sábado, 18 de junho de 2011

GUARDADOR DE MEMÓRIAS


Ontem finalmente ganhei coragem e fui buscar dois sacos grandes do lixo para dar destino definitivo á antiga videoteca. Porém antes de começar, por descargo de consciência ou de simples estado de negação em ver partir uma parte substancial da minha vida, decidi fazer uma ultima experiência. Em primeiro lugar verificar se o funcionamento do vídeo antigo ainda era possível. Passada esta fase com sucesso, experimentar as cassettes VHS (K7s), na esperança de poder aproveitar alguma coisa entre manchas de humidade, camadas de pó, etc, etc. Para grande espanto meu, muito do que era para ir fora ainda se podia aproveitar. O vídeo funcionava como se sempre o tivesse feito nestes últimos 10 anos. As K7s, a grande maioria, ofereciam ainda uma imagem mais do que razoável, um som perfeitamente audível. Ao fim das primeiras dez, constato que apenas 2 estão fora de jogo. A alegria que esta situação inesperada me proporcionou foi enorme. Não era só o dinheiro investido ao longo dos anos em mais de 400 títulos que estava prestes a desaparecer. Eram pedaços da minha própria história que nunca mais se voltariam a repetir. Um filme, um documentário, tal como um livro, às vezes conta-nos muito mais do que o seu próprio conteúdo. Recorda-nos um tempo, um dia, um estado de espírito, reconcilia-nos com nossa própria memória. Passei o resto da tarde a acelerar e a rebobinar feito maluquinho, a conversar com as memórias que as K7s me iam trazendo. Um reencontro de amigos.
De alguma forma dei por mim na pele de um monge medieval a quem foi incumbida a tarefa de inventariar e preservar o espólio da biblioteca do convento enquanto lá fora a guerra destrói e aniquila tudo o que vive. Terras, animais, homens, esperanças e memórias. Indiferente a tudo isto, prossigo o inventário e a preservação do conhecimento adquirido até aí. Imagino uma arrecadação, um subterrâneo, qualquer tipo de esconderijo onde estes testemunhos mudos da espécie se possam esconder, preservar de toda uma loucura destrutiva. A quem servirá este esforço? A alguém, certamente. Um dia virá em que a loucura terá que terminar. E nesse dia haverá alguém que saia de casa e encontre um esconderijo. Um lugar adormecido que acordará outra vez. Alguém vai interessar-se por este pedaço de conhecimento, por este pedaço de memória. Porquê? Porque alguém se interessou em o proteger… Tudo o que fazemos, fazemos sempre para alguém.

Artur

2 comentários:

A.Teixeira disse...

Por décadas a fio as memórias dos nossos antepassados tiveram suportes constantes: livros, fotografias e discos, a novidade da geração que precedeu a nossa.

Depois, entrámos neste corropio tecnológico de que hoje descreves uma das facetas, que há outras: que fizeste à tua colecção de discos de vinil?

Mas estou contigo no lamento que nesta adaptação quase obrigatória à última evolução tecnológica há sempre algo que se perde, que o DVD de "O Caçador", comprado na FNAC, não se assemelha à cassete gravada cuidadosamente (sem intervalos!) no dia em que a RTP transmitiu o filme...

Perco-me a responder se o importante serão as nossas Memórias ou se será aquilo em que elas estão suportadas...

Artur Guilherme Carvalho disse...

É uma questão interessante. O que é que é mais importante? A memória ou o suporte que a torna possível. Só por si isto dava um post inteiro. De vinil já não tenho nem um disco para amostra. Resta-me a videoteca enquanto o video funcionar. Mas perde-se muito quando mudamos de suporte. Uma forma de enfraquecer a falsa ideia de eternidade, talvez...