Quase todos os dias há esta
memória que me visita, umas vezes à hora do lanche outras vezes já tarde
durante a noite enquanto durmo. Não sei de onde nem quando, não é um fantasma
porque está bem vivo à minha frente e tem um excelente sentido de humor, coisa
que, todos sabemos, os fantasmas não têm. Não é uma sombra nem a minha imagem
no espelho nem nenhuma criatura enviada pela ceifeira para me levar. Conheço-a
perfeitamente, sei muito bem quem é, só não me vem o nome. Por isso lhe chamo
memória. Com tanto tempo já decorrido, tanta história e tanta gente é natural
que não me lembre do nome. A fúria, a raiva, o amor, o ódio e a tristeza, tudo
desacelera para uma velocidade de cruzeiro ou ainda mais lenta que isso. Vamos
aos poucos entrando no ritmo do universo que como todos sabemos, não tem pressa
nem se deixa deslumbrar com facilidade. As conversas são descontraídas, os
temas familiares as curiosidades repartidas. Falamos disto e daquilo como dois
bons amigos de um tempo longínquo, amantes esporádicos em tempos mais
carregados de cólera, parceiros de uma equipa que sempre funcionou bem e
multiplica a sua energia com a junção de todos. Preparamos o trabalho de nos
distraír que é também uma forma superior de nos libertarmos. De voltar a ganhar
espaço e correr na praia sobre a areia molhada, voar despreocupados sobre
montes e vales, serpentear as rochas de um riacho com desenvoltura e
graciosidade. Sim, é disso tudo que falamos. De nós e dos nossos caminhos, das
encruzilhadas do tempo, enquanto saboreamos um chá quente de ervas especiais.
Não lhe consigo encontrar um nome mas consigo encontrar-me nas suas palavras de
cada vez que fala. Sei muito bem quem é, só não me vem o nome. Por isso lhe
chamo memória, porque me lembro perfeitamente dela.
O Tempo escreve-se assim, de
memórias e sentidos, de sabores e prazeres, de raivas e de amores. E todos
acabam por deixar o seu bocado que nos ensina alguma coisa, todos fazem a sua
marca no caminho embora no fim de tudo, todos sejam a mesma coisa…memórias. É mais
importante o que nos permitiram perceber do que o nome que tiveram. Têm ou
tiveram uma importância de utilidade muito maior do que de identidade. E este é
o paradigma do crescimento.
Não é importante o nome da
memória mas é decisiva a importância que ela traz e que me restaura quem sou,
um percurso feito de lembranças e ensinamentos. Quando a memória desaparece nós
desaparecemos com ela, deixamos de ser. Nessa altura ocuparemos o Nada de
regresso ao lugar de onde viémos e só então conseguiremos saber uma quantidade
de coisas que desesperadamente procurámos enquanto éramos conscientes. Todas as
tardes pela hora do lanche ou à noite durante os sonhos, esta Memória ajuda-me
a recuperar o passado, devolve-me o absoluto do Ser e deixa-me ficar muito mais
tranquilo em relação ao que há-de vir. Terminamos um quadro, recuperamos peças
esquecidas do puzzle, escrevemos as últimas frases no livro da Vida. Sem a sua
ajuda nunca conseguiria arrumar a casa de forma absoluta, deixar a maior parte
das coisas no seu lugar, fechar a porta tranquilo. Por isso lhe agradeço cada
vez que nos encontramos. Não sei dizer o seu nome, não sei dizer onde nem
quando. Por isso lhe chamo Memória à falta de um termo melhor que a possa
descrever.
Artur
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