio da oratária que nos ilumina com o vernáculo das suas intervenções e a beleza iracunda do seu rechonchudo fácies avermelhado de quem não se nega a uma boa pingarola. Ao contrário do que pensa o meu descrente amigo, ainda vamos rir e cantar, ainda vamos rebentar de tanto gozo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A MANHÃ DO MUNDO


A MANHÃ DO MUNDO

Pedro Guilherme Moreira

D. Quixote, 2011

As imagens das pessoas que saltaram do World Trade Center (WTC) naquela manhã de 11 de Setembro de há dez anos, deixaram-nos profundas feridas na nossa pacata alma de observadores externos…como se fôssemos nós a saltar com eles. O pudor mediático dos meios de comunicação tentou, ao longo do tempo, arrumá-las numa prateleira mais distante da memória numa pífia tentativa de resguardar os espíritos mais sensíveis. Como se isso fosse possível perante a obscenidade universal que foi todo aquele dia televisivo. Como se a coragem de antecipar a condenação inevitável fosse algo de pouco aconselhável, de pouca dignidade.
Sendo primeiramente uma homenagem a esses “saltadores”, “A Manhã do Mundo” é em si própria uma ferida em forma de porta. Uma abertura para debater conceitos de sempre à luz da lei das possibilidades, ao abrigo da eterna questão: “E se? What if?”
Quase todas as antigas civilizações têm na sua teorização da passagem do tempo a imagem do tapete. Cada um de nós tece um fio que é a sua existência, o seu caminho neste mundo. E é o entrelaçar dos fios, ou seja, a interacção entre nós e os outros, que vai tecendo o nosso tempo, o tecido das nossas histórias, devidamente supervisionado por uma Grande Deusa Tecelã. A força desta simbologia manifesta a sua influência na elaboração da Teoria das Cordas, utilizada na imagética da fiação, descrevendo o tecido microscópico de que é feito o nosso universo multidimensional, feito a partir de cordas que, vibrando sem cessar, vão introduzindo o ritmo na vida do Cosmos. Ao deixar uma nova experiência integrar o nosso quotidiano, não receando as transformações que ela traz consigo, o nosso padrão pessoal torna-se mais complexo e enriquece o padrão colectivo. Nós tornamo-nos co-criadores da grande teia.
Se à simbologia dos tapetes juntarmos a dos espelhos, estamos totalmente emergidos na acção deste romance, onde dois e dois nunca são quatro. Cada personagem será protagonista em dois filmes diferentes, separados pela lei da possibilidade. E aqui a formalização narrativa, fruto da originalidade proposta, ganha ainda mais força. Em primeiro lugar porque o narrador se transforma em câmara de filmar, que abre e fecha o zoom sobre a acção, ora penetrando no seu íntimo ora afastando-se, para que o leitor entenda o Plano Geral. Em segundo lugar porque a realidade pode ter muitas faces, como a visita a uma casa de espelhos, sem conseguimos encontrar duas imagens iguais. Na tapeçaria de todas as possibilidades destes personagens, a morte acaba por se tornar o que menos importa. E porquê? Porque o caminho, os nós do tecido e aqueles que amam ou amaram, são tudo o que entra em campo no princípio e no fim. Como se no dia do triunfo do ódio começasse a primeira etapa do triunfo do Amor.
Ou, vendo as coisas de outra maneira, a solidão dos “saltadores” é a nossa solidão. E a sua dignidade imortal também.

Artur Carvalho

segunda-feira, 6 de junho de 2011

ENTRE CÃO E AVE




Já olhei para este quadro de Paula Rego centenas de vezes, sempre com um misto de angústia e inquietude, incapaz de o decifrar, ou temendo interpretá-lo como ele aparece na sua terrível fulguração. É uma figura humana (uma mulher ? uma rapariga ?) cujo esgar lembra inequivocamente o de um cão que arreganha ameaçadoramente a dentadura, garras fixas no solo como se estivesse a ponto de dar um salto e abocanhar uma presa ou um pedaço de comida. As pernas/patas de trás retesam-se para esse impulso ameaçador e agressivo. E, de repente, não; o cão quer voar, ser uma ave, talvez uma ave de rapina, uma majestosa águia, um mortífero e veloz falcão, e não consegue descolar do solo. Se alguma vez o conseguisse, não passaria de uma ridícula galinha ou uma desastrada avestruz (sendo que a patada da avestruz em desespero pode matar um leão). Isto, esta coisa, este ente, esta figura de cão que quer voar e não pode, somos nós, os portugueses, amarrados a um destino que não escolhemos, vítimas dos crimes,da ganância e da negligência dos vultos sombrios que nos governaram e doutros, daqueles que se preparam para nos governar. Esta triste figura do cão agachado nas suas quatro patas, castigado pela sua condição, humilhado pela sua impotência, desesperado e incapaz de se ver ao espelho somos nós, os portugueses.