quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

POEMA

Já quase não existo
no que escrevo
talvez nem mesmo
no que deixo
por escrever


Quem existe assim
(tão renitente)
não precisa de viver

Aqui está mais um poema fantástico do Carlos Lopes, "surripiado" à má fila do I blog your pardon.

Ornamenta #148


sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ornamenta #144




OS OUTROS (conclusão)

Alfredo Costa, ao anunciar a composição do grupo que havia de ir esperar João Franco à Rua Alexandre Herculano, falou no empregado da casa de vinhos, ao Castelo, e em duas praças da Guarda Fiscal dos Olivais. Quanto ao primeiro, que eu fixara na retina como meão de estatura, magro, vibrátil, de breve lanugem no buço, deparou-se-me, no meu processo de rectificação, baixo, atarracado, pesadão, patilhas, maneiras e palavras de quem representa um papel aprendido de cor. Fiquei na persuasão de que estava perante um impostor. O verdadeiro teria cavidamente imergido na noite e daí, porventura nunca mais saiu. Os louros, que poderia reivindicar depois de 5 de Outubro, não o seduziram, talvez porque lhe repugnasse o falso ouropel ou não fosse por lá o Diabo, que as arma, convertê-lo, alguma vez, em coroa de espinhos. A sua intervenção, estrita como fora, e as condições em que se dera permitiram-lhe manter o incógnito em vida e “per omnia saecula”. Mas fosse o que eu imaginara ou a balofa personagem que me apareceu e de princípio me desconcentrou, para o caso é o mesmo. Eram figurantes que tinham jogado de porta, na tragédia, os “Faquins” do antigo teatro francês.
Os outros dois, que se não sabe por que espécie de carga de água Costa foi recrutar aos Olivais, um deles, como fica dito, José Nunes, está identificado. Ninguém iria desentocá-lo, mesmo ninguém pensaria nele se não viesse ao proscénio, coitado, calçando um coturno que se não ajusta ao seu pé. Como vimos, jogara também de porta de par com o moço do Castelo.
Ao contrário do que se pode presumir das palavras de Costa, nunca na vida fora guarda fiscal. Mas, na qualidade de habitante dos Olivais, mantinha comércio assíduo com as praças desse posto, como o próprio escreve na “Bomba Explosiva”, pág.94 “….sempre que ia aos Olivais levar ou buscar material de qualquer encomenda, aproveitava o tempo para falar aos vários soldados da guarda fiscal, com que contava para a revolução. Alguns deles já se tinham comprometido comigo em 28 de Janeiro de 1908”
Na estampa denominada “Alguns dos revolucionários onde se encontra o grupo de mineiros”, colecção de retratos, nada menos de 13, em que figuram em medalhão fardas militares, “lavalliéres”, colarinhos de enforcar segundo a moda, ao meio em losango está representado de face José Nunes. Ele é o centro da constelação. Todos se acham individuados, ao fundo da estampa, pelos seus nomes.
Páginas adiante, vem outra estampa na mesmíssima disposição, com a figura central, também em losango, revestindo o uniforme da Guarda Fiscal. Traz este título: “Alguns dos revolucionários com quem José Nunes mais de perto tratou”. O que está retratado em losango, lugar de realce, correspondente na estampa anteriormente citada a José Nunes, chama-se Adelino Marques. Porque ocupa, ele também, aquele lugar de centro planetário? Evidenciou-se em quê e quando? A “Bomba Explosiva” seria omissa de todo se na colaboração que deu para ali o estudante militar de engenharia José dos Santos Viegas não lhe fizesse esta interferência ao celebrar o Nunes. “ Conhecemo-lo há muito como revolucionário […] já fazendo propaganda aqui nos Olivais na Guarda Fiscal, onde encontrou um dedicado adepto, o guarda Adelino…”
A publicação do livro é posterior ao 5 de Outubro, todavia Adelino Marques não alardeia haver tomado parte em nenhuma algarada revolucionária. Tinha soçobrado no silêncio.
Na estampa de que se fala atrás, “Dois Homens”, da “Bomba Explosiva”, com uma interrogação no meio de três linhas de pontinhos, podia dizer-se quanto a José Nunes: gato escondido rabo de fora, se ele não estivesse a armar à auréola denunciando-se. Pelo seu longo sobretudo, maneira de pôr o chapéu, trangalhadanças, patilhas aparadas resvés com o lóbulo superior da orelha, dá-se logo a matar na figura da esquerda para quem olha. E o segundo dos “Dois Homens”? Bigode retorcido, coco na cabeça, jaquetão cintado traindo o alfaiate barato, coisa de uma mão travessa menos alto que o Nunes? Se, ao primeiro relance, procurássemos identificá-lo nos retratos da “Bomba Explosiva” poderíamos na Est. 1 tomá-lo por Virgílio de Sá e ainda por Armando Octávio Dias; na Est. 2 por vários deles, José da Cruz, Dinis Esteves, Adelino Graça, José Martins Alves e, em ultima análise, atendendo a que a fotografia do que está ao centro no losango foi feita nunca além de 1907 e a dos “Dois Homens” depois do 5 de Outubro de 1910, pode ser candidato à categoria o indivíduo retratado ao centro, em losango, Adelino Marques. (…) Nunca mais se voltara a falar dele, depois dos acontecimentos que se deram à volta do 28 de Janeiro de 1908. Primeira circunstância digna de reparo: porque figura no losango, “pendant”, na colecção, do egotista José Nunes, sol do sistema revolucionário de retratados, quando todos os circunstantes, segundo os depoimentos insertos, exibem títulos superiores ao dele?
Costa tinha referenciado: “são praças que João Franco demitiu e procuram vingar-se” Anteriormente a 3 de Fevereiro de 1908, só houve uma só praça demitida, consoante as pesquisas a que procedi. Essa baixa condiz com o nosso acerto, baseado “a priori” na declaração de Alfredo Costa e no logogrifo da “Bomba Explosiva”. Reza assim o informe fornecido na Guarda Fiscal:
“Adelino Marques teve baixa de serviço por incapacidade física em 2- 1- 908; casou-se em 1907 com Joaquina Luísa Ferreira. Foi alistado em 1902, 14 de Outubro, na Circunscrição do Sul. Nome da lesão: dacriocistite e reumático.”
Seria pois este um dos conjurados do Terreiro do Paço? Se o foi, como parece ficar estabelecido, teria de ser incriminado, por homicídio frustrado na pessoa de João Franco. Se ainda é vivo, pode dormir a sono solto. Já lá vão 54 anos. Prescreveu


Aquilino Ribeiro

"Um Escritor Confessa-se"

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ornamenta #143


OS OUTROS

José Maria Nunes foi um dos homens dos Olivais que estiveram no Terreiro do Paço com Alfredo Costa e Buiça. Livrou-se, porém, de dizer que foi para ali no intuito de esperar João Franco e não o rei. Portanto, como Franco soube fazer gorar a agressão preparada contra ele, José Nunes, do mesmo modo que os outros dois, dado que se abstiveram de tomar parte no atentado contra a Família Real, teriam que responder apenas por homicídio frustrado. Iam para caçar a pacaça e não estiveram dispostos a caçar o leão. Compreensível.
José Maria Nunes, porém, era um fantasista e megalómano e, como tal, não podia contentar-se com o anonimato, embora o seu papel fosse de falseado comparsa. (…)
Numa das saltadas que dei a Portugal durante o meu primeiro desterro de seis anos em Paris, já sob o signo zodiacal do barrete frígio, chamei-o ao Terreiro do Paço. Eu não o conhecia e já me não lembro como se proporcionou entrar em contacto com ele. O meu propósito era esclarecer certos aspectos, para o meu espírito indecisos ou obscuros, respeitantes à localização da tragédia que fora prudente deixar na sombra nos primeiros tempos, bem como a composição do grupo que tomara parte no atentado. O homem lá me traçou a seu jeito, o gráfico do atentado. O descritivo não desconveio do que eu sabia, à parte o seu mais que problemático e decerto exagerado papel.
- Eu estava aqui – e indicou-me um ponto na placa central.
- Fiz o que me mandaram…Tinha o tambor do revólver cheio. Enquanto duraram as balas, disparei…Naquela direcção… - e apontava a arcada. – Lá estão as marcas.
- E depois?
- Depois, quando vi tanta policia, tanta tropa, encarniçadas contra nós, e que o meu holocausto (o termo é dele) de nada valia, tratei de me pôr a salvo.
- E os outros?
- Os outros..? Não sei bem. Julgo que nem chegaram a fazer fogo. Atiraram os revólveres fora e pisgaram-se. (…)
Foi José Nunes como comparsa mais alem do que os outros dois, que ele inculca terem jogado as armas fora e dado às trancas?
Aquilino Ribeiro
“Um Escritor Confessa-se”

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

BUIÇA


(Manuel Buiça)
Conheci Manuel Buiça no café “Gelo”. Manuel Buiça era um dos mais assíduos frequentadores desse café, muito arrumado à margem do Rossio tumultuário, que, não obstante o berrante das fardas, conserva ainda hoje o ar plácido de botequim provincial. Às suas horas, nas meias manhãs preguiçosas de Lisboa, quando, lentas e doces, os senhores burocratas vão pelas ruas abaixo mais brandos que em liteira, ou à noite, depois do jantar, Buiça era certo à mesa branca, na parte que olha para a Rua do Príncipe, um cálice de cognac à frente, a fazer a correspondência ou cavaquear alto com conhecidos ou próximos.
Buiça não era desses que se isolam na turbamulta e precisam da turbamulta para se isolar. O Café significa para ele o cenáculo, a roda de amigos a que levava a sua amizade, a vozearia a que misturava a voz. Tão despótico era nele o instinto de sociabilidade que não sabia enxotar da sua beira indivíduos de má nota e malandrins garantidos. Dentro de si, melancólico ou a cismar, como tantos moinas de café, na avó torta ou em sapatos de defunto, nunca o encontrei, nem tal atitude era compatível com o seu temperamento vincadamente buliçoso e dispersivo. A vida exterior empolgava-o, consubstanciava-se com ele, sem lhe deixar um refolho, um canto reservado em tudo, pensamentos e obras, mais trespassável à vista que o próprio vidro.
Curioso este tipo de português, vindo do Norte, da parte mais resistentemente nacional, celta, suevo que aflorasse na linha longa das gerações, genuíno, inquieto e batalhador, do nateiro da raça. (…)
Buiça era republicano – o que ao tempo, em muitos, significava política da extrema-esquerda – contudo menos por convicção profunda que por “flâmerie” do espírito.
(…) Cavalo rebentio que aparecesse no picadeiro “Gagliardi” domava-o ele. Os seus pulsos finos aguentavam ainda firmes a espada francesa quando no assalto já os outros fraquejavam. Nas praias, mormente em Algés, a dois pulos do “Gelo” não havia braços de nadador que mais longe açoitassem o mar. Tanto a sua mentalidade como a sua cultura literária não eram comuns. Professor no Colégio Moderno, dava a impressão de possuir uma inteligência leste, muito compreensiva, assimilando sem esforço, mas também sem perdurabilidade. (…) Era isto tudo, galante, franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais de uma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral, uma ou outra anomalia medrando a meio de sentimentos que, além de serem puros, pareciam dever ser inibitórios. Assim Buiça, que era pai de família extremosíssimo, se não exacto, consagrava aos filhos uma adoração sem limites, a ponto de, tresnoitado ou embriagado, o que por vezes sucedia, se não poder deitar sem os beijar e se abraçar neles, prezando a esposa, entabulou ainda em vida dela correspondência delico-doce com uma menina de Lisboa. (…)
…ausência completa do sentimento de responsabilidades e miopia no prever as repercussões dum acto. Buiça era argamassado, em grau extremo, das virtudes e falhas da terra portuguesa, num lineamento ora confuso, ora recto, sendo as contradições a sua lógica, como o ar efemeninado a sua maior mentira.

Aquilino Ribeiro

“Um Escritor Confessa-se”

Ornamenta #142


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ornamenta #141


ALFREDO COSTA

(Alfredo Costa)
Condenável por si, pelas leis da vida e as lições da História, condenável ainda pela sequência política, até agora nefasta, do regicídio, não quis tecer um libelo com receio duns, e muito menos uma apologia para agrado de outros. Contei o que sabia e apurei com lisura e respeito absoluto da verdade. O regicídio foi a enfloração lógica de ideias, ódios, revoltas, semeados a trouxe-mouxe por monárquicos e republicanos num solo bárbaro, propício à violência… Que tinha a esperar uma realeza mucilaginosa, atrofienta, caída no hebetismo, sem outras vistas sobre o horizonte do que conservar a pia farta?
O regicídio, em tanto que obra singular, terá de integrar-se no plano de demolição, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espíritos livres e esclarecidos, desde a época liberal até aos nossos dias. Os protagonistas foram o braço armado dessa propaganda. Apoucá-los ou engrandecê-los seria cometimento gratuito, que não cabe em cérebro com dois dedos de caco. Mas porque o regicídio em sua nebulosidade, em sua paradoxal concepção e feito, quedaria inexplicável sem o conhecimento psicológico das dramatis personnae, eu experimentei pintá-las sob todas as reservas do meu fraco entender.
Pessoas que menos se parecessem: Manuel Buiça e Alfredo Costa. Aquele era do Norte; este do Sul. Um godo, o outro árabe.
Foi no corrente de 1906 que Raul Pires apresentou no “Gelo” um rapaz de 28 anos, alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, a que ninguém ligou importância. (…) Com ele, ao contrário de Buiça, não há que ter o historiador grandes canseiras para fixá-lo. A sua figura moral inscreve-se num quadriculado de traços largos, quase rectilíneos. Era um homem de uma só peça, crente até ao iluminismo interior, instruído o que basta para reconhecer que a vida se decompõe numa tábua mais ou menos certa de problemas, de resultado dependente da vontade. (…) Alfredo Costa foi o homem, atirado para a cidade da aldeia alentejana, e que, dobrando-se sobre si, batido dos baldões, «se encontrou a marchar». Atrás, todo o atavismo da alma popular, opressões, tristeza, fatalismo, mansuetude de cordeiro. Pela frente o torvelinho do século, luz e sombras, ideias confusas, ideias desordenadas, ideias; a vida com as facetas todas; o homem em todos os planos. (…) Em 1903 em Estremoz, fez intensa propaganda republicana e daí começou a colaborar nos jornais de classe da capital, sempre homem de fé e dedicação sem limites. Foi caixeiro-viajante e presidiu à Associação dos Empregados do Comércio. (…) Encetou ainda a publicação em fascículos, distribuídos ao domicílio, do romance de índole popular: “A Filha do Jardineiro” (*) (…) A República, ou melhor, o mundo dos Idealistas, em boa verdade, não pode enjeitar este nome embora morresse em fereza. Depende das vicissitudes de uma obra o galardão que a posteridade reserva aos precursores. (…)
(António José de Almeida. Presidente da República de 1919 a 1923)


Planeada a revolução pelo risco e indústria de António José de Almeida que, para o civil, tinha como lugar-tenente Luz de Almeida, Costa “arranchava” no grupo que devia assaltar o Palácio Real, depois, por uma modificação de estratégia, o Quartel dos Lóios. Na noite de 28 de Janeiro, data fixada para o movimento que abortou desastradamente no elevador da Biblioteca, a hoste, grossa de vinte homens, tinha à sua testa Costa e Buiça e como um dos soldados de linha Humberto de Avelar, artista de raça, frágil e dedicado como uma mulher, experimentou ainda o fogo da Guarda, nas imediações da Rua de S. Bárbara, quando aguardava que um morteiro desse o sinal da revolução
A partir dessa manhã confusa e atarantada, o governo de Franco empreendeu a lógica e inevitável obra repressiva. Foram presos os membros do Directório, as personagens em evidência do partido, e daí passou-se à caça dos revolucionários subalternos. A desordem e o pavor lavraram então nas fileiras republicanas, que antes pareciam firmes e ordenadas. O Tejo e os quintais foram o coval de infinitas cestadas de bombas. (…) Fugiram para terras nunca vistas nem sonhadas ou sumiram-se pelo chão os chefes e subchefes do movimento. Franco triunfava em toda a linha.
No meio do pânico geral, Alfredo Costa era um dos conspiradores que não arredava do seu posto. Deserta e melancólica quedava a pequena sala traseira do “Gelo”, sempre tão frequentada e turbulenta. Estavam presos ou escondiam-se os intelectuais, Ferreira da Silva, Granger, Duque, arredios e avessos, aliás, às grandes aventuras cruentas. À parte Buiça, que abanava imperterritamente, os outros passavam de esfuziote, rápidos e silenciosos.
Fechados os Centros, suspensos os jornais, prisões à cunha, pelas ruas viam-se passar rebanhos inteiros de homens, enquadrados por guardas a cavalo. (…) Costa continuava livremente pela cidade, congregando os elementos que, dispersos, sobreexistiam ainda, teimando sempre, mensageiro intrépido e expeditivo daqueles que acaçapados nas luras guardavam uma réstia de esperança. Com Machado Santos e Soares Andrea se encontrou algumas vezes, a recato do sigilo de que cercavam seu asilo.
- Se algum “bufo” me deita a unha – dizia Costa palpando a “browning” na algibeira da calça – queimo-lhe os miolos.
Em pleno desânimo geral, Costa insistia sempre para que se tentasse o lance. Onde paravam os dois terços da força pública com que António José de Almeida contava para derribar a Monarquia? Onde parava toda a vasta e poderosa teia de revolucionários civis que deviam, escalonoados contra cada um dos bastiões do Poder, iniciar o ataque?
O movimento parecia travado com mão de ferro; Franco continuava a varrer o terreno implacavelmente.

(*) Escrito pelo próprio Aquilino

Aquilino Ribeiro

“Um Escritor Confessa-se”

Pgs.274 e seguintes.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A PACAÇA E O LEÃO


(João Franco, o chefe do Governo)
Pelo que me contou depois Humberto Avelar, pelo que eu sabia, pelo que apurei do relato dissonante das gazetas e o que eu rectifiquei in loco com um dos conjurados e um falso regicida, que para o caso também conta como havendo elaborado do sucesso a síntese mais verosímil que convinha ao seu papel, os factos deviam ter-se passado deste modo: Debalde o grupo fora esperar João Franco à Rua Alexandre Herculano. O ditador, sabendo-se em perigo e acossado de um lugar para o outro, entrou mais uma vez a negacear os perseguidores. Não lhe era difícil, dispondo dos órgãos de informação e torcendo-lhes as voltas. Os seus vários domicílios permitiam-lhe este jogo do Escondidinho.
…… (Buiça) e Alfredo Costa passaram ao Rossio, a grande sala revolucionária, e aí deliberaram ir esperar Franco ao Terreiro do Paço, à hora do regresso da Família Real. Para Costa já fazia parte do programa, dada a hipótese do golpe falhar na rua para onde Franco anunciara ter mudado da Rua da Emenda. Isoladamente, os homens dos Olivais atrás, e par a par, se dirigiram com boa meia hora de antecedência para o Terreiro do Paço. Escalonando-se pela praça, Alfredo Costa tomou a posição do fundo, próximo do embarcadoiro, os três ficaram a deambular ao meio, da estátua de D. José para o centro da ala ocidental contra as arcadas, como ociosos, e Buiça postou-se na fímbria norte, não bem sobre o lancil, mas perto ou encostado ao candeeiro, na linha do prolongamento da Rua do Ouro, na atitude de indivíduo que esperava outro, conforme entrevista marcada.
Constava do seu plano aguardarem ali João Franco, como caminho necessário para o cais……Não, sorrateiramente tinha ele entrado pelo porta do Arsenal e daí transitado ao embarcadoiro, palmilhando de relâmpago o curto espaço a descoberto que dá aceso pelo sul ao Pavilhão da Marinha.
….Apareceu, depois de grandes delongas, que mais agravaram a hiperestesia dos conjurados, em daumont , a Família Real, os reis lado a lado, os príncipes em frente. Seguiu-se o carro com os camaristas, em vez do de D.Afonso, que se atrasara. E, no seu ritmo, o dos áulicos, e toda a cauda cometária de palacianos. E João Franco? João Franco sumira-se novamente como um trasgo.
Desesperado com o malogro, mas ainda retido por um resto de expectativa, a que é vulgar atribuir-se a escrúpulo de consciência, Alfredo Costa chegou de dois passos ao pé de Domingos Ribeiro:
- Corra lá acima a dizer ao Buiça que o filho de um cão tornou a escapar-nos…
…. Mas, ou porque o esporeasse a impaciência ou no seu espírito se desse por inútil continuar de atalaia, largou a grandes passadas pelo terreiro da praça acima, coisa de dois a três metros à banda do lancil. E dum pulo estava ao pé do Buiça, engoiado no gabão, no jeito inteiriço de homem muito crispado por uma ideia fixa, e repetiu a mensagem:
- O filho de um cão escapou-se!....... E agora?... Se liquidássemos a cambada?
….Buiça desencostando-se do candeeiro, respondeu:
- Vamos a eles!
(O rei D. Carlos)

Fez um gesto a indicar a posição que ia tomar. Costa soprou para os três:
- Defendam-nos a retaguarda!
Já Buiça de um salto, se plantava em diagonal para a carruagem, a um terço da largura da rua, hirto como um atirador; sacudia para trás as abas do capote e, metendo a carabina à cara, visava. Alfredo Costa, por sua vez, caía sobre a carruagem que passava na frente. Foi mais rápido do que se conta. Crepitou o tiroteio das armas de fogo e no primeiro minuto os assaltantes ficaram donos do terreno. Mas o oficial que galopava à estribeira, tenente Francisco Figueira, recobrando-se, precipitou à espadeirada sobre Buiça. A polícia, perante a sua acometida, ressarciu-se também e rompeu a disparar a torto e a direito sobre os vultos que se lhe afigurou fazerem parte da conjura. Dois agentes, quando Alfredo Costa cambaleava, lançaram-lhe a mão, e ao passo que o arrastavam para a esquadra, iam disparando os revólveres sobre ele, refeitos em sem domínio. Buiça continuava a estrebuchar com a carabina, acutilado pelo oficial às ordens, e tentando desenvencilhar-se dum soldado que se lhe viera meter entre as pernas.
D. Carlos tinha caído cerce como um roble, debaixo por certo das balas de Buiça, e igualmente o Príncipe alvejado à queima-roupa por Costa. Então a carruagem real largou à desfilada, seguida pelas outras, tomadas de terror.
……….Observei a Humberto:
- É estranho que dois homens de são entendimento tivessem variado assim de chofre num caso de tanta magnitude. Quem acredita que não procedessem segundo longa e madura premeditação?
- Psicologicamente compreendo muito bem que assim houvesse ocorrido. Costa e Buiça tinham largado de casa, como os caçadores em África, numa batida à pacaça. Não descobriram a pacaça e rompeu-lhes o leão………Seja como for, o rei foi vítima das manobras e andanças tortuosas do seu primeiro-ministro. Se este calcorreasse pelos trilhos comuns, nunca o rei pateava. Pateava ele…………………………………
- Suponhamos. Mas eu continuo na minha: a morte do rei foi contraproducente.
Ver-se-ia. Em boa lógica devia ser assim. Mas a lógica era um relógio desacertado para quem quisesse ler a hora política da nossa terra. Por exemplo, compreendia-se que, depois da morte de D. Carlos João Franco teimasse em querer ficar à testa do governo? Pois não aspirava a outra coisa. (…) Esperava que a rainha (…) o mantivesse. Mas não, sacudiu-o e sacudiu-o com enjoada repulsa. Tanto ela como a rainha-mãe, ante os dois cadáveres reais, estendidos no chão do Arsenal sobre uma enxerga, haviam soltado a voz de exprobação: - Veja a sua obra!
(Princípe D. Luis Filipe)

“Expulsaram-me do poder” – assim se exprimia em correspondência para o visconde de Cortegaça.

Aquilino Ribeiro

“Um Escritor Confessa-se”

Bertrand Editora, 2008

Pgs.268 e seguintes

ENTRE HISTÓRIAS E ESQUINAS



Há muitos anos atrás, as nossas noites de adolescentes distribuíam-se por cervejarias, tascas e bares mais sofisticados de acordo com as posses de cada um no momento. E nalguns desses espaços fomos aos poucos conhecendo a fauna da noite, gente de várias origens e, normalmente com uma histórias no bolso ao fim do segundo jarro de vinho. Entre muitas que soube ouvir com meu entusiasmo iniciático, hoje gostava de partilhar esta com vocês, que às vezes fazem o favor de me ler. Não me lembro do nome dele, nem da idade, mas sei que era já bem veterano quando o conheci na noite de C. de Ourique. E também sei a sua história porque me fez o favor de a contar mais do que uma vez. Não se tinha passado com ele mas com o pai dele e trazia todas as porções do mistério e aventura que eu então tanto apreciava (e se calhar, ainda aprecio). Antes de continuar quero esclarecer que nestas palavras não há verdades absolutas, versões à prova de bala, nem reinterpretações da História. Há depoimentos de pessoas, contemporâneas dos acontecimentos, e indesculpáveis lacunas nos manuais de História. Pelo que não esclarecem, ou pelo que explicam mal.
Jurava-me este interlocutor a pé juntos que o pai havia sido testemunha privilegiada de uma reunião conspiratória que esteve na origem do “Regicídio”.Uma reunião entre elementos da Carbonária (anarquistas e republicanos, todos maçons) nas traseiras de um restaurante na Rua Silva Carvalho. Tratava-se de um rapazinho empregado do restaurante de uma tia (o pai do tal interlocutor) que assistiu a quase tudo. Viu por exemplo um chapéu de coco cheio de pequenos papéis com a identidade dos presentes, de onde foram retirados os nomes dos que iriam compor o comando operacional. Garantia que um dos presentes era o Aquilino Ribeiro. Enquanto se escondeu atrás de uma porta não se lembrava de ter ouvido uma única vez o nome do Rei. O alvo era João Franco (o Primeiro Ministro da altura). Porque é que os acontecimentos tomaram outro rumo, não sabia dizer. Também não sabia se o papel com o nome de Aquilino foi retirado de dentro do chapéu de coco.
A história ficou comigo durante anos, com mais dúvidas do que certezas, mais hipóteses do que factos. A escassa informação disponível nos manuais de História também não ajudava.
(Gravura sobre o Regicídio)

Foi o “Regicídio” um acto tresloucado ou uma operação bem planeada convertida em desfecho suicida? Era o Rei o alvo daquela operação? Quantos elementos compunham o comando? Dois? Três? Mais? As dúvidas foram ficando até que tropecei nas memórias de Aquilino Ribeiro. Muitos acusaram-no de revolucionário radical, chegando alguns a envolvê-lo nos planos do “Regicídio”. Em parte porque há um episódio em que o seu quarto explode enquanto ele e mais dois companheiros manipulavam explosivos. Enquanto os outros morrem nessa explosão, Aquilino sobrevive e é preso. À segunda tentativa, consegue evadir-se da prisão. Semanas depois dá-se o Regicídio. No ano da Graça de 1908, dia 1 de Fevereiro.
Ao escrever as suas memórias sob o título “Um Escritor Confessa-se”, Aquilino Ribeiro traz alguma luz sobre o que realmente aconteceu, aproveitando a posição privilegiada de ter sido próximo de alguns dos protagonistas que fizeram parte dos acontecimentos.
Descreve-os fugindo ao lugar comum da exaltação romântica ou da condenação abstracta de uma acesso de loucura. Homens como os outros, donos das suas escolhas e das consequências dos seus actos. Nunca negando a sua ligação à Carbonária, o escritor também não afirma ter feito parte do grupo que acaba por assassinar o Rei e o seu primogénito. A sua informação privilegiada vem do facto anteriormente referido, dos seus conhecimentos, tanto de protagonistas como de outros que o informaram em primeira mão.
Aquilino Ribeiro

Reeditado pela Bertrand em 2008, “Um Escritor Confessa-se” é um livro extraordinário publicado pela primeira vez em 1972 com prefácio de José Gomes Ferreira. Nele acompanhamos a vida, as memórias e as confissões da juventude de um dos maiores vultos literários do séc. XX português. Tendo vivido numa época de enormes mudanças, Aquilino trocou o seu papel de contemporâneo passivo por uma atitude de protagonista da realidade enterrando-se até aos ossos na vida e no desenho das palavras com que tão sabiamente a conseguiu ilustrar. Seguem-se duas passagens desse livro, sendo a primeira referente aos acontecimentos do dia do Regicídio e a segunda acerca dos seus envolvidos.
Mais do que procurar verdades absolutas de rigor científico inabalável, pretende-se aqui abrir o debate e alargar a reflexão. Pretende-se ampliar conhecimentos sobre acontecimentos importantes, narrados na primeira pessoa.
Artur

Ornamenta #140


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Florença #2


Ornamenta #136


BOA NOITE PARA VOCÊS



Cumprimento as ruas do meu bairro num andamento vagaroso e tranquilo a caminho de casa. No eco dos meus passos ouço memórias que me abordam em cada esquina como conhecidos de longa data. Um bêbado militante que nunca cheguei a saber como se chamava e com quem joguei à bola. Nada do que ele dizia fazia sentido, as suas palavras decifravam uma língua estrangeira que só à noite se tornava perceptível. A cantar o fado perdido no frio e no escuro, as letras chegavam-me aos ouvidos em madrugadas de estudo. Treinador estrangeiro de futebol durante o dia, fadista português à noite. Ou a senhora que passeava com vários cães presos por cordéis a fazer de trelas. Cumprimenta-me com o mesmo olhar doce e triste de sempre e conta-me mais uma lengalenga, como aquela que começava…”À morte não escapa ninguém…” E despedia-se a agitar sacos de plástico, cordéis que faziam de trelas e três ou quatro rafeiros que lhe obedeciam calados e tristes como os seus olhos: “Em estrangeiro, good night”. Mesmo depois de saber que morreu num incêndio da barraca onde vivia, a sua voz cumprimenta-me…”Em estrangeiro, good night” Boa noite para si também. E para o fadista, e para aquele gato que me apareceu debaixo de um carro saudando-me com um miado de dor e uma pata no ar. Deixei-o em casa do “Fininho” que era veterinário, e arribou.
Noites de Verão a jogar frisbee no átrio da igreja, partidas intermináveis de futebol, carícias clandestinas de namoradas vizinhas, ou amigas…carícias que sabiam a praias de areias douradas.
O passo torna-se lento e os ombros carregam o peso de todas as derrotas numa puta de uma vida que nunca fez sentido. A vocês me encosto a fumar um charro melancólico perante o vosso ar compreensivo, esquinas da minha memória. A vocês confesso o meu cansaço e vontade de acabar, vozes saídas de sombras, amores-perfeitos feitos de memória, passos recordados, esquinas do tempo. Tem muita piada ser como o D. Quixote quando se tem força, paciência, capacidade para resistir. Mas até ele deu em maluco para que a consciência adormecesse e não percebesse o que se estava a passar. As suas derrotas pelos moinhos de vento, a boçalidade de um escudeiro espertalhão, o amor inexistente da Dulcineia. Mas aqui, não. A consciência enterra-se como uma lâmina na carne do Ser e, lentamente, vai asfixiando a vontade, limitando a força, enfraquecendo o coração. Quando morrer, é para estas ruas que vou querer deambular. Para cumprimentar os que ficam, contar-lhes lengalengas, observar-lhes as bebedeiras. E despedir-me no fim com uma máxima qualquer, uma frase de circunstância. “À morte não escapa ninguém…em estrangeiro, good night
Artur

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

IN GOD'S COUNTRY



Desert sky
Dream beneath the desert sky
The rivers run, but soon run dry
We need new dreams tonight

Desert rose
Dreamed I saw a desert rose
Dress torn in ribbons and in bows
Like a siren she calls to me

Sleep comes like a drug in God's country
Sad eyes, crooked crosses in God's country

Set me alight
We'll punch a hole right through the night
Everyday the dreamers die
To see what's on the other side

She is liberty
And she comes to rescue me
Hope, faith, her vanity
The greatest gift is gold

Sleep comes like a drug in God's country
Sad eyes, crooked crosses in God's country

Naked flame
She stands with a naked flame
I stand with the sons of Cain
Burned by the fire of love
Burned by the fire of love

U2

Ornamenta #135