quarta-feira, 30 de abril de 2014

UMA PAUSA EM MARRAQUEXE








                                                               Por Sofia Vaz Pinto


domingo, 27 de abril de 2014

NAS ASAS DE UM MELRO CURTIDO



O homem acordou naquele dia sentindo-se neutro de estado de espírito. Segurando a sua eterna caneca de café distraiu-se a olhar pela janela a rua tranquila de um Domingo de manhã. Passava mais um ano desde que tinha chegado a este planeta pela primeira vez. Podiam passar cem anos que algumas coisas nunca mudariam como, por exemplo, o seu espanto pela irracionalidade suscitada perante este ou aquele aspecto da vida humana. Sempre se sentiu como uma espécie de estagiário desajeitado e voluntarioso que tentava em vão aplicar conceitos tão óbvios quanto impossíveis, desmontados pelas razões mais absurdas que poderiam haver. Era um perfeito incompetente a lidar com o Presente, demasiado agarrado, demasiado dependente do Passado. Talvez porque se no primeiro tudo podia acontecer, no segundo todo o processo estava concluído, arrumado e ordenado por ordem de relevância. No seu caminho até ao dia de hoje oscilava entre o guerreiro intrépido e voluntarioso e o deprimido desesperado e triste. Graças à terapia tinha aprendido a navegar o seu barco emocional nas águas que separam esses dois estados extremos, a sinalizar e a conviver com os seus fantasmas para melhor poder equilibrar-se. Uma tarefa nunca acabada a exigir concentração e lucidez em estado permanente. Questões de solidão, questões de medo, questões de altos e baixos, tempestades e águas calmas, obrigação de percorrer esse caminho, atravessar esse vale a que chamam existência, vida.
De qualquer maneira, começava a ficar cansado de tanto racionalizar, de tanto tentar compreender, de tanto falhar. Estava cada vez mais perto daquela caneca matinal de café ou do fumo do cigarro que bailava ao sabor do vento. Porque existiam apenas, sem se ralarem com coisa nenhuma. Do outro lado da rua um melro habitual pousava nos ramos da árvore. Comunicava com ele saudando-o com os bons dias sem articular uma palavra e tinha quase a certeza de que o melro respondia. Olhando-se em paz, sentindo-se próximos. Tinha também a certeza de que se lhe tentasse perguntar o significado da existência ele responderia com um salto de um ramo para o outro ou com uma cagadela para cima de um carro estacionado. As suas asas negras e o seu bico amarelo resplandeceriam ao Sol como faziam todas as manhãs sem se importar com mais nada. Ele ensinava que isto aqui não é para perceber mas para sentir, como um beijo ou uma estalada na cara. As emoções são a nossa maior e única lição que temos para aprender. Com elas acende-se a central de informação mais importante do nosso Ser, acendem-se os estados de espírito depois dos quais avançamos para qualquer coisa diferente. Era o que fazia há muitos anos sem se dar conta, ao escrever os seus livros. Um artífice de emoções especializado em as traduzir para palavras. De tudo o que havia para recordar ficavam a família, os amigos, os melhores e os piores momentos da sua existência. Porque foi aí que percebeu que já não era o mesmo que tinha sido, que se transformava noutro mais completo.
E com toda esta aprendizagem tudo era muito mais relativizado, tudo era passível de vir parar àquelas águas que separam a euforia da depressão. Tudo era aceite e encaixado de uma forma mais harmoniosa…até a morte. Não conseguia compreender a morte, ficando várias vezes deprimido com essa incompreensão. Por mais que lesse, por mais que ouvisse, por mais que sentisse, nunca conseguiu encontrar nela uma razão forte, uma explicação plausível, uma tranquilidade lógica. Até ao dia em que um dos seus mestres lhe explicou que ninguém a compreendia. Mas isso não era importante na medida em que também ninguém conseguia compreender a vida. Talvez aquele melro matinal soubesse alguma coisa, talvez nas suas asas tivesse escondido o segredo por desvendar. Mas não o podia revelar a não ser saltitando de um ramo para o outro, cagando de alto sobre um carro estacionado. Talvez, se o melro conseguisse falar, me dissesse depois qualquer coisa parecida com: “Ainda não percebeste? Queres que te faça um desenho?”

Artur


sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 DE ABRIL - QUARENTA ANOS DEPOIS

Hoje, 25 de Abril, devia ser um dia especial.
Hoje deveria ser o dia de celebração da vitória de um Povo que se libertou de um período de trevas, onde só quem fazia parte de uma determinada linha de pensamento vingava, independentemente das suas capacidades. Os medíocres enchiam o peito com a cobertura e protecção de um estado apodrecido.
Ponho-me a pensar nas versões das 'conquistas de Abril' pela boca de quem faz parte do arco do poder e enojo-me com a hipocrisia generalizada.
Porque se a 25 de Abril de 1974 todo um povo inspirou avidamente o ar renovado de uma janela de Esperança que se abriu, quarenta anos depois o bafio insiste em reinstalar-se. E a asfixia sente-se.

Para mim a Liberdade resulta intrinsecamente da forma como uma sociedade assume a Responsabilidade tanto individual, como colectiva.
Quanto mais cada um respeitar o outro e também se der igualmente ao respeito, maior será a harmonia social e indubitavelmente a Liberdade.
Uma sociedade verdadeiramente democrática não necessita do chorrilho diário de leis regurgitada por uma AR que não representa o Povo e não defende os seus direitos e necessidades. As leis emanadas servem quase exclusivamente para cercear as garantias dos ofendidos e defender a mediocridade. Uma mediocridade que se perpetua e se torna a regra dominante porque protegendo-se mutuamente, soube compreender os mecanismos da Democracia e entendendo-os, imiscuiu-se nos pontos primordiais que lhe permitiriam perpetuar-se, servindo ao mesmo tempo os interesses que prosperando através da sua actuação, a mantém nos lugares governativos e decisórios.
Todos os dias saem leis que a protegem. Todos os dias! Pela surra.
Uma justiça forte com os fracos e inócua com os fortes, políticas de saúde e educação deterioradas e órgãos de comunicação social, vergados ao poder dos grupos económicos que os detém, debitando a opinião diária dos medíocres de serviço que trouxeram este nosso Estado ao estado de coisas em que se encontra, prioridades culturais aberrantes, não são indicadores de um futuro promissor.
A AR, por definição a casa da Democracia, foi sendo ao longo dos anos tomada de assalto por gente invertebrada que faz uns jeitos a quem nunca deixou de controlar verdadeiramente o poder. Bem diziam os estivadores quando numa manifestação, ao passar defronte, gritavam aos polícias que lhe garantiam o perímetro de segurança "Os ladrões estão lá dentro! A polícia está cá fora!".
Uma sociedade evoluída não precisa de leis porque todos sabem o ponto onde a sua Liberdade vai colidir com os direitos dos outros.
Antes de Abril de 1974, mentia-se e manipulava-se o povo veladamente. Passados quarenta anos mente-se e manipula-se o povo descaradamente porque os medíocres conseguiram adaptar a realidade que os eleva a um patamar de inimputabilidade. E quanto mais importante for o cargo público, maior é o grau de desresponsabilização. A pouca vergonha impera. Antes era a mentira, agora é a mentira desavergonhadamente descarada.
Em Portugal temos leis a mais e responsabilidade a menos.
Em Portugal não se cultiva a qualidade porque a mediocridade impera e abafa.
Em Portugal passados quarenta anos, quem se atreve a pensar pela própria cabeça é ostracizado ou pelo menos, estranhado. A desformatação mental e ideológica é uma barreira quase intransponível.
Em Portugal falta cumprir os sonhos de Abril e fazer jus à infinita coragem e generosidade de quem abriu a janela da Esperança.
Em Portugal falta cumprir a Igualdade, Democracia e Liberdade.

E isso é da Responsabilidade individual.

Para já, Portugal não passa de um inconseguimento.

Hélder

quinta-feira, 17 de abril de 2014

GABRIEL GARCIA MARQUEZ

                                                                         1927 - 2014


                              A este Grande Mestre da Literatura Universal, a homenagem deste blog.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

PRIMAVERA

Seja de esperança, seja sombria, seja até a última da existência de muitas vidas, a Primavera apresenta-se sempre com o seu vestido fresco e luminoso decorado de flores e luz, espaço aberto para respirar fundo e continuar adiante. Ora com todos os holofotes acesos e todos os sonhos a rebentar de possibilidades infinitas, ora escondida num tímido risco em fundo escuro, misturada com vários outros riscos, quase sem se dar por ela. Ela está lá a dizer “Olá” enquanto a praia chama e o Sol aquece só mais um bocadinho. Será sempre tempo de Primavera no tempo em que é suposto haver Primavera. Artur

quinta-feira, 10 de abril de 2014

1914



No dia 9 de Abril de 1918 o Corpo Expedicionário Português foi completamente destroçado pela esmagadora superioridade numérica, tecnológica e de preparação das forças alemãs com que se defrontou. Estima-se em 7500 o número de mortos, feridos e desaparecidos portugueses. Para a História ficou a lembrança da bravura, da coragem e da honra com que esses homens se bateram, para além de toda a esperança e razoabilidade. Os seus feitos foram reconhecidos e louvados pelo inimigo. Aconteceu num tempo em que essas coisas ainda podiam acontecer e em que reconhecer o valor moral, a integridade e a coragem do inimigo era uma forma de o engrandecer, engrandecendo-se.


"O deflagar da guerra mudou o mundo, o que existia antes de 1914 e o que se seguiu não se assemelhavam em absoluto, os factos desenrolaram-se apenas nominalmente na mesma superfície da Terra". Quem o diz é Max Brod, uma personalidade a que infelizmente não é dado o devido relevo; é sempre lembrado como o fiel amigo de Kafka e seu testamentário desobediente. É pena: Max Brod merece ser evocado como uma das vozes mais lúcidas e coerentes da cultura europeia, exibindo uma impressionante capacidade de perceber o espírito do tempo, ou o "zeitgeist" como dizem os pensadores alemães.
Brod encarna maximamente o papel do escritor encerrado na tripla armadilha de Praga, um universo que, como refere Claudio Magris "Era um gueto religioso sem Deus, um gueto nacional de escritores alemães isolados do germanismo,um gueto social de burgueses não aburguesados, uma vida de artistas cuja verdadeira fé na arte era pelo menos posta em dúvida".
A frase de Brod que cito no início é uma constatação cujo tom só em parte revela uma intensa nostalgia, comum a toda uma geração de escritores que, tendo vivido no furioso clima cultural e artístico da Europa Central no período histórico a que a irrupção da I Guerra Mundial põe um fim brutal, reflectem nos seus escritos o sentimento de uma perda irreparável, que nenhuma promessa de futuro pode compensar. Aliás, que amanhãs cantantes podem surgir do desmoronar de um mundo que parecia seguro, medianamente livre, orgulhoso das suas conquistas civilizacionais, parecem pensar essas testemunhas privilegiadas de um tempo que desaparece e de um novo que nasce, seguramente mais incerto que o precedente ?
Ernst Jünger, por sua vez, embora se compraza nesse interminável Verão que procede o desencadear das tempestades de aço, percebe que esse tempo contém já em si os germes da destruição e da decadência. Ouçamos o que diz em "A Guerra Como Experiência Interior":

"No casulo bem fechado de uma mesma cultura, vivíamos todos juntos, mais próximos do que homens alguma vez o foram, dispersos pelos nossos trabalhos e prazeres, circulando por praças banhadas de claridade e por poços subterrâneos, nos cafés onde nos rodeavam espelhos resplandecentes, as ruas, grinaldas carregadas de luz, os bares cheios de licores de colorido variável, as mesas de conferência e o último grito, a cada hora sua novidade, a cada dia seu problema resolvido, a cada semana sua sensação, no fundo uma enorme e irresistível insatisfação."

O que Jünger antevê é o culminar dessa "insatisfação" numa tremenda explosão homicida, em que os instintos primitivos, animais, voltam ao de cima. A vontade de os povos se baterem e massacrarem mutuamente está já a germinar e, no dia em que a faísca acender o rastilho, o ultra-civilizado homem dos cafés e das conferências literárias vienenses voltará a ser o homem  coberto de peles que vem das estepes e das florestas, pronto para matar e ser morto numa orgia de sangue que definitivamente o satisfaça. O que Jünger não consegue prever é aquilo que depois descreve em páginas sobre páginas de um realismo alucinado:

"Noite após noite negras colunas serpenteavam em direcção às trincheiras, arrastando um enxame de obsessões que volteavam em bandos vorazes. Às vezes engolfavam-se nas aldeias, chagas negras e escnacaradas em que os pós dos soldados da frente abriram, nas ruínas, estreitas veredas de pilhagem (...) A putrefação. Alguns desfaziam-se, sem cruz nem campa, à chuva, ao sol e ao vento. As moscas zumbiam em nuvem cerrada à volta da sua solidão, cercava-o uma auréola de densa exalação. É inconfundível o cheiro do homem em putrefacção, pesado, adocicado, ignobilmente tenaz como uma papa que se agarra. Depois das grandes batalhas, pesava sobre a terra como uma capa de chumbo, a tal ponto que os mais esfomeados perdiam o apetite (...) Os cabelos caíam dos crânios aos molhos, como no Outono a folhagem amarelecida das árvores. Alguns desfaziam-se em geleia de peixe esverdeada que luzia na noite, por baixo dos uniformes esfarrapados . Quando se andava em cima deles o pé deixava pegadas fosforecentes. Outros secavam tornando-se múmias calcificadas que se descamavam pedaco a pedaço (...)"

Ao contrário dos seus ilustres colegas checos, austríacos e alemães, Charles Péguy, um dos maiores escritores europeus do século XX, não teria lamentado o desaparecimento de uma ordem das coisas que nunca viu como idílica e que sempre execrou. Rezam as crónicas que foi abatido no dia 5 de Setembro de 1914, não muito longe de Villeroy. O tenente Péguy tinha-se despedido uns dias antes dos poucos amigos que lhe restavam, entre os quais Léon Blum com quem mantinha querelas que duravam há anos. Encaminhou-se para o campo de batalha sem ilusões, em paz com a sua consciência, na qual se travava há décadas uma guerra sem fim contra o desespero. A revista berlinense "Die Aktion" dedicou, seis semanas mais tarde, uma homenagem ao grande escritor desaparecido em combate, com um retrato assinado por Egon Schiele. Nesses tempos longínquos essas coisas ainda eram possíveis. A bala alemã não matou nos alemães aquilo que em Péguy transcendia as fronteiras da nacionalidade e apelava a todas as consciências europeias : a integridade do pensamento e do comportamento, a repugnância em relação aos compromissos, ao discurso político oleoso, à manipulação dos financeiros e grupos económicos, a facilidade das relações públicas e privadas, em relação, enfim, ao Mundo. As ressonâncias de 1914 e 2014 são assustadoras: a cólera do escritor, martelando com ambos os punhos o "estado a que aquilo tinha chegado" poderia ser a nossa cólera hoje, se tivéssemos a coragem de ser coléricos, se não fosse tão branda a nossa indignação quotidiana em relação à fraude, à mentira, à encenação e à traição moral.

Relembremos a tese de Walter Benjamin, mais actual do que nunca: o percurso da História é uma corrida em direção ao futuro, que deixa atrás de si amontoados de ruínas e vai enterrando as vítimas caídas, durante o avanço do "progresso". O selvagem anarco-capitalismo contemporâneo, que os nossos governantes e os seus corifeus proclamam ser a via da nossa salvação, é um escarro na face de Deus: convencidos que a História acabou, e que são eles que lhe põem fim, mercê da gigantesca inteligência com que foram dotados, nega qualquer futuro e qualquer possibilidade de mudança substancial ; instaura um repugnante império do Mal, num horizonte de presente imediato, indefinidamente prolongado e "irrevogável", repetível ad nauseam, tal como as encenações mediáticas das quais não se distingue. Nós, os outros, embora sejamos aqui e ali dominados pela melancolia, continuamos à espera do Messias e teimosamente insistimos em ler nas coisas aquilo que virá. Os desmentidos quotidianos não apagam a crença. Como dizem as Escrituras, aquilo que tarda, virá.