quarta-feira, 29 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA 5

CHE STRANO CHIAMARSE FEDERICO /

QUE ESTRANHO CHAMAR-SE FEDERICO

Ettore Scola

Itália, 2013



Para falarmos sobre um filme que é essencialmente um manifesto de ternura poderíamos começar com uma imagem de ternura. Uma imagem onde um miúdo de nove anos de idade descreve em voz alta a interpretação de uns desenhos satíricos da autoria de Federico Fellini a um avô cego. Dez anos depois de GENTE DI ROMA, contrariando todas as possibilidades, Scola decide homenagear o seu amigo Fellini vinte anos depois da sua morte. Para isso recorre ao seu depósito de memórias desde o momento em que chega a Roma, o seu primeiro trabalho como caricaturista e o encontro com Federico na redacção do jornal humorístico Marc’ Aurellio. Nessa altura já Fellini dava os seus primeiros passos no capítulo da realização. Scola, onze anos mais novo, só mais tarde entrará na indústria na qualidade de argumentista. E é este tempo de amizade e profunda admiração que resulta numa deambulação a um tempo nostálgica e estética ao núcleo de uma obra imensa de um dos maiores criadores cinematográficos de sempre.
Tal como ao longo de toda a sua obra, Scola nunca se cansou de nos surpreender, encontrando sempre novas fórmulas para apresentar as suas propostas. Neste caso, estando muito longe de qualquer referência testamentária, de qualquer intenção de nos dar uma lição, o que Scola nos deixa é a homenagem a um Mestre que o marcou definitivamente nos mais tenros anos da sua aprendizagem. Uma homenagem à obra, à arte e à personalidade de um génio. E, mesmo não sendo próximos da obra de Fellini, qualquer um se consegue apaixonar rapidamente pelo seu trabalho. Este é talvez o maior encanto do filme.


Escrito em parceria com as suas duas filhas Paola e Sílvia, o filme vai levar-nos a uma visita guiada ao prazer partilhado dos desenhos, de fazer filmes e aos amigos em comum (Mastroianni, Ruggero Maccari, Emio Flaiano, Scarpelli, todos eles referências na história do cinema italiano seja como actores, seja como realizadores ou argumentistas). Estacionando no mítico estúdio 5 da Cinnecittá, onde Fellini rodou a maior parte dos seus filmes nas décadas de 60 e 70 faz-se uma reconstrução de alguns cenários à medida que somos introduzidos ao processo criativo do artista. Misturados com extractos dos próprios filmes de Fellini há uma dimensão documental a complementar a fantasia ou, melhor dito, o processo de criar fantasias.
Por outro lado as noites sem fim deambulando por Roma no Lincoln de Fellini que sofria de insónias. A mania de dar boleia a quem encontrassem para ouvir a sua história e daí partir para a construção de uma personagem ou de um novo argumento.
Recordando o amigo, exibindo a admiração sem limites pelo génio, com uma narrativa fluida e funcional, CHE STRANO CHIAMARSE FEDERICO acaba por ser um caderno de apontamentos partilhado com o público onde a única intimidade que ficamos a conhecer é a do criador com a construção da obra, a do génio com o empenho em tornar a vida por momentos mais colorida e suportável, a do deslumbramento inesgotável do Ser pelas possibilidades encontradas de fabricação da fantasia.
Obrigado aos dois…



Artur

sábado, 25 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA 4


BRUTTI, SPORCHI I CATTIVI/ FEIOS, PORCOS E MAUS

Ettore Scola

Itália, 1976

Estamos na década de 70 do século passado num bairro de barracas da periferia de Roma. Através de um lento e englobante plano-sequência vamos sendo apresentados aos vários elementos do clã Mazzatela à medida que se levantam para um novo dia. Uma jovem adolescente sai para a rua com uns recipientes na mão para ir buscar água. Saltita na inocência dos seus 12/13 anos enquanto caminha por um cenário de porcaria, feito de habitações precárias, poças de água e caos urbano em geral.Mais tarde voltaremos a vê-la a recolher as crianças do bairro para um “infantário” improvisado feito de uma cerca de arame semelhante a um galinheiro gigante. Giacinto é o patriarca desta agremiação vagamente familiar composta por gente que trabalha nem sempre nas mais nobres actividades. Por ter queimado um olho com cal viva recebeu uma indemnização de um milhão de liras do seguro que esconde avidamente. Um milhão que o resto da família cobiça urdindo toda a espécie de malfeitorias para se conseguir apropriar dele.
Esta é em síntese a intriga básica de (na minha opinião) uma das mais belas e mais brutais obras-primas da história do Cinema por ser pouco comum na abordagem, cruel na descrição e  impiedosa na análise.
O filme acompanha um grupo de marginais em geral que enquanto tenta sobreviver tudo faz para ocupar ou destruir o espaço alheio. O dia da pensão da avó é o dia de festa dos netos que rapidamente dividem o dinheiro à porta dos serviços na presença de uma anciã demente que passa os dias em frente à televisão. O dinheiro ocupa o lugar do filtro maior ou, se calhar, do filtro absoluto em que se desenvolvem as suas existências. Não há espaço para identidade, dignidade ou sequer consciência porque isso seria perder tempo, ficar para trás, deixar de ser ou de estar vivo. As análises filosóficas ou sequer sociológicas ficam na gaveta deixando à vista o osso duro da condição humana que encarna o “espírito do tempo” onde tudo é dinheiro, vantagem, sobrevivência pura e dura. Nada que não seja feito no resto da sociedade pelas outras camadas só que essas têm tempo para construir álibis, desenhar teorias, elaborar justificações. Neste bairro de barracas onde se avista ao longe a cúpula da Basílica de S. Pedro no Vaticano não há espaço para a piedade, o sentimento ou o sonho.


E sendo uma tragédia do princípio ao fim, ao exibir a condição humana na sua forma mais animalesca não conseguimos deixar de rir. Não conseguimos desenhar a fronteira entre o drama e a comédia, elementos indivisos do nosso comportamento, equilíbrio instável sem o qual não seria possível suportar o fardo da nossa condição. Os pobres vão morrer pobres e não são nenhuma espécie de heróis por causa disso, não acolhem consciência política, não alimentam qualquer tipo de esperança em relação ao futuro. Nasceram condenados àquela condição que os empurrou para a sobrevivência a qualquer preço, para a bestialidade e para todas as categorias dos mais primários instintos animalescos que nos assistem.  Alegoria destas últimas considerações poderia ser a extraordinária cena em que Giacinto, percebendo ter sido alvo de envenenamento corre para o mar e injecta água salgada pela boca abaixo auxiliado pela bomba de uma bicicleta para poder vomitar. Em O MILAGRE DE MILÃO (De Sicca) os pobres encontram a sua libertação através da morte, em VIRIDIANA (Luís Buñuel) ao ser oferecida hospitalidade numa casa senhorial campestre a um grupo de vagabundos, a primeira coisa que se lembram de fazer no dia em que estão sozinhos é dar uma festa e destruir a casa toda. Em FEIOS PORCOS E MAUS a brutalidade e o grotesco das relações humanas explode em cada gesto embalada pela condenação da miséria.
No fim ao nascer de mais um dia, a jovem adolescente que no princípio acompanhámos com os baldes a caminho da água retoma a sua rotina diária. Saltita enquanto caminha mas quando a câmara a deixa ver de corpo inteiro reparamos que está grávida.
Tragédia hiper relista, crueldade acutilante, grotesco permanente, hilaridade, tristeza, e até ternura são as componentes constantes deste colosso da condição humana. Sem respostas rápidas nem soluções fáceis e muito menos teorias reconfortantes. Uma sociedade bestificada sem identidade nem compaixão só poderá produzir bestas que não sabem quem são ocupadas apenas em destruir o que não lhes pertence. 
Se lhes forem dadas as condições ideais o ser humano é capaz do melhor e do pior.
Ficamos à espera de saber o que seria se existissem as ferramentas para fazer o melhor.
Um colosso que deveria ser visto por todos.

Artur




sexta-feira, 24 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA 3



Ettore Scola

França/ Itália/ Argélia 1983

Tudo começa como se de um qualquer espectáculo de café-concerto se tratasse. Acendem-se as luzes, as pessoas vão chegando e começa a música. O mesmo espaço e o mesmo grupo de pessoas que nos irão contar meio século de História da França através de  seis quadros vivos, dançando ao longo do tempo. Baseado num espectáculo musical, uma pantomima imaginada e dirigida por Jean-Claude Penchenat e interpretada pelo grupo Thêatre du Campagnol em Châtenay-Malabry, LE BAL resulta de uma adaptação para cinema co-escrita por Ettore Scola, Ruggero Maccari, Furio Scarpelli e o próprio Penchenat.
Começamos por ouvir La Valse au Dénicheur , ver uma bandeira da Frente Popular e a data…1936. Segue-se a transformação do espaço em abrigo contra os bombardeamentos. Estamos em 1944. A entrada de um oficial alemão dá-nos a imagem da ocupação em França. Em 1946 chegam os soldados americanos e com eles o jazz.
Mais uma vez Scola repete a fórmula já ensaiada anteriormente, isto é, aborda o tema histórico de forma indirecta através dos mais desprendidos e mais comuns aspectos da realidade. Neste caso concreto consegue aperfeiçoar o método propondo-nos um filme mudo. De facto, são os ruídos do exterior, as músicas, as modas e as danças que nos vão contando o passar dos anos, que nos vão colocando em cada época enquanto as pessoas limitam a mudar de pele. São sempre os mesmos sendo sempre em momentos diferentes o que dá uma curiosa relação visual entre o tempo e o homem. No fim de cada “tempo” a imagem fica parada e transforma-se numa fotografia que ficará pendurada numa parede mesmo ao lado do bar.
Tal como num espectáculo de vaudeville sucedem-se os quadros pitorescos e curtos de humor instantâneo que vão decorando os espaços em que a música se faz notar mais baixa. Como o do calmeirão magrinho que leva o tempo todo a tentar vencer a timidez e convidar uma senhora para dançar, sem êxito, ou o “riquinho” desesperado que perante o abandono da sua amante resolve cheirar uma linha de coca sobre a mesa, linha essa exterminada pelo pano de limpeza de um empregado diligente.
Em 1956 impera o samba e as saias que rodam em grande efeito. Até que aos poucos os casacos de cabedal pretos comecem a ocupar a pista de dança e a impor o Rock’n ‘Roll.
E com uma canção dos Beatles em fundo chegam os anos 60. Lá fora ruído de multidões e sirenes da polícia. Jovens manifestantes refugiam-se no recinto com os olhos irritados pelo gás lacrimogéneo. Maio de 1968.
Por fim chegam os anos oitenta (1983) e começa-se a desmontar o cenário. Faz-se ouvir um relógio, os dançarinos retiram-se, o barman apaga as luzes. Como uma caixinha de música a três dimensões por onde estivemos a espreitar viajámos ao longo de meio século através da música e das modas sem ouvir uma única palavra. Uma coreografia do tempo onde o movimento vai trocando as suas impressões com o espectador. Uma linguagem diferente onde nos vamos integrando, ouvindo e dançando.



domingo, 19 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA 2


LA NUIT DE VARENNES/ A NOITE DE VARENNES

Ettore Scola

França/ Itália 1982

A 20 de Junho de 1789 uma carruagem com a família real tenta a sua fuga de Paris que arde sob o fogo da Revolução. Dias mais tarde o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta acabam por ser capturados na povoação de Varennes, precipitando uma trágica série de acontecimentos reforçada pela desconfiança e pelo ódio à monarquia. A acção do filme, que não acompanha em directo as várias peripécias desta fuga atribulada, centra-se numa segunda carruagem algumas horas atrasada em relação à primeira, onde viaja um grupo extremamente improvável de personagens, cada um com o seu destino e motivação diferentes. Uma condessa austríaca que tinha sido aia da rainha (Hanna Schygulla), o filósofo e escritor libertino Restif de la Bretonne (Jean Louis Barrault), o revolucionário americano Thomas Paine (Harvey Keitel), um Casanova em plena velhice (Marcelo Mastroianni), uma viúva a caminho da sua propriedade (Laura Betti), um juiz e uma cantora de ópera (Andrea Ferrol).


Baseado no romance de Catherine Rihoit ( “La Nuit de Varennes oú l’impossible n’est pas Français”) o filme tem a particularidade de desenvolver a análise histórica de forma indirecta através dos diálogos entre personagens de ficção sem que isso prejudique o rigor ou sequer a verosimilhança dos factos. Naquela carruagem um passo atrás dos acontecimentos os conceitos de “vida”, “mudança”, medo” e “solidão” vão sendo debatidos e avaliados através de várias perspectivas quer sociais quer etárias. Através da avaliação dos tempos de mudança e incerteza em que se encontram mergulhados fala-se de política e de Filosofia. Neste autêntico road movie de reconstituição histórica confrontam-se os tempos modernos com os antigos e descreve-se o esboço de uma nova ideologia principalmente através das intervenções de Paine ou de Restif. A ordem antiga é defendida pela condessa austríaca. Numa coisa parecem estar todos de acordo. “A idiotice é a pior das traições e não há nenhuma revolução que consiga acabar com ela”. Percebe-se que a revolução é uma consequência directa do sofrimento da população em geral. Mas também é evidente que os filhos dessa revolução, ao destruírem os valores da ordem antiga não têm a mínima ideia acerca daquilo que vão construir no seu lugar. Fica aberta a porta para um tempo de vazio e incerteza. A discussão acesa entre o jovem estudante que insulta abertamente o decrépito Casanova faz antever o resvalar da revolução para a brutalidade e a violência gratuita, para o regime de terror que se irá seguir.

Mas os tempos mudam sempre como o cenário de um palco e o que se mantém somos nós os seres humanos essa espécie construtora de todas as ordens antigas e modernas. A vida acabará por continuar de uma forma ou de outra e o que nos distingue será a forma como respeitamos e vivemos com os nossos valores. Se por um lado a atracção da condessa pelo revolucionário americano se vai reforçando nem por isso as suas ideias são alvo de cedência. Perto do fim do filme vemos uma cena em que a condessa veste um manequim com um manto do rei que tinha trazido de Paris e, de seguida, rende a sua homenagem ajoelhando-se na sua frente.
Sendo um filme de reconstituição histórica LA NUIT DE VARENNES é também uma lição de vida que nos relembra o modo como tudo é tão efémero e de como somos muito mais iguais do que alguma vez poderíamos imaginar em tempos de normalidade. Respiramos o mesmo ar, temos o mesmo medo, sonhamos os mesmos sonhos. E tudo é tão frágil que pouco ou nada vale se não nos soubermos colocar nesta  trágica comédia onde a História, o Medo, o Amor, a Vida e a Morte brincam com as nossas existências sem dó nem piedade. Um grande filme, portanto.


Artur

sábado, 18 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA

UNA GIORNATA PARTICOLARE / UM DIA  INESQUECÍVEL

Ettore Scola

Itália/Canadá 1977



Comecemos pelo princípio. Um plano inteiro com movimento de grua que se move em ascensão pelas traseiras de um espaço urbano composto de vários prédios e que entra para uma janela onda vamos encontrar a protagonista a executar as suas tarefas domésticas. Um movimento de câmara bastante raro ainda hoje estudado em muitas escolas de cinema. Um rádio aos berros que inunda o espaço vazio de pessoas através do qual vamos percebendo tudo o que se vai passando naquele dia 8 de Maio de 1938 em Roma. Todos estão presentes na parada e cerimónias que celebram a visita de Hitler a Itália. Nem todos. Antonietta fica em casa a tratar das suas tarefas domésticas enquanto o seu marido, um funcionário público da Itália fascista se deslocou até às comemorações com os seus seis filhos. Gabriele, um locutor de rádio demitido aguarda a sua deportação para a Sardenha. Nem marido, nem pai, nem soldado, nem sequer fascista, o locutor é homossexual, bilhete garantido para a exclusão de um regime totalitário embriagado com os ventos de guerra que começam a soprar. O encontro entre estes dois vizinhos, sendo muito mais do que a soma de dois corações solitários acaba por se revelar a dissecação de uma ideologia através de um hino à ternura e ao humor.


Antonietta sente-se frustrada e sozinha num mundo onde se limita a cumprir as suas funções de mulher-a-dias da sua casa e parideira. Apesar de já ser mãe de seis filhos o seu marido quer ser pai outra vez e com isso beneficiar do apoio e incentivo à natalidade dado pelo regime. Infiel e bronco transforma a vida da mulher num vazio imenso, impossível de preencher ou de deixar encontrar um espaço mínimo de realização e felicidade. Gabriele por seu lado, a primeira vez que é filmado no seu escritório, tem uma arma em cima da secretária sugerindo a ideia de suicídio. Os dois conversam, trocam histórias, dançam a rumba. Sendo considerado um dos mais belos filmes da história do Cinema, tudo em UNA GIORNATA PARTICOLARE é improvável e surpreendente desde o percurso de cada um dos personagens até ao desempenho dos actores. De facto, dois dos ícones e sex symbols da sua geração, o casal mais adorado do cinema de então envolvem-se numa interpretação sublime e natural de duas figuras simples e tristes que vivem uma tarde de excepção contra todas as possibilidades. Ignorando a homossexualidade do vizinho Antonietta expõe o seu charme, a sua vontade, o seu desejo de se sentir viva nem que seja por uma vez. Eventualmente o casal acaba por se envolver emocionalmente. Mas tudo é tão subtil e belo ao mesmo tempo que por instantes o que vemos é dois seres vítimas do sofrimento e da solidão que acabam por se consolar mutuamente. Enquanto a cidade inteira comemora a tirania e a autoridade e o rádio aos berros nos vai dando conta disso. E é esta fantástica história de subversão e simplicidade que acaba por se tornar um contraponto de bom senso num dia de bebedeira colectiva. Ao fim do dia Antonietta vê pela janela o seu vizinho deixar o prédio escoltado por dois polícias. Lá dentro já deitado está o seu marido que a chama para tratarem de fabricar o seu sétimo filho. Assim termina “um dia inesquecível”…

Artur

quarta-feira, 8 de junho de 2016

UM QUARTO QUE SEJA SEU




Dedicado a Teresa Borges, no dia do seu aniversário.


Assombrada por uma questão aparentemente simples mas que se revelou árdua à medida que as suas pesquisas se desenvolveram, Virginia Woolf percorria, no Outono de 1928, as ruas e os parques de Cambridge, frequentava restaurantes, festas e bibliotecas, consultava dezenas de escritores, homens e mulheres, compulsava montanhas de livros, preocupada sempre com a mesma questão, cuja resposta lhe chegou espontaneamente ao espírito, mas cujo significado considerava tão crucial que procurava discernir-lhe o sentido, estudando o comportamento e os papéis masculinos e femininos, os escritos dos homens sobre as mulheres e os das mulheres sobre os homens : "Que condições são indispensáveis à criação de obras de arte ?" - obras criadas por mulheres, entende-se, e não somente pelos homens, já que, no que se refere aos homens a questão há muito tinha sido respondida através das múltiplas teorias masculinas sobre a arte e sobretudo pela incontestável plétora das suas criações.
Nessa exploração de ruas e de livros, em busca de traços femininos que documentassem um pouco mais do que a inevitável necessidade do quotidiano, Virginia Woolf percepcionava em imaginação "o peso do mutismo, a acumulação da vida inexprimida". Foi assim que no fim da errância por ruas e bibliotecas, chegou à resposta que lhe queimava os lábios "uma mulher deve ter dinheiro e um quarto que seja seu", para poder criar obras de arte, o que, na fórmula de Virginia Woolf, remetia para a escrita de ficção, ficção não no sentido do romance ou da história inventada simplesmente, mas no sentido de toda a relação criativa e voluntária com a realidade, toda e qualquer tentativa subjectiva de a interpretar, penetrar, transformar e recriar. "Eis o que permanece depois de desaparecida a espuma dos dias; aquilo que permanece dos tempos passados, dos nossos amores, dos nossos ódios.. O mundo aparece então na sua nudez, uma vida mais intensa é-lhe insuflada", escrevia ela, e dirigindo-se às mulheres prosseguia : "Já que vos convido a ganharem a vida e a terem um quarto vosso, convido-vos a viver a presença da realidade", essa realidade capaz de metamorfose, mais intensa e rica de ensinamentos.
Neste apelo, que há mais de setenta anos lançava às mulheres, nem por um momento Virginia Woolf se perguntava se as mulheres experimentavam verdadeiramente a necessidade de criarem obras de arte, ou se essa necessidade não era mais do que a expressão de uma moda, o produto de uma época. Julgava a escritora que a aptidão criativa e artística - aquilo que chamamos criatividade - era bem partilhada entre os dois sexos, tal como o bem senso cartesiano. E coube-lhe constatar que séculos de pobreza e de constrangimentos sociais tinham tido tal sucesso na repressão da aptidão criativa das mulheres que a maior parte delas tinham acabado por acreditar que tal aptidão não existia, e reprimido por inconveniente, se não mesmo perversa, tal necessidade - talvez subtilmente despertada - de conferir uma forma nova e subjectiva à realidade; então, por autopunição, não recorriam às suas capacidades; cozinhavam, plantavam, recolhiam, coziam, aleitavam, criavam e enterravam as suas crianças com mais ardor e cada vez mais mudas, e recomeçavam sempre; cozinhando, limpando a casa de alto a baixo, aprovisionando celeiros, reflectindo longamente antes de gastarem um tostão, correndo de aqui para ali ao chamamento do homem, pondo-se sempre e para sempre ao seu serviço, até desaparecerem sem ruído, imperceptivelmente, da realidade que as dominava.
Assim são as coisas, constatava Virginia Woolf. Uma mulher que no século XVI fosse particularmente dotada de nascença - imaginemos que William Shakespeare tinha uma irmã tão genial como ele - enlouqueceria, escreve ela "matar-se-ia ou terminaria os seus dias numa cabana solitária fora da aldeia", banida e expulsa, morreria de fome e não criaria certamente a grande obra de arte.
Woolf estava persuadida que as mulheres deviam a sua evolução criativa a um fenómeno concreto ocorrido no fim do século XVIII : podiam ganhar dinheiro escrevendo: "O dinheiro arrasta as honras, aquilo que foi tido durante tanto tempo como fútil que já não tem retribuição. Sem dúvida, ainda podemos ver com derrisão esses seres (...) mas já não é possível ignorar que lhes pagam pelos seus escritos." Considera essa mudança do fim do século XVIII como mais significativa e importante que "todas as cruzadas e outras guerras das Duas Rosas". E se ela pudesse reescrever a história, consagraria mais atenção ao facto de as mulheres das classes médias se dedicarem mais à escrita que a todas as guerras.
"A vida é para os dois sexos - e vejo-os passar à minha frente, na rua, lado a lado - uma luta incessante, dolorosa e difícil", escrevia Virginia Woolf depois de ter explorado ruas e lugares em busca de uma resposta à questão "Que condições são indispensáveis à criação de obras de arte ?". Essa luta, continua ela, exige uma "coragem inabalável" e mais o quê ? "Confiança em si", responde ela; coragem e confiança em si como aguilhão e substância da criatividade feminina, afim de que as mulheres participem de maneira mais eficaz, mais inventiva e segundo o seu coração, na metamorfose da realidade.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Largar



A perda repentina e inesperada de alguém que amamos, provoca uma dor complicada de dissolver.

É um soco no estômago que sufoca a garganta, derrete-se nos olhos e faz questionar o sentido e a razão.

Todas as mágoas, todas as desilusões, frustrações, arrependimentos e, acima de tudo, raivas, ódios e rancores carregam um peso difícil de aliviar. 
Há que largar lastro para hoje ser-se mais leve e estar mais apto a receber o que o Tempo e a Vida nos trazem.

Não deixem de amar hoje, como se fosse o último dia.

O que interessa é agora.
Ontem já foi e amanhã ainda não é.



segunda-feira, 6 de junho de 2016

MAIS UMA CRÓNICA SOBRE COISÍSSIMA NENHUMA


Tudo começou em algum lugar, nem podia ser de outra maneira. Escrever é um acto de generosidade na medida em que quem o faz normalmente não foi obrigado a fazê-lo. Entende que deve traduzir em palavras uma história, um estado de alma e dá-lo aos outros. Mas a actividade da escrita é talvez das mais ingratas que existem na medida em que é quase tão antiga como a Humanidade, o que torna tudo muito mais difícil no que toca à originalidade. Diz-se que já tudo foi escrito, que já tudo foi feito no que à Literatura diz respeito. Está tudo na Bíblia, nas tragédias gregas e na obra de Shakespeare. Daí para cá tudo o que se puder fazer está limitado a variações acerca destes três colossos da memória humana. Convém portanto, se não ler exaustivamente, pelo menos ter uma ideia do que se trata antes de se embarcar na aventura da escrita. No tempo da informação exaustiva em que a ignorância é uma questão de escolha o que acontece é que é precisamente a ignorância que triunfa sobre tudo o resto. Vá-se lá saber porquê…
 Ando há que tempos a “engonhar” um post sobre um dos mais importantes realizadores do século passado (Ettore Scola) mas falta-me a coragem. Há tanto para dizer que dava para escrever pelo menos três livros sobre o assunto. Tantos filmes, tantos momentos altos de uma carreira extraordinária, tantos tratados acerca da condição humana. Uma tragédia de miséria e desgraça de duas horas e meia onde não conseguimos parar de rir, décadas de história contadas sem palavras num espaço de um salão de baile onde se sucedem as modas, o encontro improvável de uma dona de casa e um vizinho homossexual numa Roma deserta onde todos estão numa manifestação que comemora a visita de Hitler à Itália de Mussolini, ou a fuga de um grupo de cortesãos da fúria revolucionária de 1789 em Paris. Tanta informação, tantas questões, tanto motivo para reflectir. Ainda hoje ao fim de muitos anos fico assustado ante a enormidade e o génio. Invento pretextos para adiar, dedico-me a tarefas secundárias, deixo passar o tempo. Com o romance que estou a escrever passa-se o mesmo. Um turbilhão de sentimentos e emoções, um caudal de coisas que quero dizer mas que não se pode despejar de qualquer maneira. Porque há regras para a comunicação, há padrões para as narrativas, porque uma grande parte dos leitores não tem a minha idade nem a minha vivência. No fundo porque o objectivo é bater à porta daquele edifício a que chamam a Linguagem Universal e pedir que me deixem dar uma espreitadela, que me deixem estar só cinco minutos no átrio da casa e respirar. Que pelo menos um dos meus livros consiga saltar do “Cemitério dos Livros Esquecidos” para uma arrecadação dessa enorme casa. E assusto-me outra vez como naquelas tardes em que corria para casa todo esmurrado à espera da água oxigenada, do penso e dos lanches da minha avó. E continuo a andar às voltas, em avanços e recuos, preocupado com o assalto à Língua Portuguesa, sempre fascinado com a ideia de Portugal e com o que os grandes, os clássicos fizeram antes de mim. Por vezes deslumbrado com o que consigo fazer, outras vezes desesperado por me obrigar a despejar esta força para fora. Escrever é também o mesmo que não rebentar por dentro, facto várias vezes comprovado ao longo dos anos. O bem-estar que dá a finalização de um texto nas condições mínimas que tinha sido pensado. A dor de não escrever que se aloja dentro da alma e vai inchando quase até nos sufocar. Porque antes de tudo, serei sempre aquele que se assusta antes de se deslumbrar para se assustar outra vez. Aquele que nunca está satisfeito para pontualmente se poder satisfazer. E no fim sei que acabarei por arrancar e correr até ao fim, terminarei a tarefa. A forma como ela ficar será aquela que tiver que acontecer. Melhor ou pior. Nessa altura o susto e o deslumbramento ficam congelados para dar lugar apenas à acção. O que for, será. Nada a fazer, nada a acrescentar. O mundo é um lugar demasiado grande, as pessoas demasiado complexas, a vida demasiado cruel. Escrevo porque não sei nada sobre eles…continuo a escrever porque nunca os conseguirei perceber. E é nessa entrega sem retorno, nessa tarefa sem êxito, nessa obrigação sem castigo que torno útil o tempo de que disponho para cá andar, que dou sentido ao absurdo que me envolve, que bato timidamente à porta desse palácio encantado e gigantesco onde a maioria dos seres se encontra e convive sem nunca terem sido apresentados.


Artur