quarta-feira, 27 de maio de 2020

UMA MEMÓRIA


Quase todos os dias há esta memória que me visita, umas vezes à hora do lanche outras vezes já tarde durante a noite enquanto durmo. Não sei de onde nem quando, não é um fantasma porque está bem vivo à minha frente e tem um excelente sentido de humor, coisa que, todos sabemos, os fantasmas não têm. Não é uma sombra nem a minha imagem no espelho nem nenhuma criatura enviada pela ceifeira para me levar. Conheço-a perfeitamente, sei muito bem quem é, só não me vem o nome. Por isso lhe chamo memória. Com tanto tempo já decorrido, tanta história e tanta gente é natural que não me lembre do nome. A fúria, a raiva, o amor, o ódio e a tristeza, tudo desacelera para uma velocidade de cruzeiro ou ainda mais lenta que isso. Vamos aos poucos entrando no ritmo do universo que como todos sabemos, não tem pressa nem se deixa deslumbrar com facilidade. As conversas são descontraídas, os temas familiares as curiosidades repartidas. Falamos disto e daquilo como dois bons amigos de um tempo longínquo, amantes esporádicos em tempos mais carregados de cólera, parceiros de uma equipa que sempre funcionou bem e multiplica a sua energia com a junção de todos. Preparamos o trabalho de nos distraír que é também uma forma superior de nos libertarmos. De voltar a ganhar espaço e correr na praia sobre a areia molhada, voar despreocupados sobre montes e vales, serpentear as rochas de um riacho com desenvoltura e graciosidade. Sim, é disso tudo que falamos. De nós e dos nossos caminhos, das encruzilhadas do tempo, enquanto saboreamos um chá quente de ervas especiais. Não lhe consigo encontrar um nome mas consigo encontrar-me nas suas palavras de cada vez que fala. Sei muito bem quem é, só não me vem o nome. Por isso lhe chamo memória, porque me lembro perfeitamente dela.
O Tempo escreve-se assim, de memórias e sentidos, de sabores e prazeres, de raivas e de amores. E todos acabam por deixar o seu bocado que nos ensina alguma coisa, todos fazem a sua marca no caminho embora no fim de tudo,  todos sejam a mesma coisa…memórias. É mais importante o que nos permitiram perceber do que o nome que tiveram. Têm ou tiveram uma importância de utilidade muito maior do que de identidade. E este é o paradigma do crescimento.
Não é importante o nome da memória mas é decisiva a importância que ela traz e que me restaura quem sou, um percurso feito de lembranças e ensinamentos. Quando a memória desaparece nós desaparecemos com ela, deixamos de ser. Nessa altura ocuparemos o Nada de regresso ao lugar de onde viémos e só então conseguiremos saber uma quantidade de coisas que desesperadamente procurámos enquanto éramos conscientes. Todas as tardes pela hora do lanche ou à noite durante os sonhos, esta Memória ajuda-me a recuperar o passado, devolve-me o absoluto do Ser e deixa-me ficar muito mais tranquilo em relação ao que há-de vir. Terminamos um quadro, recuperamos peças esquecidas do puzzle, escrevemos as últimas frases no livro da Vida. Sem a sua ajuda nunca conseguiria arrumar a casa de forma absoluta, deixar a maior parte das coisas no seu lugar, fechar a porta tranquilo. Por isso lhe agradeço cada vez que nos encontramos. Não sei dizer o seu nome, não sei dizer onde nem quando. Por isso lhe chamo Memória à falta de um termo melhor que a possa descrever.

Artur

terça-feira, 5 de maio de 2020

SOMBRAS DE PESSOA


                                                   Fotografia da autoria de Luis Pereira.