domingo, 30 de julho de 2023

PELA ÁGUA - APOCALYPSE NOW

 


O poeta faz-se vidente com uma prolongada, imensa e meditada desregra de todos os sentidos. Tortura inefável onde ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde se faz, entre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito e o Supremo Sábio.

Arthur Rimbaud "Carta Ao Vidente"


Existe luz bastante para iluminar os eleitos e obscuridade bastante para os humilhar. Existe obscuridade bastante para ofuscar os réprobos e luz bastante para os tornar indesculpáveis.

Blaise Pascal "Pensées".



Nota prévia: Não pretendo analisar "Stalker", um objecto artístico que não é analisável, já que está para além das categorias analíticas comuns. Como, de resto, todos os restantes filmes de Andrei Tarkovski. O que aqui fica, se ficar, são apenas algumas intuições recorrentes de cada vez que o revejo, e reveste-se este texto necessariamente de um carácter impressionista ou expressionista. À escolha.


K. J. lembra-se de uma história murmurada numa noite de Verão por uma voz que diz:

Comi carne humana. Os cadáveres dos meus camaradas de campo. De doentes, de fracos que não aguentaram o golpe...

    A voz que falava nas trevas pertencia ao monitor de um campo de férias que K.J. frequentava em 1957, um antigo resistente, regressado do Gulag siberiano, capturado pelo Exército Vermelho, como tantos outros, ironicamente acusado de colaboração com o inimigo. Tinha regressado de onde nunca se regressa, mesmo quando se regressa. A sua, digamos assim, "confissão", porque murmurada e não gritada, porque feita na obscuridade e não em plena luz do dia, não corresponde a nenhuma necessidade de catarse colectiva, mas antes a um diálogo consigo mesmo que, só por acidente, se tornou público. 

    Tarkovski, adolescente e jovem adulto, também viveu o apocalipse da guerra e logo a seguir os das purgas, dos campos, e foi testemunha de uma esquizofrenia colectiva inscrita num sistema político baseado na mentira e no terror. A mesma mentira e o mesmo terror que, anos mais tarde, trucidariam o cineasta e mutilariam sem remédio a sua obra. "Eu, estou em todo o lado na prisão", diz o Stalker à sua mulher no início do filme.

A Tarkovski aplica-se na perfeição algo que Jean Renoir afirmou: "Um realizador faz um único filme em toda a sua vida. Depois, quebra-o em pedaços e fá-lo de novo". Ou aquilo que Raymond Bellour afirma no ensaio "Ciné-Répetitions" quando considera formas internas e externas de repetição no cinema, desde as formas de interacção dos ensaios à capacidade de o cinema re-inscrever os sonhos e desejos dos espectadores, preenchendo assim o seu desejo como repetição, o desejo como repetição. No caso de Tarkovski, tal expressa a profunda auto-consciência do seu desejo e da sua angústia.

"Stalker" foi realizado por Andrei Tarkovski em 1979 e é o mais devastado e devastador de todos os filmes. Nem o cinema americano, com toda a panóplia de efeitos especiais e artifícios técnicos disponíveis, nas inúmeras vezes que procurou representar o Armagedão, conseguiu atingir um tal grau de desolação, sentido de perda e percepção da catástrofe que as imagens puras e poéticas deste filme nos dão a ver (e ouvir). Para mais, com um tal desprezo não dissimulado pelo militantismo na arte, virando as costas a um discurso politizante e dirigindo-se a uma outra fonte e que é constituído pela sede de espiritualidade inerente a todos e cada um dos homens, e a que George Steiner chamou "a nostalgia do Absoluto". Depois do fim das grandes narrativas (hegelianismo, marxismo, positivismo) e da consequente perda de influência dos sistemas simbólicos - política, religião, filosofia, etc.) só a grande arte se acha capaz de dar ainda uma resposta a esse anseio. No cinema, Tarkovski foi o máximo cultor dessa tendência de substituição numa modernidade inacabada e aos soluços. Neste filme, fá-lo através de uma narrativa que acompanha a demanda de três homens após o fim da história da humanidade, numa temporalidade abolida, em ruptura definitiva e irredimível entre Natureza e História. Ninguém parece dar-se conta que o Apocalipse já ocorreu, ou seja, de que já ocorreu aquilo que estava anunciado há quase dois milénios, que o Sétimo Selo já foi rompido e a que a cólera do Cordeiro se derramou sobre o mundo.

 A ZONA




Aberta a todas as interpretações, e todas as interpretações são válidas, o que é a Zona exactamente ? Em primeiro lugar é o paradigma, ou o arquétipo de todas as zonas modernas (irresistível e tangencialmente somos levados a estabelecer uma estranha relação com as paisagens de "Deserto Vermelho" de Michelangelo Antonioni), desprovida de qualquer tipo de emoções, a não ser as que têm origem num profundo sentido de inquietação e desestabilização. E não poderia ser de outro modo: esta é a paisagem da mais absoluta ruína, composta por destroços, terrenos vazios, vias de caminho de ferro que não conduzem a nenhum lado, água por todo o lado. Já vimos antes esta paisagem: nos documentários sobre as cidades devastadas durante a II Guerra Mundial, em "Germania Anno Zero" de Roberto Rossellini, em "Nuit et Brouillard" de Alain Resnais, nas fotografias das cidades sírias bombardeadas até ao chão, em Mariupol arrasada pela artilharia russa e em todos os locais e em todos os locais que se tornaram não-locais. Temos olhos para ver e vemos. Mais ainda: a Zona está delimitada e guardada por militares: o direito encerra e guarda este sítio de não-direito. Delimitada por barreiras de arame farpado e por obstáculos metálicos, desorganizada, radicalmente desestruturada. Um espírito mais ou menos ordenado, que tentasse descortinar o seu plano, extensão, partes, orientação, sairia frustrado, tal a dimensão do caos que se apresenta, juncada de destroços humanos e materiais. Muito menos conseguiria descobrir a sua origem (o que é, de onde vem ?). Uma única certeza: apareceu assim, com esta natureza, depois da catástrofe, mas uma catástrofe imensa, sem retorno e sem remissão. Teve ou não lugar o desastre nuclear ? Dado o comportamento bizarro do tempo na Zona, pode ter ocorrido, pode vir a ocorrer; a estrutura da temporalidade é completamente subvertida e deixou de ser linear. 

OS HOMENS




Neste filme assombroso e assombrado, o stalker é o guia, aquele que conduz os outros no interior da Zona; um Professor e um Escritor. Nunca saberemos os seus nomes, nem isso importa. São personagens arquetípicas, cuja função simbólica vamos pouco a pouco construindo, a partir das suas acções. Não são sequer muito importantes na diegese; são um pretexto para o caminho espiritual do stalker no interior da Zona. Esse é o personagem principal, digamos, o ponto focal de todo o filme, à medida que a sua função intermedial se vai apagando, dando lugar à proeminência da sua verdadeira estatura: só ele encontra nas ruínas da Zona a melancolia e a nostalgia, a imensa tristeza que lhe confere um sentido. Só ele é capaz de compreender o sentido da expressão latina lacrimae rerum. E quem é esse que tudo compreende, mesmo aquilo que está para além da possibilidade de compreensão, para além ainda os juízos lógicos, de toda a racionalidade ? Um louco, um simples de espírito, um iluminado, um sacerdote, um guia, aquele que avança furtivamente. E compreende assim porque vive no interior da natureza simbólica das coisas, uma simbólica complexa e viva, que escapa às predicações, e porque existe no interstício entre dois mundos que nunca se encontram e que, sobretudo, nunca se reconciliam. Não existe mensagem nenhuma no filme; tentar encontrar a mensagem equivale a desapossar os símbolos da sua essência. No entanto, é inevitável que a nossa intuição nos indique que, para além de toda a vontade de verdade, para além de todo o desejo de saber, se insinue a convicção de que, no fim, é o mundo natural que prevalece, que vence o combate e que, sobre as ruínas de uma civilização devastada e perdida, os elementos naturais readquirem os seus direitos, tudo invadindo, e que os elementos dessa civilização - que aqui são representados pelos carros de combate destruídos, pelas armas espalhadas por todo o lado, pelos corpos calcinados daqueles que pereceram na catástrofe - são sobrepujados pelas plantas que os cobrem; o mundo torna-se liquído, o elemento omnipresente, fazendo lembrar a dominância desse elemento em "O Espelho" e, sobretudo, em "Nostalgia".

Se o poeta de "Nostalgia" parecia caminhar sobre as águas:



O stalker, por sua vezdeixa que a chuva os encharque, essas chuvas intensas (apocalípticas) que apaziguam todas as paixões e permitem reencontrar a esperança possível. Mas a água é também dotada de uma imensa carga emocional, comum aos dois filmes (três, se lhes juntarmos "O Espelho"). Numa das sequências mais extraordinárias do filme, os três homens param a sua deambulação pela Zona e, deitados numa posição quase fetal na superfície das águas, meditam. É um momento em que a acção - se de acção, no sentido clássico, se pode falar - pára, o tempo desacelera; a carga emotiva exerce sobre o plano uma tensão que Tarkovski tinha eliminado de quase todo o filme. Quase, porque, parecendo que a todo o momento escapa ao controlo do cineasta esses momentos de tensão existem e são quase insuportáveis de tão belos e emocionantes. Deixemos apenas um exemplo:
No início do filme, quando o stalker desperta do sono, vemos um copo que, por acção da vibração de um comboio que passa, se desloca sobre a mesa. Vê-lo-emos de novo, no fim, quando a filha muda do stalker, uma mutante sem pernas, o faz deslocar com a simples força do olhar; o círculo fechou-se. Mas aquilo que acontecia por força das leis da física, acontece agora pela simples força de vontade dessa rapariga estranha, dotada - suspeitamos - de uma fé inabalável: a força centrífuga passa a força centrípeta. Quem poderá salvar-nos ? O stalker, essa espécie de Cristo andrajoso, que tropeça na sua própria dúvida ? O Professor e o Escritor, meras peças de um jogo que não dominam ? Ou essa criança que vive no silêncio e no imobilismo e cuja força resulta de uma fé inabalável num poder que a transcende ?
A melancolia que se desprende destas imagens tem duas origens: o conhecimento do futuro e a angústia que esse conhecimento carreia; aquilo que o filósofo Martin Heidegger chamou "esquecimento do ser" - ou a memória desse esquecimento, e como me congratulo com este paradoxo ! - que invade a modernidade tecnológica, mediática, obcecada pelo sucesso e desligada da essência humana. Onde estão agora, pobre Heidegger, o ser-aí e o estar-no-mundo (in-der-Welt-sein) ?
Na realidade, "Stalker", muito antes das grandes teorias sobre o "fim da História", proclama bem alto que esse fim chegou, não por via de um cume de perfeição do capitalismo que aboliria a necessidade de ideologias e que, por ter atingido tal grau de perfeição, se teria tornado o álfa e o ómega da existência humana na Terra. Antes, ou melhor, sobretudo, porque a História e a sua legião de falhas, desencontros e absurdos, foi definitivamente derrotada pela Natureza, essa entidade física e metafísica, à qual se opôs desde sempre e que no derradeiro combate lhe determina o fim. Ou, como diz Milan Kundera em "A Arte do Romance":
Mas se o homem perdeu a necessidade de poesia, será que se apercebe do seu desaparecimento ? O fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não haja nada mais tranquilo que o fim.






quinta-feira, 27 de julho de 2023

J.D.SALINGER


 


You're not the first person who was ever confused and frightened and even sickened by human behavior. You're by no means alone on that score. Many, many men have been just as troubled morally and spiritually as you are right now. Happily, some of them kept records of their troubles. You'll learn from them—if you want to. Just as someday, if you have something to offer, someone will learn something from you. It's a beautiful reciprocal arrangement. And it isn't education. It's history. It's poetry. ~J.D. Salinger

quarta-feira, 12 de julho de 2023

A PROPÓSITO DE LEVEZAS INSUSTENTÁVEIS


 


 

Depois de Sartre, depois de Camus, depois do ensino secundário, mais ou menos entre o segundo ano da Faculdade e a tropa, diria que a obra de Milan Kundera entrou nas nossas vidas na mesma altura em que demos entrada na vida adulta. Não se poderá dizer que foi um passeio agradável ou sequer uma catástrofe mas, uma das primeiras lições que a obra de Kundera me transmitiu foi a de que havia vidas bem piores que a minha. O C foi o primeiro a ler “A Insustentável Leveza do Ser” e passava noites a fio a elogiar a obra. Era a continuação das leituras anteriores, era Kafka e Nietzsche no melhor de cada um, era o novo marco na literatura europeia. Numa noite de Sábado, finalmente, emprestou-me o livro com todo o cuidado, como quem passa uma relíquia sagrada de uma igreja para outra. Sem ter ainda largado o livro ainda houve tempo para uma breve advertência: o livro não estava completo, faltavam-lhe mais ou menos umas dez, quinze páginas. Depois me explicaria a razão, agora não era o tempo disso. Não liguei e quase que lhe arranquei o livro dos dedos ainda indecisos. O C era feito de mistérios e enredos inacabados. Claro que devorei o livro mesmo sem as páginas referidas o que me obrigaria a reler mais duas ou três vezes, agora já na forma completa. O romance apoiado numa estrutura fragmentada faz cruzar personagens e ambientes de uma forma fluída, cujo sentido se vai fortalecendo como um curso de água que desce de montanhas escarpadas e irregulares para se espraiar num amplo estuário, misto de suavidade e angústia. Fala de amor e lealdade, de liberdade e opressão, caricatura do comportamento humano, desventuras e breves alegrias. Fala na busca da felicidade e das várias transformações em que ela se vai tornando. Entre os dois mundos do tempo da Guerra Fria as pessoas procuram desesperadamente a sua felicidade carregando consigo os fantasmas do passado exigindo da existência coisas diferentes. Um pouco autobiográfico “A Insustentável Leveza do Ser” é contada a partir do lado de lá da cortina de ferro onde a liberdade é um sonho e os conceitos se confundem de acordo com as leituras oficiais do partido único. Do lado de cá também não se poderá falar exactamente do Paraíso na Terra, havendo bastantes contradições e manchas a assinalar. De um lado e de outro os sistemas desfazem-se sobre as suas próprias contradições devorando gerações, uma a seguir à outra.

 

As fronteiras do silêncio voltavam a fechar-se sobre a Europa, e a Grande Marcha já não desfilava senão em cima de um pequeno estrado no centro do planeta. As multidões que outrora se acotovelavam ao pé do estrado tinham partido há muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem espectadores…..

…..a Grande Marcha continua, apesar da indiferença do mundo, mas está a tornar-se nervosa, febril, ontem contra a ocupação do Vietname pelos americanos, hoje contra a ocupação do Cambodja pelos vietnamitas, ontem para apoiar Israel, hoje pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã contra Cuba, e sempre contra a América, sempre contra os massacres e sempre em apoio a outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e para poder acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único acelera cada vez mais o passo, de modo que a Grande Marcha já só é um cortejo de gente apressada a desfilar a galope, e a cena cada vez se encolhe mais, até ao dia em que finalmente há-de tornar-se apenas um ponto sem dimensões.

(A Insustentável Leveza do Ser)

 

 Não vou perder aqui tempo a descrever todos os aspectos do romance. Limitar-me-ei a referir a sua grande importância no momento em que surgiu na medida em que abriu um caminho onde o humor, a memória, e a percepção da beleza podem reclamar um novo Homem, uma nova Literatura desde que combinados num padrão de exigência e rigor que se eleve acima da espuma dos dias. Claro que não aconteceu nada como é habitual. A mediocridade e o kitsh político e social prosseguiram o seu caminho como sempre. A arte é feita de sobressaltos ocasionais em que a estrutura abana mas não cai, a evolução espreita mas depois vai esconder-se a correr. Sobre os personagens sopram os ventos da História interferindo nos seus percursos mais ou menos intensos, mais ou menos elaborados, varrendo-os de qualquer maneira da mesa onde depositaram as suas aspirações iniciais.

 

 

 

O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotski

Ludvik

 (A Brincadeira)

 

Seguiram-se mais romances que fui devorando ao longo dos anos. O primeiro de todos da sua biografia, “A Brincadeira”, escrito entre 1962 e 1965. Marketa e Ludvik são estudantes universitários em Praga. Ela identificava-se com tudo o que vivia, o campo de férias num castelo na Boémia, as aulas de ginástica os programas do partido em geral para os jovens. Ludvik até concordava com ela mas naquele instante queria era que estivessem juntos em Praga e não suportava a ideia de que ela estaria mais feliz no campo de férias.  Resolve ser irónico. Numa breve piada escrita num postal para a namorada num campo de férias tudo acaba por se precipitar indo parar a um campo de reeducação e ficando com a sua vida virada de pernas para o ar. Para sempre…  Acaba por encontrar Lúcia com quem se envolve mas sem a conseguir amar ou sequer tratar bem. Em cima de uma pilha de mal-entendidos, cada um transportará a sua verdade ,

alheia à verdade dos outros, todas elas devastadas pelos ventos da História.

Kundera reflecte, caricaturiza, compadece-se, odeia, explode de raiva e resigna-se, e pelo caminho retrata pessoas e o mundo como quem relata um combate no qual todos acabamos por perder no fim. A sua obra marca uma época que já não existe embora a maior parte das angústias e do sofrimento sejam os mesmos. O cenário mudou mas a peça será sempre a mesma.

Muitos anos depois perguntei ao C o que é que tinha acontecido às páginas perdidas da “Insustentável Leveza do Ser”. Fez um ar solene e inspirou fundo. Estava no fim da recruta, ne semana de campo. A certa altura no meio do mato deu-lhe aquele ataque inequívoco e imprescindível de se ter que agachar atrás de uma moita. No fim, o único papel disponível era o do livro que o acompanhava dentro da mochila. Uma história que Kundera poderia ter escrito.

 

Artur


MILAN KUNDERA

 




                                                                        1929  -  2023

segunda-feira, 10 de julho de 2023

AUTORETRATO DO ESQUECIMENTO E DAS COISAS QUE ME ALEMBRAR


A espuma cuspia-me na cara mesmo com a proteção dos braços da minha mãe. O meu peito ressoava mais forte do que as ondas lá embaixo contra as rochas e contra o casco.
O barco içado pelo guindaste no cais molhado balançava ao ritmo do vento forte. No intervalo das rajadas ficava o frio do medo e do tempo, e a esperança do chão aproximava-se lenta, custosa e incerta. Quando a terra finalmente aconteceu, o cheiro a vomitado ficou para trás e os gritos de alegria sobrepuseram-se aos de agonia.
Os credos passaram a bênçãos, os braços que me seguravam antes elevaram-me ao céu em agradecimento ao Espírito Santo.
- Benzá Deus!
Gritavam as vozes agradecidas entre choro e alegria.
Minha mãe procurou um lugar seco, juntamente com as onze famílias que iam seguir viagem, para nos enxugarmos e apanhar um carro de praça até ao Terminal. A pobreza era sinónimo de humildade e asseio, e não íamos entrar num carro para sujar os bancos com indisposições e água do mar.
Uma barra de sabão azul e branco, uma fralda de pano com outro uso de tão puída por ele mas seca e molhada nas gotas que caiam dos beirais. Uma muda de roupa vinda da terra para onde íamos e estávamos prontos para continuar viagem. Meu pai compôs os meus dois irmãos maiores com o pente que trazia na algibeira, uma réstia de sabão molhado para prender os fios de cabelo que teimavam em eriçar-se. Deixou-se para o fim na manobra dos asseios usando o resto do resto de sabão e as gotas que terminavam de pingar.
O cabelo rijo e negro ficou brilhante como os calhaus da ribeira cheia em dia de irmos lavar a roupa.
Quando pus os pés no chão já estava calçada com as botas que nos tinham mandado no barril da América. Eram dois números acima mas aguentavam-se nos meus pés graças às folhas de jornal que faziam de palmilhas. Meu irmão acima de mim estava pior porque, além de não estar habituado a sapatos, os dele eram um número abaixo. Não engordamos com papas de carrilho mas crescíamos de tamanho e de pés.
Meu pai levantou os olhos para olhar nos de Jaime que começava a ficar afogueado com os apertos e não precisou dizer nada. Fez-lhe uma festa na cabeça a endireitar a mecha de cabelo que fugia para a testa e pôs-lhe a mão no ombro. Meu irmão Joaquim, onze meses mais velho, pôs-se ao lado dele, disse-lhe um escuto, pôs-lhe a mão no outro ombro e agarrou na mão de minha mãe que segurava a minha.
O carro de praça chegou e sentamo-nos todos atrás.
Meu pai arrumou a mala pequena que ia pela metade com tudo o tínhamos e sentou-se ao lado do condutor simpático que nos levou ao aeroporto.
Eu, Maria José, tinha cinco anos, meu irmão Jaime, oito e Joaquim em breve teria nove.
-Parece que já estamos na América! Mas pechinchinha!
Dizia o condutor.
-Os americanos deixaram estas lembranças aqui para termos vontade de continuar até à América maior.
Subimos a estrada da Birmânia a arregalar os olhos pelo caminho fora do Açucareiro até ao Terminal, passamos por casas de lata pintadas de branco cor de farinha, outras compridas como metades de tubos gigantes com jardins cheios de flores e erva verde que só tinha visto nas pastagens da minha ilha mas sem vacas à vista.
Em frente à piscina o senhor José abrandou ainda mais para vermos melhor. Passamos um edifício grande de madeira e por rapazes a correr para ele, todos vestidos de branco, a vir da piscina mais acima, duma prova de mergulhos que estava a acontecer. Olhamos à direita logo a seguir e, apesar das luzes ainda não estarem acesas e de eu não saber o que era luz elétrica senão mais tarde, pasmamos.
-Cinema! Gritaram Jaime e Joaquim ao mesmo tempo.
-Mêpai, está uma senhóra naquele vidro que parece nhamãe.
O condutor José parou para me dar razão.
-A pequenina tem razão. Parece a sua senhora já americana. Com os cabelos ripados, um sorriso parecido pintado de vermelho cereja.
Já não sentíamos a humidade no corpo e quando olhei para minha mãe ela sorria como a senhora do cartaz.
- Se os senhores se não se importarem, e como este é o meu último serviço, gostava de os convidar para um prato de sopa em minha casa. A minha senhora já deve ter a mesa posta.
O avião é depois de amanhã e os senhores precisam descansar e ganhar forças para essa viagem tão comprida.
O Terminal está cheio de famílias a dormir pelos bancos e eu gostava que a vossa família ficasse com a minha. Ao menos uma há-de descansar melhor do que as outras. O quarto da minha falecida mãe está vazio e tem espaço para os senhores e para os pequenos.
Sempre é melhor do que os bancos duros da espera.
Assim foi. Meu pai, Jeremias Figueiredo,homem de poucas palavras e de muito trabalho, sempre ajudou quem pode apesar de não termos nada e minha mãe ajudava-o sempre a repartir o nada por todos, deixando-se sempre ficar para o fim até adormecer de estômago vazio, dia após dia, noite após noite. Salgava os peixes que a gente pescava no calhau da nossa ilha até ao último grão de sal, nos dias de verão. Cozia pão quando recebia farinha em troca dos seus serviços de costura e empregada de quartos na casa grande.
Era tudo muito pouco, o sal, a farinha, os peixes, o conduto. Os escudos eram uma visão rara que passavam da mão dos senhores para a mão de meu pai que os dava a minha mãe, que por sua vez ia pagar o fiado à loja e voltava com nada.
Quando chegamos a casa do tio José, a sua senhora também Maria como minha mãe e eu, parecia que nos esperava.
Não havia telefones mas ela conhecia o homem que a escolheu para mulher desde os bancos de escola.
Protegia-a das reguadas do professores de todas as formas possíveis, até errando de propósito para malharem nele em vez de malharem nela.
Aquela família parecia a nossa. Quando dei por minha mãe já estava na cozinha a ajudar a senhora Maria comigo agarrada à saia dela, a tirar pratos, a juntar água à sopa, a partir pão. Nunca tinha visto uma torneira que não fosse a da fonte onde íamos buscar água em púcaros para encher o talhão feito do barro de Santa Maria. Lavei as mãos na pia da cozinha e não parava de cheirá-las enquanto faziam tanta espuma como as nuvens do céu.
A luz daquela casa e daquele lugar que se chama Aeroporto, não vinha da chama das candeias, das velas, ou dos candeeiros de petróleo. Vinha pelos fios e chegava aos globos de vidro que brilhavam como pequenos sóis. Estávamos todos pasmados por tudo o que nunca tínhamos visto mas eu era a única a abrir a boca o mais que podia, até a minha mãe me segurar no queixo,
empurrando-o devagarinho para cima com o indicador.
Meus irmãos estavam contidos pelo olhar de meu pai enquanto ajudavam o senhor José a acartar cobertores para fazerem camas no chão.
-Mêpai vê-se tudo lá fora como se fora quase dia e ainda falta para chegar a manhã.
Dizia Jaime.
-Mêpai esta luz é mais forte que a do candeeiro de petróleo da nossa casa e nunca se acaba.
Dizia Joaquim.
Ti José falou por ele.
- Na vossa próxima casa, com a graça de Deus, a luz será assim, a água vai correr assim, a comida não há-de faltar, nem a saúde, nem a união desta vossa família.
Os pés vão caber nos sapatos e a roupa há-de ser à medida.
Nosso senhor não nos deu filhos para podermos acolher os que por nós passam como se filhos fossem. O que eu aprendi com o meu avô foi de ouvir da boca de meu pai. Só se pode aprender ouvindo com atenção e com o coração. Eu ensino a quem passa, como um pai a um filho que sabe ouvir e aprendo com quem ensino que estamos no caminho certo.
Há muitos caminhos errados e um único certo que é o do bem. A luz que ilumina as nossas famílias é maior do que a que ilumina estas casas ou o caminho lá fora. Está cá dentro de nós e é esta que nunca se apaga dentro do caminho certo.
-Obrigada Ti José, seja pela sua saúde e dos seus.
Disse Mêpai.
- Agora vamos comer que vocês devem estar esganados e eu também. E muito mais cansados do que eu.
Nhamãe deu graças pelo abrigo e comida, eu acrescentei graças pelo vinho doce e pela bondade dos novos tios. Depois do Amen as colheres começaram a ouvir-se e Mêpai, do outro lado da mesa, levantou os olhos para meus irmãos e pra mim.
-Bem sei, Mêpai desculpe, mas está mesmo poderes de bum.
Quase adormeci à mesa à medida que a barriga se enchia de canja de peixe. A minha cabeça já tombava para dentro do prato quando Mermão Jaime a segurou e Mermão Joaquim me amparou.
-Zézinha já come e sonha e antes só sonhava que comia.
De certeza que ainda não estamos na América?
Disse Jaime
- Zézinha mais a gente, atravessamos o mar bravo até chegar aqui. Já vimos mais nestas duas horas do que na vida toda!De certeza que ainda não chegamos à América?
Disse Joaquim.
Meus irmãos seguiam o pensamento um do outro como se gémeos verdadeiros fossem. As palavras e as frases trocavam-se e completavam-se. O gosto pela leitura foi passado pelo senhor padre da nossa freguesia em troca de ajuda na missa e dos arranjos nos paramentos que Nhamãe fazia. Aprenderam a ler num ai para me contarem as histórias dos santos e lerem as cartas que Mêtio Jebedias mandava da América.
O galo escondido cantou o amanhecer e meus pais já não estavam na cama. Meus irmãos dormiam a sono solto e eu gritei por minha mãe:
-Nhamãe onde é que estou?
-Nhamãe onde é que está?
Minha mãe estava nas traseiras da casa com tia Maria a estender roupa debaixo dum sol que nunca mais senti assim. O calor naquele lugar vinha perfumado de poejos e hortelã.
A tia tinha molhos de ervas amarrados e dependurados num telheiro que filtrava a luz às fatias e os secava entre a sol e a sombra. Mal vi a água na pia da roupa e senti o cheiro de sabão azul e branco, atirei os braços lá para dentro para lavar a cara.
-Vais lavar-te com a roupa, Zézinha?
Perguntou a tia ao mesmo tempo que me içava com os seus braços e fazia jeitos de me aboiar para todos os lados.
-Esta está bem “bua”,tia Maria!
E lá fui eu já em coiro, de cabeça, até me puxarem pra cima.
Elsa Bettencourt.
Conto escrito para a Associação Daniel de Sá há alguns anos e que nunca enviei por estar sempre a fazer coisas pelos outros. Agora é por mim e pela minha ilha mal lembrada. Aquela que até o verão se esqueceu.