quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A LEND(E)A DE SALAZAR




Pouco depois do 25 de Abril de 1974, alguém se lembrou de decapitar a estátua de Salazar erigida em S. Comba Dão, terra natal do bigorrilha. A televisão acorreu ao local, pressurosa de averiguar os factos e inquirir os populares acerca do acto. Uma popular, idosa e manquejante, instada a comentar o caso respondeu deste modo:

-Coitadinho do Antóino... Era tão amigo dos probes e agora sarraram-lhe os cornos !

Haverá alguém que não perceba a subtileza cínica do comentário, o seu subtexto malicioso, mascarado pelo "coitadismo" nacional e por uma espécie difusa de lamento torpe ? Pronto, este é o meu contributo para a lend(e)a de Salazar, numa altura em que tanta gente suspira de nostalgia pelos tempos em que mandava no rectângulo. Ainda não perceberam ? É simples: não tem cornos, não pode voltar.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ENIGMAS AO CAÍR DA TARDE

Entre o Passado e o Futuro fica o enigma do presente, ficam os passos marcados na areia da praia, fica a interrogação para onde descola aquele bando de pássaros sobre o mar. Com os pés na água esperamos por uma direcção que se desenhe à nossa frente, uma razão que nos conforte ou uma harmonia que nos embale. Há as formas das palavras, há os cheiros das presenças e as formas eternas por onde caminhamos… mas falta-nos a razão. Falta-nos sempre qualquer coisa entre o dia de ontem e o que se vai seguir, falta-nos perceber os pássaros e a rota que escolhem, a quantidade do mar, o calor do Sol. Falta tanto e tão pouco até sermos tudo o que somos simplesmente porque somos. Falta a brisa do fim da tarde explicar que se estende como forma absoluta sobre todas as formas que por ali vagueiam quando passa. Falta um pássaro voltar atrás e deixar o contacto da sua nova morada, falta deixar-nos enterrar na areia mole da praia sem pensar, deslizar nessa vertigem que tanto nos deseja como nós a desejamos a ela. Sem uma razão que nos conforte nem uma harmonia para nos embalar, falta apenas fazer essa vertigem deslizar e deixar de perguntar. Artur

PURO

O som pesado, guitarras em riffs duros, uma consciência esmagada mas que teima em se manter de pé, o amor aos tropeções a brincar às escondidas com o desejo, a visão dos tempos, um saxofone melancólico que remata harmonias, está na rua o ultimo álbum dos Xutos & Pontapés. Sóbrio, elaborado, seguro e igual à qualidade de sempre “PURO” é o resultado de vários anos de trabalho desta mítica banda sempre comprometida com uma leitura do tempo, sempre ao lado de um “Inconsciente Colectivo” que acabou por ajudar a construir. A raiva e a energia são as mesmas do primeiro dia, a diferença está apenas nas vestes com que se apresentam, no passo seguro da veterania, na tranquilidade de quem já não tem mais nada a provar. No ouvido conseguimos reter de imediato a canção que serve de apresentação do álbum “Tu Também ( Há Dez Mil Anos Atrás) “ bem como “De Madrugada ( Tu e Eu)”, duas canções de amor em torno das suas contradições e ausências, dos desencontros e da procura. Retratando o caos urbano, a pressão, o stress, a solidão, a raiva, continua a fazer-se a história de um tempo com as ferramentas habituais, com a objectiva do Rock, reforçando uma harmonia caótica, ou simplesmente o seu conceito enquanto porto de abrigo. Em termos místicos o homem continua sozinho sem” Um Deus” que o escute, perdido num meio de um povo que “quer é mais futebol” e uma beca d’ “O Milagre de Fátima”. Houve um tempo, houve um espaço que desapareceu debaixo de um cilindro compressor composto de bancos, chineses e buracos. O café desapareceu (“morreu de ASAE e excesso de IVA), a loja, o irmão emigrou (“onde é que eles foram, onde é que eles estão?”), o país vai ficando cada vez mais vazio, mais desfeito nesta lógica absurda que só destrói e destrói até não sobrar nada. O futuro vai-se derretendo sobre as feridas, a fome e o desespero. Por fim temos “Longe (Perdido na Multidão)”, uma história de solidão e inacessibilidade, “manhã submersa, onde é que tu foste”, a balada de um canto escondido, distante, de um grito que só se calará com a morte. Ou seja, os Xutos continuam aquilo que sempre foram, reforçando com mais este trabalho a solidez da sua aura mítica construída ao longo dos anos. Não conseguindo surpreender mantêm-se no elevado nível de qualidade a que sempre nos habituaram. Não desiludem, não desarmam e não deixam de pensar. Um excelente trabalho. Artur

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

ELEGIA

No início deste novo ano queria escrever um texto de homenagem a uma geração ferida : a minha. Uma geração emergente das cinzas de um imperativo categórico ideológico. Uma geração sobrevivente que, enquanto escrevo estas linhas, se encontra a enviar currículos, pagando (mal) as suas hipotecas, tentando deixar de fumar, fingindo uma certa indignação, comprando móveis económicos no IKEA, sonhando com um Ipad, recolhendo os frutos que outros semearam, muito por sua própria culpa, ou seja, por demissão e omissão. A dançar a música do último Verão. Queria falar dos caminhos perversos que nos conduziram aqui. Todas as gerações – a minha geração “talking about my generation”, para quem se lembra – se compõem de um punhado de homens e mulheres corajosos e de um enorme rasto adiposo, que aspira a morrer sem fazer demasiado ruído, deixando aos filhos um pequeno apartamento, um diploma de curso superior, um crucifixo – ou um retrato do Che Guevara, tanto faz – e uma colecção de fotografias descoloridas. Passam por uma existência plena de abismos, sem entenderem os intensos fogachos de beleza, paixão, fúria, ânsia e perfeição que nos rodeiam. Às vezes, intuem os seus simulacros transmitidos pelo tubo catódico da sala familiar. Não é de estranhar que os novos iluminados do salva-te-a-ti-mesmo (o laparoto-mor, o lixo irrevogável, toda a escumalha do pote, os banqueiros e merceeiros de serviço e todos os outros cujo nome nem merece ser mencionado) estejam a festejar o “estado a que isto chegou”. Na feira das vaidades, a pior de todas é a de pretender salvar a própria vida, sair vivo deste mundo, convencer as forças incompreensíveis do universo para que nos saia o Euromilhões. E, como diziam os Antigos : que os Deuses repartam a sorte. O meu sonho é que os poucos que restamos sejamos capazes de acender todas as luzes, ou que formemos um pequeno clã de resistência, todos aqueles que vivemos na montanha russa a meio caminho entre o abismo e a beleza. Eu era daqueles que não sabia dançar. Nas festas, ficava pelas esquinas a fumar cigarros e a procurar cúmplices para o projecto de demolição do mundo. Passados muitos anos, tive o prazer de os encontrar, mais sumidos, menos audazes, mais silenciosos. Estavam nas cinematecas, nos gabinetes universitários, emparedados atrás de perigosos livros expostos em alfarrabistas, enviando artigos para revistas de circulação restrita, escrevendo e publicando livros que ninguém lê, empenhando-se até às orelhas para promoverem seminários de Lacan e comprarem os livros de Zizek, tudo fazendo como se a vida se escoasse. Um momento. A vida fugiu mesmo, desapareceu por entre todas as actividades insanas, inúteis, estéreis e vazias: discos, livros, séries de televisão, vias de escape. Isto não é uma saída, sobretudo tendo em conta a maneira como tudo acabou por se estilhaçar em milhares de pedaços. Discos, filmes, livros, textos para atirar pela janela nas noites gélidas de poucas alternativas, noites em que os televisores da vizinhança vomitavam as hóstias consagradas dos sermões incompreensíveis, parcos em orações subordinadas e abundantes em erros de sintaxe, noites de olhos abertos. A semiótica esteve quase a dizê-lo, mas ficou à porta. Barthes, Eco, Zumalde, quase o disseram. Não se trata unicamente do prazer do texto. Trata-se da sobrevivência no texto. Trata-se de acender as luzes. Este texto, que pretendia ser uma homenagem à minha geração, acaba por ser uma homenagem aos textos que acenderam as luzes. Quanto a tudo o resto, não vou enganar-vos. Quanto a tudo o resto, a vida prosseguirá cheia das coisas que provocam danos e que são realmente os focos do mal-estar contemporâneo. Escrevo estas linhas e ouço o anjo de Walter Benjamin perder as plumas, enquanto tertulianos cocainómanos defendem através da televisão aberrações atrás de aberrações ante milhões de pupilas esfomeadas, os pátios das escolas dão impulso a engenharias de maldade pura, os últimos inocentes recebem as primeiras hóstias, os cartões de crédito ronronam nas lojas decoradas com faustosos dourados na Av. Da Liberdade, se aprovam planos estalinistas de reeducação das massas, se concede essa subvenção ao cunhado do presidente da câmara para uns terrenozitos baldios, uma parelha de apátridas de quinze anos, amantes do techno – ela está grávida mas ainda não sabe – compram cachorros quentes numa sala multiplex de um centro comercial, enquanto chega outro convite para aderir ao Facebook, um perito em pedagogia opina que talvez seja melhor transformar o natal na Semana da Paz e Tolerância, para não ferir sensibilidades, ferve o chá em centenas de cozinhas, domesticam-se cães, uma cadeia de televisão passa um programa sobre um tipo que sequestra a filha da sua ex-mulher e suicida-se em seguida, David Guetta prepara um novo single, Shakira situa-se como uma alternativa credível como candidata ao prémio Nobel da Paz, um adolescente sobe o volume do seu telemóvel numa estação da linha Alameda-Rossio e todo o comboio se enche de uma voz simiesca que intenta vocalizar algo como “morena, cadela, morena, tu sabes”, golo do Benfica num inenarrável encontro histórico, chega outro convite para o Farmville e ainda um outro para o Instagram, “juro-te que é a primeira vez que me acontece”, elegantes e discretas páginas web oferecem aventuras para senhoras casadas que perderam a faísca da paixão, a gala dos Globos de Ouro e os Prémios Sophia para o Cinema Português, o Tribunal Constitucional, milhões de modems descarregando em apaixonados zumbidos todo o tipo de sofisticada pornografia em streaming “gostas de conduzir ?”, sorteios da lotaria, chuvas douradas, debandadas de pássaros, o primeiro banco responsável, o primeiro banco da nova banca, chega um convite para mudar de casa, dor de cabeça., tranquimazin, ibuprofeno, gelocatil, Saldeva, Tuenti, Melendi, Steve Jobs, dor de cabeça, eficácia, trabalho por objectivos, empreendedorismo, sentido de estado, o par de adolescentes amantes do techno fornicam dentro de um automóvel que passou pelo tuning, enquanto os seus corpos imprecisos, e já malditos, se iluminam com o néon azul, com o néon vermelho, com o néon verde. A vida escoou-se assim. Cai a noite e acendem-se as luzes do Carnaval do mal-estar. Arnaldo Mesquita

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

MISTÉRIO

Todos os caminhos da cidade acabam por vir dar aqui, os meus passos, a maré que se despede a caminho da barra, o Sol de Inverno. A linha das casas impecavelmente direita, paralela ao espreguiçar do rio e às histórias que ele vai contando entre pares de namorados esquecidos e pescadores vagarosos. O caminho por esta avenida de tranquilidade sem pensar em nada, sem saber o tempo, sem quase não ser nada a não ser tudo isto porque sim. Vai-se a tarde, gastam-se os passos em linhas sem nexo, em destinos cruzados numa teia de caminhos tricotados, mapas de neurónios vistos de cima. As realidades vão e vêm, as pessoas, as marés, o Sol e as ideias. Ficam as palavras, fica o reflexo de um papel tímido rabiscado, desenhado de letras que teimam em não morrer para dar conhecimento, construir memórias, contar histórias a quem vier depois. Ficam as palavras a mirar-se no reflexo de um vidro, sem desculpas nem hesitações. Ficam, simplesmente. Gasto os meus passos nesta linha entre o rio e a cidade e não gostaria de viver em mais lado nenhum do mundo. Só aqui, a ver memórias ao longe, a desenhar as minhas atrás de uma vitrine enquanto observo casais de namorados vagarosos que regressam a casa e pescadores esquecidos entre linhas imaginárias e baldes de isco. O mistério de estar vivo é a certeza das nossas memórias que para nada servem a não ser a de mandar mensagens muito depois de já não estarmos aqui. Garrafas atiradas à maré com papéis escritos lá dentro na esperança de um dia chegarem a algum lado. Palavras, letras desenhadas num papel apressado antes de regressar a casa. As realidades entram e voltam a sair, as pessoas, as marés, o Sol e as ideias. Ficam as palavras… Artur