segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

MELHORES DIAS VIRÃO...OU NÃO

                                                             FELIZ ANO NOVO

sábado, 29 de dezembro de 2012

PAULO ROCHA


                                                           1935 - 2012

sábado, 22 de dezembro de 2012

BOAS FESTAS

Este blog deseja a todos os seus amigos, conhecidos, leitores, seguidores, copiadores, corredores, correntes de ar, fantasmas (aqueles palhaços que se fartam de passar aqui e nunca deixam uma palavra, uma mensagem mínima sobre o nosso trabalho), maçadores ( aqueles que estão sempre escondidos a ver quando é que um de nós comete um erro para virem logo corrigir), aos silenciosos que se sentiriam profundamente violados nos seus egos para deixar um elogio, aos que numa noite de insónias vieram aqui parar e rapidamente perceberam que se enganaram no estúdio, à dona Celeste que trata de deixar as instalações acessíveis antes de entrarmos de manhã, ao senhor Joaquim do café, aos modelos das fotografias da Sofia, aos arquivos da memória do Arnaldo, ao estranho mundo do João que tanto gostamos de conhecer, ao Asterix que era para ter colaborado connosco mas acabou por ir para o Totenham à última da hora, ao Franz Kafka, esse ganda maluco, ao Fernando Pessoa, ao Dostoievsky que nos despejou a garrafeira e partiu sem deixar um textozinho à malta, às nossas famílias e amigos "porque sim" e "sempre", ao Brasil por ser o nosso cliente nº 1 em utentes, aos cinco anos que já levamos disto, ao azar de termos nascido em Portugal e não noutro sítio muito mais agradável (como o Cambodja, por exemplo), ao Pasolini, ao Fellini e ao Jean- Luc Goddard, essa Santíssima Trindade do Cinema sem a qual tudo seria completamente diferente, ao Platão, ao Sócrates, ao Albert Camus ( nosso grande amigo e colaborador), à Vida, à Morte, à Liberdade e à Cultura, desejamos a todos um excelente Natal e que o ano que aí vem não leve com uma providência cautelar dos Maias ou com um pedaço de bolo rei do Presidente da República, o que acaba por ir dar ao mesmo. Onde é que ia???

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A MINHA VIDA NÃO VALE NADA e 12 PSICOPATAS

Dói-me ver essas legiões dos meus compatriotas à porta dos Centros de Emprego, esperando dia após dia, desilusão após desilusão, por algo que nunca chegará. Mas, digo para mim próprio, que lhes resta senão manterem semi-viva, semi-moribunda, essa esperança ? Não sabem eles que fazem parte das massas cuja insegurança foi planeada a sangue frio; ignoram que a única coisa que incita aqueles poucos que têm trabalho para oferecer é poderem fazê-lo a preços de saldos, a jorna de miséria e com a promessa de despedir facil e rapidamente. Mesmo esses, a quem um emprego miserável e sem segurança parecerá um maná divino, mesmo esses "felizardos" não conseguirão sair da miséria, nem alterar o seu destino: um longo cortejo de humilhações, privações, perigos, insegurança. Umas tantas vidas abreviadas. O lucro,claro, lucrará. Dir-me-ão: não é melhor ums tantos empregos mal pagos do que empregos nenhuns ? A quem assim pensa poderia responder: além da busca penosa de empregos que não existem, além da falta de recursos, além da perda (ou da ameaça da perda) de um tecto, além do tempo passado a ser recusado, além do desprezo dos outros e da depreciação de si próprio, além do vazio de um futuro aterrador, além da degradação física causada pela penúria, além da miséria moral e ética que atinge os longamente desesperados, além da fragilização dos casais e das famílias, tantas vezes destruídas - se, além de tudo isso as pessoas também se sentem encurraladas numa insegurança ainda maior, desta vez tecnicamente prevista por todos esses espíritos brilhantes e personalidades assombrosas que decidem dos nossos destinos, e se não têm ajuda, ou quando muito, contam com uma ajuda calculada para se insuficiente, pelo menos ainda mais insuficiente, e se mesmo essa ajuda lhes é representada como caritativa, ou como um favorzinho que se presta e não como um direito adquirido e duramente conquistado, se ainda assim estão dispostas a aceitarem, suportarem ou sujeitarem-se a qualquer forma de emprego, a qualquer preço, em quaisquer condições, então são entidades pressionáveis e manipuláveis: só resta esperar que assim continuem. Enquanto forem assim, enquanto permaneceram nesse estado de autofagia, serão tolerados. São aqueles que foram enfraquecidos, moralmente aniquilados, reduzidos a zero, fisicamente esmagados. São todos aqueles que, noutra situação, poderiam constituir um perigo para a "coesão social" e para a "ordem estabelecida". Como se existissem ordem e coesão no meio do caos, como se esses valores fossem aqueles que é preciso privilegiar, em abstracto, no plano dos princípios, sem qualquer ligação com a realidade. Como se aos alienados ainda interessassem as belas formulações teóricas que sustentam os regimes. Desses repudiados, desses excluídos lançados no vazio social, espera-se contudo que se portem bem, que sejam ordeiros, que mantenham a coesão, que se conduzam como bons cidadãos entregues a uma vida cívica toda feita de deveres e direitos, ao mesmo tempo que lhes é retirada qualquer possibilidade de cumprir qualquer dever, e os seus direitos, já muito restringidos, são deliberadamente ultrajados, menosprezados e ridicularizados pela nova elite que assaltou o poder, vinda do nada, sem saber nem conhecer nada, a não ser a proteção do Estado que agora vituperam e à sombra do qual prosperaram. Os outros ? Que tristeza, que decepção vê-los infringir os códigos de bem viver, as boas maneiras, as regras de bom comportamento dos que, numa situação de autoridade, os marginalizam, tratam por tu, empurram e desprezam ! Que punhalada no coração não os ver aderir às boas maneiras de uma sociedade que se manifesta tão exuberantemente alérgica à sua presença e os ajuda a verem-se como que fora do jogo (os jornais de hoje relatam o caso de um gerente bancário que atendeu na rua uma pessoa que pretendia levantar um cheque e que se tinha dirigido à sucursal com as roupas de trabalho e que, crime execrando, "parecia um romeno"...)
Fazem-me lembrar uma personagem do filme "Amarcord" de Federico Fellini, um velho fascista inválido, lamentando-se da incompreensão dos cidadãos em relação à bondade das medidas do governo, ao mesmo tempo que manda despejar uma garrafa de óleo de rícino pelas goelas de um pobre pai de família que tinha feito um comentário inocente sobre a situação social. Que diria Fellini, que era um excelente observador da sociedade e dos seus meandros,embora às vezes gostasse de se esconder por detrás dos seus números circenses, se tivesse conhecido a sociedade portuguesa em 2012 ?
Que diria do governo de uma nação que envida esforços tremendos para colocar um parte do país contra a outra, declarada vergonhosamente favorecida (funcionários públicos de base, agentes públicos em geral), reformados contra trabalhadores no activo, etc., sem tomar em conta os que de facto o são, a não ser para os designar como os "empreendedores", as "forças vivas", os "inovadores", os "exportadores" e outras baboseiras quejandas ? E considerar essa gente como a única a ousar correr riscos, como aventureiros impacientes por correr perigos incessantes e infinitos... sempre ansiosos por pôr em jogo...não se sabe bem o quê, enquanto os nababos condutores de metropolitano, os novos-ricos empregados de correio, os operários multimilionários, as mulheres da limpeza magnatas prosperam escandalosamente, em total segurança ! Os "empreendedores", assim denominados por se supor serem detentores e criadores de empregos, mas que, mesmo subvencionados, exonerados de impostos, mimados e levados ao colo para esse fim, não só não criam nenhum ou quase nenhum (o desemprego continua a aumentar diariamente), como, mesmo recebendo benefícios (em parte graças às vantagens mencionadas), dependem do Estado a torto e a direito e se dão ao supremo luxo de continuarem a distribuír dividendos pelos acionistas e a aumentarem escandalosamente o seu ordenado. Os tais empreendedores e inovadores, antigamente deseignados de forma bastante estúpida como "patrões", que relegam músicos, pintores, escritores, investigadores científicos e outros saltimbancos para o papel de pesos mortos, sem contar com o resto dos humanos, todos convidados a erguer para o brilho de tais constelações humildes olhares de vermes ofuscados por tanto brilho. Quanto aos usurpadores que se refastelam sem vergonha na garantia de um emprego, a sua imunidade ao pânico resultante da precariedade, da fragilidade, do desaparecimento desses mesmos empregos representa um perigo escandaloso. E, pior ainda, retardam a asfixia do mercado de trabalho. Ora, asfixia e pânico são o sustento da economia na sua exuberante modernidade, e os melhores garantes da "coesão social". A nossa única consolação, que nos faz rebentar de orgulho, são as exportações exuberantes, o progresso vertiginoso da balança de pagamentos, que nos garante um lugar no pódio, entre os abrigos de cartão dos vagabundos, as curvas ascendentes do desemprego e as descendentes do consumo, mas que, paradoxalmente não parecem ter influência sobre a vida dos casebres. Nem sobre a das cidades.
Esta era a minha mensagem de Natal, sabendo embora que o tom e a matéria não fazem parte daquilo que tipicamente constitui as mensagens de Natal. Faltam-me as boas maneiras, o "pathos" da ordem e da coesão, falta-me sobretudo o bom gosto para falar de renas, neve, bondade, solidariedade, presentes pela chaminé e outros motivos próprios da quadra. Sobra-me, talvez, a audácia de um sentimento agreste, ingrato, de um rigor intratável e recusando qualquer excepção - o respeito pelo meu semelhante. E, sobretudo, falta-me paciência para aguentar a resignação com que os meus compatriotas aceitam viver sem conhecimento de causa, o modo como aceitam pacificamente as análises económicas e políticas que lhes passam ao lado e não lhes respeitam a inteligência e que mencionam apenas como elementos ameaçadores, que obrigam a medidas cruéis, e mais cruéis ainda se não forem suportadas com docilidade. Análises ou relatórios peremptórios, segundo os quais a modernidade, reservada às esferas dirigentes, só se aplica à economia de mercado, e só funciona na mão dos seus iluminados decisores.

UM FIO DE LIBERDADE

 

                                         One generation goes,

                                         another generation comes

                                         And the Sun also rises…

 

                                                     Ernest Hemingway

 

 

   Lisboa, vinte anos depois as guitarras voltaram a subir ao céu. No Campo Pequeno. Casa cheia para acolher um dos mais originais e virtuosos projectos musicais resultante das décadas de 80 e 90. “Resistência”, sinónimo de perseverança, dignidade, Liberdade.

As guitarras voltaram a fazer-se ouvir junto com as múltiplas vozes que recuperaram palavras e músicas de vários tempos e lhes juntaram alguns originais. Herdeiros assumidos de José Afonso e de uma corrente libertária que atravessa todos os tempos e envolve todas as gerações, esta geração agora na casa dos 40 a cair para os 50, voltou a apresentar-se perante um público entusiástico de várias idades que não regateou aplausos, que não hesitou em entoar as baladas tocadas, que elevou aos céus esta mensagem de Liberdade e Soberania que provou mais uma vez ser intemporal. Esta geração que quase não tem representantes no parlamento, que só existiu nas estatísticas, esta “marcha de desalinhados” que cedo percebeu o logro onde estava a cair e que não se cansou de o dizer, veio outra vez relembrar as queixas dos derrotados, dos esquecidos, voltou a cantar os hinos dos homens livres. Sonoridades típicas do cancioneiro português, tocadas pelas eternas guitarras da tradição ibérica, palavras desenhando os poemas de uma condição humana que não tem idade mas que sempre sofreu as mesmas consequências, que sempre teve que pagar o preço mais alto por afirmar a Liberdade, esta raça de Et’s reuniu-se na nave do Campo Pequeno para perceber que a vida é uma só e que a luta pela dignidade do ser humano é eterna. Sintonizaram-se tempos, afinaram-se circuitos, acertaram-se sincronias. As lições do passado são as apreensões do presente, os temas antigos continuam actuais. Por isso a tarefa nunca está acabada. A geração que nunca existiu, aquela que não quis “entrar no jogo a perder” voltou para dizer que não muda um milímetro àquilo que sempre disse, que não se desvia nem por um momento da linha que traçou. A geração que não existe, provavelmente amanhã já não estará aqui, mas fica contente porque o seu trabalho terá sempre continuidade, Desprezará a vida enquanto um jogo de simulações e egoísmos, ganâncias e hipocrisias. Nunca fará parte dela. Descende dos “filhos da madrugada” que também não se renderam, de Mário de Sá Carneiro e do seu grito contra toda a conformação ao estado das coisas. Recusa qualquer solução que não seja absoluta para toda a Humanidade, qualquer solução que deixe seja quem for do lado de fora. Canta a utopia como uma das maiores santas desta nova religião que transforma os concertos nas suas missas, nos seus actos de comunhão com a música. A música que liberta e sintoniza, a música herdada desde os tempos mais remotos da tradição trovadoresca. A música, única porta para a Liberdade e a Solidariedade entre os homens. Gerações vêm e vão, mas, como diz Hemingway no princípio desta crónica, “o Sol vai continuar a nascer”. E de facto, assim é, o Sol volta a nascer todos os dias. Essa Luz imensa de Liberdade e comunhão que cada geração constrói em todas as eras com o seu sacrifício e criatividade. Cada geração, cada fio de luz dessa imensidão solar que nunca se apaga. Cada fio de luz que no fundo é apenas um fio de Liberdade. RESISTÊNCIA SEMPRE!!!

 

Artur


sábado, 15 de dezembro de 2012

UM FILME BELO


TABU

 

Miguel Gomes

 

Portugal, 2012

 

 

Antes de mais nada, TABU é um filme belo. Desde a sua concepção formal até ao modelo narrativo utilizado, passando pela atmosfera deixada, pelo rasto das suas imagens, o filme consegue surpreender, sobressaltar, preencher as lacunas mais exigentes do espectador mais treinado. Dividido em duas partes, começa por nos introduzir a um bairro cinzento de Lisboa onde vive Aurora, uma octogenária temperamental e excêntrica acompanhada pela criada cabo-verdiana, Santa. Aurora tem o vício do jogo e, sempre que pode, gasta tudo o que tem no casino. Fala de uma filha que vive no Canadá mas que pouco ou nada quer saber dela. Além de Santa, a sua única amiga é Pilar, a vizinha, mulher de meia-idade profundamente católica envolvida em movimentos sociais. Aurora faz várias vezes referência a um episódio trágico protagonizado por si nos tempos da juventude em África mas nunca revela os seus contornos. Á beira da morte manda chamar um amigo, Gian Luca Ventura, um idoso estacionado num lar e que, dizem, já não regula muito bem da cabeça. É depois do funeral de Aurora que Gian Luca contará o terrível segredo a que Aurora se referia. O filme salta então para a segunda parte, para uma África antiga habitada por brancos ricos, loucos e errantes que se encaixam naquela magnífica paisagem, embora nunca dela venham a fazer parte. Aurora era filha de fazendeiros e casada com um estrangeiro. Gian Luca, um aventureiro sem poiso fixo que acaba por ir lá parar, formar uma banda e apaixonar-se por ela.

E é na sequência desta paixão, deste amor impossível que a tragédia se acabará por precipitar, ainda que nunca da maneira mais previsível. O desfecho fatal terminará com um morto (um amigo deles que os surpreende juntos), uma criança (a filha de Aurora e do marido) e o fim de um época no continente africano.

Para além da fotografia a preto e branco, a rara beleza deste filme prende-se com pequenos pormenores que, em conjunto, concorrem para uma atmosfera idílica de nostalgia, paixão e tragédia. Em primeiro lugar, o som. Na segunda parte é utilizado em exclusivo o OFF, ou seja, tudo nos é relatado pela voz do narrador enquanto os actores se confrontam, falam entre si, mas sem serem ouvidos. A única excepção vai para a entrada das músicas, breves pausas narrativas que aliviam o peso do passado. Depois temos a ausência total de referências ao espaço e ao tempo. Sabemos vagamente que estamos em África mas desconhecemos por completo em que região (talvez Moçambique por uma matrícula de carro e um volante à direita); sabemos que estamos no passado, mas, a única certeza que temos é a de estar na segunda metade do séc. XX porque a guerra colonial está a dar os primeiros passos. De certo temos as personagens, os seus sonhos e sentimentos, as suas angústias e as suas dúvidas. A história delas percorre esse vago conceito espácio-temporal ignorando-o quase por completo. Um circuito fechado que se basta a si próprio para existir, ser digno de memória, indiferente ao “onde” e ao “quando”. Quando Aurora e Gian Luca se refugiam numa cabana próximo da fronteira ( com que país, nunca saberemos) , acabam por ser surpreendidos por um amigo que os tenta dissuadir da sua loucura. Ele e Gian Luca pegam-se à pancada, ela ergue um revólver e dispara. Logo de imediato entra em trabalho de parto. Desesperado Gian Luca manda chamar o marido. Este chega e leva consigo Aurora, a filha recém-nascida e o cadáver do amigo. Gian Luca fica para trás. Nunca mais voltará a estar com ela, mesmo após a morte do marido. Aurora decide pagar pelo seu crime afastando para sempre o grande amor da sua vida. A morte daquele branco acaba por ser misteriosamente reivindicada por um grupo de libertação.

Quadro final e alegoria absoluta: no jipe seguem Aurora, o marido e a filha na cabine. Atrás, na caixa, o corpo do amigo assassinado por ela. No rádio o movimento de libertação apropria-se da execução de um branco, acusando-o de andar a fazer espionagem das suas actividades e movimentações. Portugal em África. Uma história de amor e morte, errância, abandono, uma nova vida que começa e um sem fim de equívocos e situações mal esclarecidas.

Premiado em vários certames internacionais (Berlim, Paris, Las Palmas, Zadar (Croácia) e Gant (Bélgica), TABU concorre ao título do melhor filme deste ano em qualquer categoria. Um filme original, surpreendente, extraordinário. Um filme BELO…

 

Artur

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

DO EVANGELHO



Dos quatro testemunhos dados da vida de Jesus Cristo, Pasolini escolheu - e essa escolha não foi certamente fruto do acaso - o Evangelho mais sistemático, mais doutrinal, mais austero, aquele que ignora a pequena anedota e coloca em relevo o combate contra as autoridades do país dotadas então de poder político : os escribas, os príncipes dos sacerdotes, os fariseus. É a todos e não somente aos cristãos que Pasolini dá esta lição : é preciso reler Mateus como ele mesmo o releu, sem tomar fôlego, para aí discernir a batalha mais heróica e exemplar que um profeta levou a cabo.
Depois de ter desistido de filmar na Palestina (por razões que explico no texto sobre "Sopraluoghi In Palestina"), Pasolini decidiu filmar na Calábria, nas terras secas e áridas em que uma povoação em ruínas na borda de um declive faz as vezes de Jerusalém. E porque não o faria ? Não é a paisagem mediterrânica muito semelhante nos diversos países ? E o rosto da pobreza, o único que aqui importa, não é o mesmo em toda a parte e em toda a parte semelhante a si mesmo ? Terá mudado alguma coisa em 2000 anos ? O mundo de aqui fervilha de crianças, de doentes, de pequenos burros; homens pobres vagueiam exibindo belas fasces ingénuas; e o drama renasce da terra, o Evangelho vai recomeçar. Faço notar que Pasolini não se detém num realismo que poderia ser simultaneamente simbólico e popular; o estilo da obra é complexo; o décor genericamente teatral. A recordação surge através de obras pictóricas, Giotto por exemplo. Os movimentos das multidões, os motins, a presença dos soldados e, sobretudo, a movimentação da câmara frente aos rostos dos príncipes sacerdotais evocam por vezes Dreyer. Mas o estilo que predomina é sobretudo o do drama sagrado, como o cinema o concebe ainda hoje. Um Cristo de rosto bizantino percorre apressadamente vastas paisagens com os seus discípulos, a quem ministra ensinamentos sem descanso; a ternura e a compaixão afloram raramente. Muito contidas, emergem mesmo assim nas admiráveis cenas do início ou quando a câmara se atarda sobre Maria, envelhecida e desdentada, seguindo Cristo no caminho do Calvário; aflora uma vez ou duas no sorriso de Cristo no meio das crianças. Sinto em Pasolini a vontade de respeitar no homem a transcendência que os crentes vêem em Jesus e que ele mesmo afirma. Esta vontade não passa sem uma certa frieza e sem uma busca demasiado formal do artifício, que nos mostra um Mestre autoritário, comandando homens e elementos naturais, um Pantocrator sublime, sem vida privada, sem afectos, sem humor e sem aquela facilidade soberana de se tornar homem aí mesmo, onde aprendemos a reconhecer o rosto de Deus.
Pasolini escolhe mostrar com insistência as violências exercidas pelos reis e poderosos sobre os pobres e os profetas (massacre dos Inocentes, assassinato de João Baptista na prisão, as brutalidades da Crucifixão) e retrata um Cristo combatente, aguerrido, sem concessões ao sentimentalismo e à piedade. Creio saber porque o fez: o grande texto de Mateus foi longo tempo desmantelado, emasculado, desvitalizado, tornado num conjunto de vozes untuosas e porosas, destinado a adormecer as crianças e a acalmar os moribundos. Através do cinema, Pasolini devolveu-lhe a impaciência, a actualidade, o sentido revolucionário.

O filme chama-se "Il Vangelo Secondo Matteo / O Evangelho Segundo S. Mateus". Foi realizado por Pier Paolo Pasolini em 1963.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

APATIA

Folheio ao acaso um dos meus dicionários filosóficos e descubro o conceito que melhor descreve o meu estado de espírito: "apatheia", uma palavra grega que designa o facto de não se sofrer uma afecção, de estar intacto, indemne de todo o sentimento. Fecho o dicionário e procuro lembrar-me de antigas e esquecidas lições: para os estóicos, o afecto é sempre irracional, violento e contra-natura. A apatia é o estádio em que o sábio se livra de sarilhos; não se trata, segundo Séneca, de não sentir nada, mas de não ser conduzido pelas paixões. A ética estóica do distanciamento tem associada uma estética da privação do movimento que Winckelmann desenvolve em "Reflexões sobre as imitações das obras gregas em pintura e em escultura", mostrando-se sensível à "nobre simplicidade e grandeza serena das estátuas gregas". As páginas que Hegel consagrou à estatuária grega considerada como o estádio de desenvolvimento "clássico" da história da arte, associa a impressão de calma procurada pelas esculturas à esfera do divino. Não sou um estóico, nem um sábio, nem um esteta. Aliás, o meu credo político e estético é uma canção da Adriana Calcanhotto chamada "Senhas" e que reza assim : "Eu não gosto do bom gosto / eu não gosto do bom senso / eu não gosto dos bons modos / não gosto (...) Eu aguento até os modernos / e seus segundos cadernos / eu aguento até os caretas / e suas verdades perfeitas / o que eu não gosto é do bom gosto (...) / eu aguento até os estetas / eu aplaudo rebeldias / eu respeito tiranias / e compreendo piedades / eu não condeno mentiras / eu não condeno vaidades / o que eu não gosto é do bom gosto". Portanto, a apatia que sinto deriva de um imenso tédio, de uma nostalgia difusa, da ligeira naúsea que a vida me provoca e que queria transformar numa estética da distância (apatheia) que me permitisse abstrair-me das atribulações humanas. Não das minhas, que essas posso bem com elas, mas as desta legião de desesperados que todos os dias me entra pela casa dentro exibindo a sua humanidade imediata e violenta, óbvia nas suas necessidades não satisfeitas; os humilhados e ofendidos que vão alastrando como uma epidemia incontrolável; os despojados e a sua irresistível tendência para a resignação; os banqueiros e o cancro moral que os rói ; os economistas a pataco perorando sobre défices, balanças comerciais, dívida pública e afins; os gajos de fatinho com a bandeira nacional pregada na lapela; etíopes e abissínios; azeiteiros, merceeiros, boys e etc.
Erijo a apatia como uma categoria da imobilidade que situa a personagem de ficção que também sou no quadro de uma transcendência: a ausência do movimento corresponde a um hieratismo que é a expressão de um poder carismático. A apatia produz sentido e simula a indiferença. Vou a correr ver "Apocalypse Now": Marlon Brando encarna o misterioso Coronel Kurtz, uma espécie de buda avaro de movimentos, cujas meditações metafísicas oferecem um contraste agudo com a crueldade das suas acções. Onde estão agora as estátuas gregas ? Onde pára a sua serena beleza e onde se quedou a sua serena grandeza ?

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O MÁRTIR IRLANDÊS


      MICHAEL COLLINS



Neil Jordan



Irlanda, Reino Unido, EUA


É dentro de grande polémica que a Europa recebe MICHAEL COLLINS nos idos de 90 do passado século. Inteligente, absoluto e problemático, o filme aborda uma das figuras centrais na secular história de dor, sangue e luta pela independência do povo irlandês contra a administração e ocupação britânica. Passada no primeiro quartel do século XX, a época de Michael Collins carrega consigo o fardo suplementar de uma situação desagradável, aparentemente sem solução à vista. Tratando-se de um conflito regional deliberadamente pouco divulgado e pouco debatido nos “media” europeus, o tema podia ser pouco estimulante para os potenciais espectadores. Daí que o cineasta Neil Jordan ao escrever o argumento no início da década de 80 tenha encontrado uma solução que, embora ilustrando o conflito, não deixa de cativar audiências. Para tal concorrem por um lado as imagens de Chris Menges, e por outro o ritmo alucinante da acção.

Com tantas explosões, tiros de metralhadora e execuções, corremos o risco de nos julgarmos por momentos na Chicago dos anos 20 em vez de em Dublin alguns anos antes. O contraponto da violência é feito pelo triângulo amoroso Collins (Liam Neeson), Harry Boland (Adam Quinn) e Kitty Kiernan (Julia Roberts) que, tendo ou não acontecido, será o único espaço do filme onde é permitido respirar.

Michael Collins foi um dos primeiros guerrilheiros da luta pela independência da Irlanda que, após o fracasso do “levantamento da Páscoa” em 1916, concluiu que qualquer luta convencional com os ingleses estaria condenada ao fracasso. Por isso fundou os “Irish Volunteers”, um grupo de cidadãos comuns que acabaram por promover emboscadas e outro tipo de acções armadas bem sucedidas contra aqueles que ocupavam o seu território desde o séc. XII. O bombardeamento dos irlandeses em luta pela liberdade em 1916 e as subsequentes execuções da maioria dos cabecilhas do movimento são suficientemente esclarecedoras das noções de respeito e obediência exigidas pela coroa britânica. Dois anos depois, um dos soldados do movimento (Collins) é libertado, iniciando-se a partir desse momento uma actividade política renovada pelo auxílio de discursos inflamados. A célebre frase “by whatever means necessary” abre o caminho da luta armada, uma nova fase de acção mais dura e violenta, embrionária do futuro exército republicano de libertação (IRA). A violência entrará então em espiral, dos dois lados do conflito, não poupando ninguém pelo caminho.

Se por um lado podemos afirmar que foi dado o grito de guerra aos ingleses, por outro abriram-se também as primeiras grandes divisões entre irlandeses. Facto que ainda hoje enfraquece as pretensões mais radicais de emancipação. Como se, quando se conseguiu lidar com o passado, dificilmente se poderá projectar o futuro a uma só voz. Elemento que jogou sempre a favor das pretensões britânicas. Problema bastante complicado a que Neil Jordan nem tenta responder. Collins irá receber a Londres a independência da Irlanda mas a totalidade desse acto nunca será negociada. Os ingleses mantêm o Ulster sob a sua administração. Mártir da independência, Collins acabará por ser sacrificado na luta entre irlandeses que se segue. Os que exigem a independência total e absoluta e os que defendem começar a nova república. Os políticos manobram na sombra e conseguem livrar-se dos ícones revolucionários, sacrificando-os às incompreensões da História. A fórmula normal de qualquer revolução. Na parábola do triângulo amoroso entre Collins, Kitty e Harry vamos encontrar os dois lados amantes da mesma Irlanda, divididos pela exclusividade desse amor que reclamam. A Irlanda continuará viva, enquanto que as facções acabaram por se devorar entre si. Collins é o grande mártir da independência da Irlanda morto às mãos dos seus compatriotas, em vez de às da potência ocupante contra a qual sempre se bateu. Mais uma demonstração da criatividade e maturidade irlandesas que abordam temas tão sensíveis da sua consciência colectiva sem demagogias patrióticas nem maniqueísmos dispensáveis. A luta de um povo faz-se de contradições, erros, fatalidades. E é o conjunto de todos esses elementos, conjugado com a consciência que se tem deles, que permite construír um futuro mais sólido e amadurecido.

Leão de Ouro para o melhor filme e melhor actor no Festival de Veneza erm 1996, MICHAEL COLLINS é sem dúvida uma narrativa apaixonante sobre o amor e a guerra, a dignidade e a teimosia.



Artur

sábado, 8 de dezembro de 2012

JIM MORRISON

                                                      8 - Dezembro - 1943

                                                      3 - Julho - 1971

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

PASOLINI EM JERUSALÉM






Em 1963, Pier Paolo Pasolini realizou o filme "Il Vangelo Secondo Matteo" (O Evangelho Segundo S. Mateus). O Ofício Católico Para o Cinema reconheceu as qualidades espirituais da obra, a magistral interpretação do Evangelho e o modo como o filme fora tocado pela Graça e pela Verdade da figura de Jesus Cristo, tendo-lhe atribuído o prémio Fipresci no Festival de Veneza desse ano. Pasolini era comunista, ateu e homossexual. Na cadeira papal do Vaticano sentava-se o Bom Papa João XXIII.
Em 1998, durante um estágio na Cinemateca Francesa, tive a oportunidade de ver um filme chamado "Supraluoghi In Palestina" .Passei este tempo todo a procurar em vão esse filme, de tal modo ele me tocou e impressionou. Parecia quase impossível voltar a vê-lo e voltar a deixar-me impressionar pelo poder dessas imagens. Eis senão quando, na semana passada e na sequência de uma troca de e-mails com um colega do Museo Nazionale del Cinema de Turim, o filme veio parar à minha caixa de correio, sem que eu o esperasse. Deve ter passado este tempo à minha procura e eu, procurando por ele, sem o achar. É talvez um milagre dos tempos modernos.
E o que vem a ser tão raro e precioso objecto ? Trata-se de um documentário realizado por Pasolini na Palestina, previamente à rodagem de "Il Vangelo Secondo Matteo", destinado a escolher os locais onde o filme seria filmado e a procurar os vestígios aptos a traduzirem no presente - na linguagem da realidade - a poesia do texto de Mateus. A grande qualidade da obra reside na fascinante exposição do próprio Pasolini, a encenação do seu trabalho e as múltiplas interrogações que vão surgindo, à medida que o cineasta escassa ou nulamente encontra aquilo que procura. Esse desnudamento de Pasolini compagina-se com a visível evolução espiritual do cineasta que, acompanhado pelo teólogo Andrea Carraro, retraça o suposto percurso de Cristo na época da sua predicação: os espaços, as paisagens que descobre estão quase todas contaminadas pela modernidade e já nada têm de "bíblico", um sentimento experimentado ao longo da viagem e expresso ao longo do filme. Assim, o documentário parece organizar-se em torno de uma linha de partilha constantemente redesenhada por Pasolini : de um lado o mundo antigo, pobre e tradicional, representado pela sociedade árabe; do outro o mundo moderno, rico e industrial, assumido pela sociedade israelita.
Mas, o que mais me tocou e impressionou no filme foi o modo como Pasolini procura as ruínas no seio do presente, procurando nessas ruínas aquilo que pode conter e exprimir a profunda poética do texto do evangelista. Esta vontade de articular passado e presente sem apelar à reconstituição histórica, mas apoiando-se numa memória dos lugares e dos corpos inscreve Pasolini num movimento de redefinição da nossa relação com a História que ultrapassa largamente o cinema. Contudo, esse mesmo movimento está todo contido no próprio cinema, neste filme, na nossa relação com o texto e, como firmemente creio, liga o processo às teses de Walter Benjamin. Ou seja, encontro a argumentação do filósofo alemão através do olhar do cineasta italiano e quando volto ao "Vangelo Secondo Matteo" reconheço que as ruínas de Matera traduzem no presente a poética e a espiritualidade do escritor hebraico.
A sequência mais impressionante do filme resume-se assim: Pasolini e a sua equipa deixam as margens do lago Tiberíades e dirigem-se a Nazaré. Na estrada, param junto a um campo onde trabalha uma rapariga. Vêmo-la pela primeira vez no interior de um plano geral que coloca em evidência a paisagem, depois o operador de câmara aproxima-se. De pé, sobre uma carroça puxada por dois burros, a criança olha por um instante a câmara que a segue, depois desliga-se dela. Esta cena inspira a Pasolini o comentário: "Uma paisagem com 2000, 3000, 5000 anos. Os burros da Bíblia, a criança da Bíblia. Esse sub-proletariado árabe é a única coisa que permanece verdadeiramente antiga, arcaica...". O cineasta não encontra a criança, reconhece-a. Ela é a criança da Bíblia, viu Jesus Cristo, falou-lhe, provavelmente tocou-lhe. Aliás, Pasolini tem consciência da sacralidade da jovem; aproxima-se para lhe acariciar a face e, no último momento, recua evitando o contacto: tornou-se impossível tocar a "criança da Bíblia" (como tocar num espectro ?), como se tornou impossível continuar a filmá-la.
Conheço poucos filmes tão espirituais (refiro-me aos dois, ou seja, a "Il Vangelo Secondo Matteo" e a "Supraluoghi In Palestina"), tão capazes de superar a distância temporal, física e metafísica que nos separa de Cristo, tão capacitados para criar uma memória afectiva e efectiva do tempo dos milagres, da palavra e da espada daquele que "veio ressuscitar os vivos", como dizia Teilhard de Chardin.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

"Um país seguro e soberano..."




Nestes tempos aflitos e aflitivos, apetece-me deixar aqui estas imagens e estes sons, sabendo que também eu, há uma eternidade, poderia ter dito que o meu esforço e o meu sacrifício estavam a contribuir para um país seguro e soberano...

A LÂMINA DO TEMPO



 
Olho-te nos olhos em frente ao espelho e vejo tantos dias, tantas histórias que poderias contar. As vezes que foste águia sobre as montanhas, golfinho nas ondas do mar. Olho-te nos olhos com a cara branca cheia de sabão antes de fazer a barba e lembro-me de tantos, de tanta gente que vestiu o mesmo bibe que eu na escola, de tanta gente que ouviu a última canção a seguir às aulas, que bebeu umas cervejas. Olho-te nos olhos e vejo que estás a descer na curva do tempo a caminho do nada que aqui te depositou. A lâmina acaricia-te as bochechas como o tempo te foi raspando quem eras, quem querias ser e nunca foste. Tornaste-te uma coisa que não pensavas, somaste idades que nunca pensaste alcançar e agora olhas-me no espelho e a única coisa que se mantém inalterável são os olhos, os olhos que te olham tranquilos e sem medo, os olhos que deixaram de ser inquietos em permanente estado de alerta. Houve aqueles miúdos que já morreram antes do tempo, aqueles guerreiros profissionais na tropa, os colegas, os amigos, os concertos e as noites eternas. Tantas histórias quiseste contar, as histórias deles todos, a memória, a marca do rasto deixado por breves existências. Porque foi por eles, é para eles que as contas, para lhes dizer que os lembras e que ainda os amas por mais fios de lâmina que o tempo vá raspando sobre ti. Não fizeste tudo o que querias, a tua história não aconteceu como tinhas previsto…mas foi assim que acabou por acontecer. E agora a caminho da morte não tens medo nem raiva, nem nenhuma espécie de ódio por ninguém. Quanto mais curto o caminho mais serenas são as margens, mais tranquila é a paisagem, mais harmoniosa se desenrola a morfologia do terreno. Nada a lamentar, portanto, quando te olho nos olhos em frente ao espelho. O amor dos outros ajudou-te nesta caminhada, amparou o teu sofrimento e frustração. A família, os amigos, pérolas em estado bruto que na maior parte das vezes não se deixam ver, não dão nas vistas, mas estão lá. Olho-te nos olhos em frente ao espelho enquanto ouço uma guitarra melancólica em noite quente de Verão. Uma guitarra que toca a melodia mais triste e mais bonita que as cordas podem vibrar. E um pé na estrada à boleia a caminho de algum lugar. Não sabes para onde vais, só tens a certeza que nunca voltarás atrás, ao que eras, ao que fazias, aos passos que não se voltam a dar. A caminho da morte… a caminho da morte acordamos todos os dias, fazemos tudo em função dela mesmo que não tenhamos consciência, tentamos ser absolutos, magníficos, implacáveis. E no fim não passamos de pardais a tentar planar no meio de um temporal a caminho de casa. Olho-te nos olhos em frente ao espelho e não lamento não ter sido quem queria ser porque fui o que agora sou e não posso mudar nada. Levo na mala as memórias, as histórias e os sorrisos de quem amei, de quem me amou porque vou precisar deles quando nos voltarmos a encontrar. Olho-te nos olhos e encorajo-te a levar contigo só o que puderes carregar. A deixar o ódio e o rancor, a tristeza e a dor. E também, partes da alegria. Não precisas de nada disto uma vez alcançada a serenidade. Só precisas de passar a água na cara, limpar o sabão e continuar. Continuar com um passo mais lento, um olhar mais tranquilo e sem medo, um saber acumulado que a frustração e a tristeza ajudaram a erguer. Depois de uma certa idade as vertigens são como as mulheres. Antes, perante o abismo a vontade era saltar, agora a vertigem do salto é uma amiga de longa data a quem perguntamos pelos filhos, com quem conversamos sem baixar o nível do olhar, uma amiga cuja companhia nos conforta, cuja gargalhada nos faz rir. Agora não há necessidade de saltar, não há necessidade de provar nada. Já foi tudo inventado inclusive a tua vida, não há espaço para mais invenções. Há o fio de lâmina, o fio do tempo que continua a raspar-te a cara, a raspar-te os dias naturalmente. Há as histórias, haverá sempre. São a única maneira de perceber o tempo de hoje, de como é que se chegou aqui, de porque é que ainda se está a olhar para o espelho a tentar ler o olhar do outro. Há as histórias de outros tempos e lugares, de outras gentes, memórias que é preciso registar, deixar o rasto, fazer a barba e continuar…

 

Artur

 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A CIDADE SEM LÁGRIMAS



A noite vai escorrendo entre as sombras e as luzes da cidade, arrepiada de frio, molhada nas poças que os carros vão espalhando ao acaso. Um homem sentado no café olha lá para fora depois de um café duplo e um folhado seco que lhe serviram de jantar. Agarra no telefone e ensaia uma mensagem mas arrepende-se de imediato e volta a olhar através da vitrina. Uma mulher arruma o pano da louça numa cozinha iluminada por uma luz fraca. O filho saiu para a faculdade e a casa ficou vazia, silenciosa. Senta-se na sala indiferente à televisão, pega num livro, lê duas frases e põe-no de lado. Um sem abrigo procura um lugar seco e abrigado para poder passar a noite, levando debaixo do braço um molho de cartões que lhe servirão de cama. Parece que pensa por vezes, mas não pensa nada, não espera nada, caminha apenas em busca de um lugar para passar a noite. O homem do café brinca distraído com o isqueiro, puxa a gola do casaco para cima antes de enfrentar a rua. Outra mulher fixa-se na internet, atenta a novidades, a frases novas que possa comentar.
Amanhã será…qualquer coisa. Qualquer coisa que se escapa entre sombras e luzes de uma noite que amanhece. Amanhã será mais um dia a caminho de lado nenhum. Os sonhos morreram espalhados no vazio pelas rodas da vida de todos os dias. O sonhos foram ontem quando tudo era possível, na idade em que era permitido sonhar. O homem do café, a mulher que acabou de arrumar a cozinha, o sem abrigo, a mulher da internet, já todos foram rostos, já foram corpos cheios de energia e esperança. Estiveram todos juntos numa noite como a de hoje, indiferentes ao frio. Foram actores numa pequena peça teatral, num pequeno filme onde se ouvia música que parecia vinda directamente do paraíso. Foram amantes insaciáveis em noites sem cansaço, criadores de sonhos e de esperança. Jantaram entusiasmados mal tendo tempo para se ouvir no meio da algazarra de estudantes. Hoje limitam-se a observar a cidade com o olhar vazio, esvaziados de ambições. Umas vezes por escolha própria, outras por escolha do tempo, ou da sobrevivência. Caíram e levantaram-se muitas vezes, caíram e levantaram-se vezes demais. Agora empurram os corpos em busca de uma noite, de um sono redentor que os liberte desta cidade sem nome. Não esperam nada, não querem nada, e por mais lágrimas que imaginem já não as conseguem produzir. Esqueceram-se como era chorar. Esqueceram quase tudo. Agora vivem indiferentes, empurrados pela lógica dos dias a caminho de nada.

A cidade vai escorrendo a noite por entre sombras e luzes fugidias, permanente, indiferente, implacável. Os homens e as mulheres que nela habitam vão-se arrastando a caminho de mais um dia. A cidade não lhes pertence. Só a solidão é deles e as lágrimas que querem chorar, não choram porque se esqueceram de como se faz.

 

Artur

sábado, 24 de novembro de 2012

ENTRE LENDAS E NARRATIVAS

                                                                     (*)

Ao Coronel Farinha Tavares
A vida militar é composta por longas páginas de medo e solidão, coragem e sacrifício. Ao se entregar à carreira das armas o indivíduo está a abdicar de uma série de componentes habituais da vida civil que nunca mais voltará a recuperar. Digamos, de uma forma geral, que a maior perda será a da conjuntura doméstica por troca com um colectivo permanente e omnipresente. Afastado da família, dos amigos, dos seus livros, da intimidade do seu sono, o indivíduo passará a dividir toda a sua realidade com outros indivíduos adquirindo nessa partilha uma camaradagem e uma solidariedade que nunca mais esquecerá ao longo da vida.Em cenário de guerra, a Vida e a Morte passarão a fazer parte da ementa diária. Num colégio interno dirigido por militares o ambiente não será tão radical embora as semelhanças sejam abundantes. Ninguém está em guerra mas o sono divide-se numa camarata para mais de 60 tipos, o duche diário é também um acto colectivo, o afastamento dos familiares, dos amigos, do espaço doméstico, essas são as principais semelhanças. A diferença é que neste caso ainda não somos homens e vamos de encontro a esta realidade com 10 anos. Aprendendo a lidar com o medo e com a solidão desde muito cedo, entre alunos e militares fica criado o espaço propício à criação narrativa. As histórias circulam com pontas soltas, recuperam partes de lenda, inventam heróis ou paspalhos ao sabor das simpatias. Em suma, as histórias são um dos elementos fundamentais da vida de homens solitários habituados a conviver com o medo. Ou, dizendo de outro modo, os guerreiros são feitos de medo, coragem, solidão, vida, morte e...de histórias.

Hoje lembrei-me de um professor mítico que tive por mais do que uma vez, militar, antigo aluno do colégio, e que leccionava juntamente com um irmão dele. Por alunos mais velhos vim a saber que as suas alcunhas (elemento fundamental indentificativo destes ambientes) eram o PV 1 e o PV2, alcunhas essas que nunca cheguei a perceber se já vinham do seu tempo de alunos ou se teriam sido colocadas no tempo de professores. E quanto ao PV, a doutrina dividia-se. Havia quem garantisse tratar-se da designação de um modelo de avião antigo, enquanto que outros, de forma mais prosaica, atribuíam as iniciais a "Pele Vermelha" em homenagem ao mais velho que tinha um rosto permanentemente ruborizado, vermelhinho. O irmão, por herança, levou com a segunda designação. Num jantar com ex-alunos mais novos fiquei a saber que no tempo deles o PV 2 era conhecido pelo "Pôdre", por razões que adiante veremos. E é precisamente do PV 2 que me lembro lindamente, sempre pelas melhores e mais caricatas razões.Tratava-se do coronel Farinha Tavares apesar de nunca o ter visto de uniforme. Deu-nos aulas de geografia e de desenho. No 4º ano (hoje 8º)as nossas salas de aula ficavam num primeiro andar alto na parte traseira dos claustros com vista para o páteo do Desenho. O F.Tavares conseguia fumar cinco e seis cigarros no espaço de 50 minutos. Umas vezes alinhava as beatas na parte da frente da secretária (daí conseguirmos contá-las), outras vezes atirava-as pela janela fora. A seguir aproximava-se da janela e espreitava lá para baixo a ver se não tinha acertado em ninguém. O tabaco era portanto uma parte essencial daquele homem, facto facilmente verificável na estratificação cromática do seu imponente bigode. Nada mais que três camadas a começar, de baixo para cima, amarelo, cinzento e branco. O Farinha Tavares, ou PV2, era indisssociável do cigarro.

Outra característica do Farinha Tavares era a famosa interjeição com que sublinhava o seu discurso. Talvez como elemento auxiliar de memória, ou por uma questão de pontuação, de tanto em tanto tempo a frase famosa era proferida, começando como uma interrogação de chamada à atenção da classe e seguida por um acompanhamento solidário. A frase era : "Hã? Estás a perceber?" Mas este "refrão" sofria mutações ao longo da aula. Passava rapidamente a "Hã? Tás a ceber" e terminava em "Hã tááás a ssser?"  Com vários "s" para realçar a sonoridade sibilina da pronúncia... Autênticas vozes de comando para a ordem unida da marcha dos rios e das cordilheiras, dos oceanos e continentes. É claro que, como no teatro, o estribilho (agora o "soundbyte") pegava e no intervalo era ouvir o eco da frase na clandestinidade do cigarrinho fumado nas casas de banho.

Uma última história do Farinha Tavares tem a ver com um uso comum no colégio. Todos os expedientes eram bons para pôr o professor a contar histórias e atrasar a matéria. Então na qualidade de antigo aluno era muito mais fácil. Bastava perguntar-lhe um ou outro pormenor do tempo dele que havia conversa para a manhã toda. Mas infelizmente com o Farinha Tavares esse capítulo já se tinha esgotado, ou melhor, ele já sabia do "que é que a casa gasta...hã, tááás a ssser?" Até que um dia houve um boateiro de serviço que descobriu que ele tinha estado preso na India. A meio da aula com o barco em andamento, quando a beata acabava de voar janela fora e ele espreitava, a pergunta saltou como se nada fôsse. Apanhado de surpresa o Farinha Tavares não teve tempo de se furtar. "Efectivamente...efectivamente, assim foi, é como dizes,rapaz...tááás a ssser?" Logo a seguir, antes que ele se recompusesse saltou a segunda questão. O cativeiro deveria ter sido uma experiência terrível. O Farinha Tavares fez uma pausa breve como que a recordar-se daqueles 12/14 meses num campo de prisioneiros na India. Depois respondeu quase comovido. "Foi uma tragédia, estive à beira do desespêro, hã? Tás a ssser. Diria mesmo mais: foi uma enorme tragédia. Eu estive prestes a enlouquecer porque estava à beira do colapso...hã? Tás a ssser?" E os nossos olhos cada vez se arregalavam mais. Á nossa frente estava uma lenda viva de uma das páginas mais recentes da nossa história. Ele olhava-nos por trás dos óculos e por cima do bigode que quase tremia e explicava a sua odisseia. "É que de repente eu estava sem mantimentos...isto é, sem tabaco, e então eram dois problemas enormes...Hã, tááás a ssser? Primeiro não tinha tabaco, e segundo, não fazia a mínima ideia como é que havia de comunicar com o indígena que nos guardava para me arranjar cigarros. Foi praticamente uma tragédia. Mas a certa altura, por gestos o indígena finalmente percebeu o que é que se pretendia e então...Hã? Tááás a ssser? O tipo lá foi lá dentro e voltou com uma zurrapa parecida com barbas de milho. Tá claro que me soube como um charuto cubano. Hã? Táááás a ssser? Tal era o estado de carência em que me encontrava. O cativeiro traz-me estas recordações terríveis. Hã? Tááás a ssser?"

O seu à vontade, a sua forma de estar de guerreiro do Império, o seu sentido de humor, a amizade que nos tinha faziam do Coronel Farinha Tavares uma lenda viva que se instalou definitivamente no nosso panteão colectivo. Eu, nunca mais o esqueci. "Hã? Tááás a ssser?"



Artur   (*) Imagens do livro "A Queda da India Portuguesa" - Crónicas da invasão e do cativeiro -. Carlos Alexandre de Morais Ed. Estampa Lisboa, 1995

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

AS MULHERES DE KAFKA



                                                                  Franz Kafka
O registo conhecido do universo feminino na vida de Franz Kafka ajuda-nos a enquadrar numa dimensão mais abrangente paradoxos e grandezas de uma obra singular que acabará por marcar toda a Literatura do século XX. Temos de um lado Milena Jesenska e uma breve relação de quatro dias, e depois Dora Dyamant ,com quem passará os últimos tempos da sua vida.
Kafka nasce e vive a maior parte do tempo da sua vida em Praga, sendo um pequeno judeu burguês, frágil e educado, contemporâneo de duas tradições em decadência.
Por um lado a austríaca, que havia feito de Praga o seu segundo foco espiritual e antiga capital do império. Por outro lado a tradição judaica, ponto de fricção entre um judaísmo ocidentalizado e germanizado, afastado das suas origens rurais e religiosas, e um judaísmo campestre, de idioma yidish, de grandes e profundas riquezas religiosas conservadas com orgulho da miséria material em que frequentemente florescem estes valores. Em "Carta ao Pai" ataca ferozmente a figura masculina que domina a sua infância e adolescência acusando-a de lhe haver mostrado o lado falso e superficial do judaísmo. Nunca foi marxista nem freudiano e a sua versão do judaísmo pouco ou nada tinha de comum com a dos seus correlegionários de 1900. Acima de tudo, Kafka sentia-se profundamente ferido com as explosões do século (I Guerra Mundial, revolução bolchevique na Rússia, miséria do pós-guerra, decadência dos valores), desenvolvendo em paralelo uma intensa necessidade de compreender, amar, redimir... Uma busca angustiosa e sofrida resultante do fracasso da política da ciência e da filosofia do séc. XIX.

Entre o judaismo e o cristianismo houve um fosso que Kafka nunca conseguiu ultrapassar. Esse salto que ficou por dar entre o Antigo e o Novo Testamento, essa timidez ontológica é representada n' "O Castelo". O " agrimensor" nunca chegará a conhecer o conde Westwest e também nunca saberá qual era a missão para que fora chamado, se é que alguém o tinha mandado vir ao castelo. Neste romance, o elemento social e o elemento político não são mais do que estados visíveis do elemento religioso. O que busca o "agrimensor", dentro dos limites do visível, sua única relação com a vida, é uma segurança metafísica. Como qualquer ser humano deseja saber o "porquê" da sua presença e, se fôr possível, conhecer o dono do seu destino. O conde Westwest, debaixo de cuja sombra vive e prospera todo o povo, é pois o inacessível. É o imperador, mas é Deus igualmente. E é também o pai de Kafka. Tanto em "O Castelo" como n' "O Processo", todos os personagens são funcionários típicos da gigantesca máquina burocrática da monarquia austríaca. Os personagens centrais, José K. e K. são cidadãos do império, ambos cristãos como quase todas as personagens de Kafka. Em "O Processo", vamos assistir à morte de um burocrata no meio da  burocracia e dos seus métodos que, desta maneira, se mata a si mesma. O homem que não quer deixar-se conduzir pela fluidez do tempo e da história, limita -se a congelar nos seus hábitos de burocrata. Morrerá como um cão. É o ciclo completo, imperturbável como um silogismo de todo o sistema fechado, condenado por si mesmo, matando os seus, sem se preocupar que estas mortes esboçam no ar da história a silhueta de um suicídio.

O drama de Kafka não é o conflito com o pai, ou melhor, o conflito com o pai é o conflito com Deus (do Antigo Testamento) não havendo aqui lugar para grelhas freudianas limitadoras. Enquanto que associado à figura paterna, para além de um self made man vitorioso, encontram-se os valores da responsabilidade. O que personificava o Pai era a Lei , as limitações impostas pela Família, pela Escola, o Dever, o Trabalho, o Amor. O que assusta Kafka no amor não é o acto em si, muito menos estar ao pé de uma mulher, mas os laços que isso representa enquanto responsabilidade familiar. Tudo o que é limitação o perturba.



"Tudo o que não seja literatura me aborrece e eu detesto, pois distrai-me e faz-me mal, ainda que sejam só imaginações minhas"



Kafka nunca quis ao seu lado uma presença permanente na medida em que a sua vida era a literatura. A maior parte dos escritores procuraram ansiosamente a mulher, não só para a retratar nas suas obras, como para viver com ela uma parte importante das suas vidas. Esta perplexidade permanente entre o literato que se quer isolar e o amante que quer e não quer, que tem medo do matrimónio, ou seja à Lei, ou seja ao Pai, e que transforma os últimos anos de Kafka num verdadeiro inferno de caprichos e aborrecimentos é impressionante. Típico de uma época decadente. É caso para perguntar: Por acaso conheceu Kafka o amor total, a entrega complicada e sem reservas da fusão de corpos e almas?

                                                            Milena Jesenska
Milena Jesenska era uma checa, filha de um professor da Faculdade de Medicina de Praga, casada com um judeu da boémia vienense. Conheceu Kafka porque quis traduzir textos seus para checo. Típica heroína de romances expressionistas, Milena dominou o escritor desde a primeira hora. Vestia como Isadora Duncan, trajes amplos que flutuavam, à maneira antiga, em torno do seu corpo, era de ideias livres, atravessava a nado, de noite, o rio Moldava, passava tardes inteiras nos ateliers dos pintores, tinha relações amorosas com eles, era o modelo de uma nova geração feminina. Tinha vinte anos e Kafka trinta e nove. Passam quatro dias juntos em Viena. Milena cura-o dos medos que o escritor tinha (de si próprio, da angústia que o impedia de se entregar inteiramente no acto de amar; da sua doença, a tuberculose). Dias depois Milena divorcia-se mas não se chegou a juntar com o seu novo amante.

                                                             Dora Dymant
A única mulher com que Kafka convive durante meses é Dora Dymant, que conhece em 1923 e com quem passará os últimos instantes da sua vida no sanatório de Kierling, perto de Viena, onde o escritor virá a morrer a 3 de Julho de 1924 sem se ter casado. Numa carta escrita ao seu grande amigo Max Brod, Kafka confessa que Dora lhe permitiu libertar-se das forças demoníacas que o atormentavam, nos dias em que viveu com ela numa felicidade quase conjugal, referindo-se a uma curta temporada em que alugaram uma casa perto de Berlim em 1923. Que forças demoníacas seriam essas que o impossibilitavam de amar mas que ao mesmo tempo lhe desenvolviam um desejo inato de o fazer e de ser retribuído? Algum limite se interpôs entre este homem e os seus, entre a possibilidade de amar e o amor, facto que se reflecte de forma clara no seu trabalho de romancista, onde a mulher tem um papel bastante reduzido.

Uma análise freudiana está completamente afastada na medida em que Kafka nunca quis matar o seu Pai para que este lhe deixasse livre trânsito para o amor da mãe. Não existe nenhum indicador retorcido nas relações do escritor com a sua família, pais e irmãs. Tudo decorre dentro da normalidade. A sua líbido é de uma outra matriz e Édipo não tem lugar neste drama. O drama é essencialmente existencial e o seu curto romance "Metamorfose" sintetiza-o claramente. Gregório Samsa, alter ego do autor, torna-se um animal no momento em que se consciecializa da sua solidão. O solitário é um ser anormal num século em que toda a gente vive misturada com toda a gente. O romantismo tem em Kafka a a sua última hora de actualidade, não já na sua obra mas na sua vida. Mas além do romantismo Kafka experimenta a solidão enquanto impossibilidade de amar, acrescida da angústia que se desenvolve em consequência desse facto. A máxima necessidade de ser livre, conjugada com a máxima vontade de amor pela Humanidade acabam por se combinar numa equação impossível de resolver.

Artur



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CCB

Não, não somos o melhor povo do mundo, como dizia o colossal galhofeiro das Finanças, rindo-se na cara e gozando à fartazana com aqueles a quem vai destroçando as vidas, pondo a sua enorme (in)competência ao serviço dos interesses instalados, dos credores e dos seus patrões alemães. Um verdadeiro inimigo do Povo, para retomar o título de um exemplar filme de George Schaefer. Também não somos - como pretende a folgazona da Jonet - uma cambada que passa a vida a comer bifes e a assistir a concertos de rock. Somos só uma comunidade a quem a modernidade assenta mal: apesar dos milhões de telemóveis, da Internet, do Facebook e de todas as parvoíces congéneres, ainda somos os mesmos rústicos com um leve verniz de civilização, de má qualidade,  mal aplicado e pronto a estalar à primeira intempérie. As estradas que fizémos à conta dos fundos europeus só serviram para melhor e mais rapidamente espalharmos lixo pelas bermas (ou despejar entulhos provenientes das obras das casas mais feias e inabitáveis do mundo ocidental). Ainda somos os mesmos, com terra debaixo das unhas, escarradela pronta e certeira, sem respeito pelos espaços públicos, sem apreço pela beleza, dentes estragados e sorrisos maliciosos. Ainda somos o pessoal da taberna (travestida de cafetaria), da carvoaria (disfarçada de mercearia fina), dos centros comerciais que fazem as vezes dos locais de lazer que não sabemos aproveitar ou que não temos dinheiro para frequentar. Desbravamos o nosso pequeno mundo de telemóvel nas unhas. Desbravámos o imenso mundo com os os olhos abertos de terror. Somos simultaneamente o povo do Quinto Império do Padre António Vieira, destinado a cumprir a profecia bíblica e a governar a orbe através do Rei de Portugal, governante do Império Cristão Universal (a mais delirante utopia messiânica que alguma vez foi imaginada) e o povo de Camilo Castelo Branco: capazes de sacudir o jugo das grandes potências e de nos submetermos a um tiranete medíocre e provinciano; capazes de derrubar um francês do cavalo, degolá-lo e a seguir palitar descontraidamente os dentes; de racharmos a cabeça do vizinho com uma sachola por causa de um fio de água e irmos depois à Missa Pascal e à desobriga perante o Senhor Cristo; capazes de sobreviver e resistir no meio do caos, permanentemente desconfiados do que vem "do alto" e "dos grandes", sabendo de antemão que daí só virão a expoliação, o confisco e os abusos; roubaram-nos a eternidade; deixassem que vogássemos ao sabor das correntes do tempo, intactos e pobres, carentes e enredados nas nossas pequenas e grandes fatalidades, amargurados ou felizes, inconscientes e imersos nas nossas ilusões e nos nossos sonhos de grandeza postiços e falsos como as jóias que os actores exibem no teatro. A única pena que tenho é essa : que não possamos entregar-nos sossegadamente ao estado de espírito que melhor nos caracteriza (não, não é a fatalidade expressa no Fado) e que melhor nos convém: o tédio. Incapazes de sentimentos nobres como a melancolia e a nostalgia (próprios das civilizações superiores), proponho que substituamos a nossa Constituição pelo "Livro do Desassossego" e que passemos o resto das nossas vidas numa sobreloja da Rua dos Douradores como espectadores impávidos e serenos do espectáculo do Mundo. É isso que nós somos: ternos, eternos e lambuzados de amoras.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LAND OF HOPE AND DREAMS


(Whoaaa whoa-whoaaa, this train)
(I'm calling this train)
(Don't you wanna ride)
(This train, this train)
(This train, this train)
(Whoa-whoa, get on, get on, get on, get on, get on)

Grab your ticket and your suitcase, thunder's rolling down this track
Well, you don't know where you're going now, but you know you won't be back
Well, darling, if you're weary, lay your head upon my chest
We'll take what we can carry, yeah, and we'll leave the rest

Well, big wheels roll through the fields where sunlight streams
Meet me in a land of hope and dreams

I will provide for you and I'll stand by your side
You'll need a good companion now for this part of the ride
Yeah, leave behind your sorrows, let this day be the last
Well, tomorrow there'll be sunshine and all this darkness past

Well, big wheels roll through fields where sunlight streams
Oh, meet me in a land of hope and dreams

Well, this train carries saints and sinners
This train carries losers and winners
This train carries whores and gamblers
This train carries lost souls

I said, this train, dreams will not be thwarted
This train, faith will be rewarded
This train, hear the steel wheels singing
This train, bells of freedom ringing

[Clarence Clemons sax solo]

Yes, this train carries saints and sinners
This train carries losers and winners
This train carries whores and gamblers
This train carries lost souls

I said, this train carries broken-hearted
This train, thieves and sweet souls departed
This train carries fools and kings thrown
This train, all aboard

I said, now this train, dreams will not be thwarted
This train, faith will be rewarded
This train, the steel wheels singing
This train, bells of freedom ringing

Come on this train
People get ready
You don't need no ticket
Oh, you gotta do this
Just get onboard
Onboard this train (this train, now)
People get ready
You don't need no ticket (oh now, no you don't)
You don't need no ticket
You just get onboard (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
You just thank the Lord (people get ready)
(Come on this train, people get ready)
(Come on this train, people get ready) [fades]

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

GUILT TRIP


Na primeira audição julguei estar de volta ao tempo de "Darkness On The Edge of Town". A segunda, fez-me lembrar "Nebraska" ou "The River". Só à terceira percebi que em "Wrecking Ball" Bruce Springsteen disse adeus ao rock n' roll e deu as boas vindas a Woody Guthrie e ao Bob Dylan dos anos 60. Bruce Springsteen está muito zangado, diria mesmo que a zanga se transformou em cólera perante uma América devastada pela crise económica e pelos aprendizes de feiticeiro da finança. Sem ter perdido a ligação que o une à América profunda e à classe operária que a sustém, Springsteen alimenta-se das raízes dessa cólera e da tradição da canção de protesto para procurar responder à pergunta formulada no primeiro hino (We Take Care Of Our Own") . Tomamos conta de nós próprios e daqueles que nos rodeiam ? A resposta de Springsteen é claramente negativa, tal como fica demonstrado nas canções seguintes, sobretudo em "Jack Of All Trades" (the hurricane blows / brings the hard rain / when the blue sky breakes / it feels the world's gonna change / and we'll start caring for each other / like jesus said we might) canção na qual, depois desta breve mensagem de esperança e de mútuo conforto, a raiva surge de novo e em cheio (the banker man grows fat / working man grows thin (...) if I had me a gun, I'd find the bastards and shoot'em on sight).
O tom geral do disco é como a sua música : sombrio, marcial, grave, solene, uma espécie de country-folk musculado, enérgico que, por vezes, se tinge com laivos de Gospel e hip-hop.
A canção que dá título ao álbum refere-se à demolição do estádio dos Giants e à máquina de demolição (wrecking ball) que o destruiu, numa viagem nostálgica a um local de referência na vida do músico: na infância era lá que via jogar os seus ídolos desportivos; foi aí que deu alguns dos seus monumentais concertos (I was raised outta steel / here in the swamps of Jersey / some misty years ago / through the mud and the beer / the blood and the cheers / I've seen champions come and go (...)so raise up your glasses / and let me hear your voices call /'cause tonight all the dead are here / so bring on your wrecking ball) e essa imagem funciona como uma poderosa metáfora da crise que assola o país e o Mundo. Pesadamente simbólica this depression é o grito ferido de um homem que nunca se sentiu so down, so lost, so low. Springsteen, ele mesmo, parece estar em excelente forma. Mas esgota-se nos vazadouros desta América tão deprimida, à qual um laço visceral parece ainda uni-lo e que se manifesta na imensa energia que passa por aqui. Muitas vezes, como disse no início, o fantasma desse outro álbum de crise que foi Darkness On The Edge of Town perpassa por aqui. Springsteen também não o esqueceu, mas tenta olhar em frente e fazer o seu trabalho. Meio-pregador, meio-boxeur. Indestrutível.
Essa tenacidade nasce num quase filme por onde desfilam as sombras dos casais em busca do dinheiro fácil, dos operários que perderam tudo e sonham com a morte dos canalhas, os banqueiros que engordam e da gente comum que aperta o cinto, biblicamente resistentes como a Mãe Jod em "As Vinhas da Ira" de John Ford (nós somos o povo, não podem destruir-nos), imagens servidas por uma música que entronca nas mais profundas raízes americanas, nas gaitas de foles irlandesas, nos gospel-choirs, loops electrónicos e o espírito das Seeger Sessions.
E, depois da raiva, vem o conforto, a esperança, a busca de redenção. O gospel e as imagens bíblicas insinuam-se em Land of Hope And Dreams, talvez a mais bela canção do disco (big wheels roll through fields / were sunlight streams / meet me in a land of hope and dreams / well, I will provide for you and I'll stand by your side (...) leave behind your sorrows / let this day be the last / tomorrow there'll be sunshine / and all this darkness past) e prolongam o apelo humanista de People Get Ready. Sob um tom de folk céltico, We Are Alive apela ao espírito vivo das vítimas da violência americana através da história, sejam eles grevistas, negros em luta pelos direitos cívicos ou imigrantes clandestinos. Esta canção, poderosa nota de esperança e de espírito de resistência poderia ser a epítome deste disco poderoso, talentoso, enraivecido e, simultaneamente, comovido e fraternal. A vaga de indignação que varre o mundo encontra aqui os seus ecos e as suas ressonâncias na voz de um compositor que está de regresso, depois de alguns pontos baixos e actos falhados, mas que regressa sempre e que, desta vez, regressa com um discurso político sem concessões, duro e directo, uma pistola apontada às mentes e corações dos seus compatriotas e das pessoas que em todo o Mundo reconhecem a dimensão da tragédia e querem encontrar a sabedoria que lhes permita fazer-lhe frente. Bruce Springsteen regressou. Desta vez no papel do herói.

LUCIDEZ


domingo, 18 de novembro de 2012

O FUTURO É UM PLANETA DISTANTE

Tal como as famílias grandes que muitas vezes só se conseguem encontrar em casamentos ou funerais, por mais contactos e promessas de encontros trocadas, a minha familia de amigos só consegue registar um numero elevado (completo é impossível) de presenças no mesmo local em ocasiões especiais. Por exemplo, num aniversário. Desta forma regressamos ao tempo em que tínhamos 20 anos e nos víamos todos praticamente todos os dias. Revivemos o passado de forma intermitente. E já vamos cheios de sorte...a de ainda cá estar para o fazer. Da última vez calhou sentar-me ao lado de um antigo colega de trabalho do aniversariante. Um tipo que muito estimo, reformado há já alguns anos, a caminho dos 70. Não tenho nem nunca tive grande simpatia pela sua geração ( a dos meus pais). No entanto há nela, afinal como em tudo, excepções, gente que nunca se limitou a viver nas fronteiras etárias, geográficas e temporais do ano em que nasceu, gente que usou o seu estatuto de antiguidade para ajudar, ensinar, ser solidário com os mais novos, em vez de os usar como subalternos temporais, prestadores de serviços para satisfação de frustrações antigas. Falámos dos tempos que vão correndo, das perspectivas e possibilidades que o futuro desenha. Ele relembrou que o grande obstáculo do seu tempo tinha sido a guerra colonial. Ou se ia ou não se ia, e quando se ia, ou se voltava ou se ficava lá. Depois de tudo isso passado a vida correu com normalidade até à reforma. O grande obstáculo da minha geração ( que anda pelo fim dos 40 a caír para os 50) foi o começo de vida. Trabalho escasso e parcial, obrigação de viver fora do local em que crescemos por especulação imobiliária, drogas, tirania dos partidos a interferir em todos os aspectos da vida social e a secar toda a originalidade à sua volta. Não levámos com uma guerra mas travámos duras batalhas, contabilizámos as nossas baixas. Agora a geração dos nossos filhos (alguns já entrados na casa dos 20) a deparar-se com mais um cenário de guerra. No fundo todos acabam por entrar em combate, mas para poderem sobreviver, para ter direito a uma vida. E quem se recusa a aceitar a ordem que lhe é imposta, mais obstáculos encontra pelo caminho. Recordo uma discussão acalorada com o meu pai em que insistia na ideia de que tinha sido roubado o futuro à minha geração. Ele olhou para mim e perguntou-me: "Hás-de me dizer qual foi a geração a quem não foi roubado o futuro..." Não lhe consegui responder. Hoje compreendo o que ele queria dizer. Todas as gerações são despojadas de futuro, de esperança. Para alimentar as mais antigas, para manter no poder quem já lá se encontra. Qualquer acto de rebeldia será severamente punido, qualquer atitude de não alinhamento receberá o ostracismo, qualquer originalidade será ignorada. É assim que um geração entra no mundo e na vida, à força, em guerra e pelo direito a um espaço, um pedaço de vida. Falo obviamente daqueles que tendo personalidade se recusam a alinhar com o jogo já existente, daqueles que resistem, daqueles que se tentam manter dignos e não se importam com o preço a pagar.

Na segunda parte da conversa falámos das reformas, do posicionamento das nossas idades em relação às modas que se instalam. Ele ainda goza da sua reforma, eu provavelmente terei uma miséria para sobreviver quando fôr velho, os meus filhos de certeza que não terão reforma nenhuma. Dizia-me ele que, tal como vamos vivendo sem pensar na morte, não nos conseguimos convencer que a vida é uma sucessão de ciclos, um contrato de aluguer a termo certo. Um dia será a nossa vez de saír de cena e mais vale aceitar essa ideia do que pensar que ela nunca chegará. Quem vier atrás que apague as luzes. A nossa cena tem um tempo para acontecer e depois outro grupo tomará conta do palco. Despojados de futuro e de esperança os sobreviventes acabam por construir qualquer coisa, dar alguma forma às suas vidas. A peça que interpretamos não faz sentido nenhum...nunca fez. Daí mais uma razão para sermos dignos de nós próprios, mais uma razão para darmos a mão ao "outro" em vez de a fechar sobre a sua cara. Mais uma razão para promover o bem estar geral e aliviar tanto quanto possível o peso esmagador deste absurdo que nos governa. Porquê? Se calhar porque nos amamos uns aos outros sem o sabermos, porque a nossa tendência pende mais para o Espírito do que para a animalidade. Porque a maior, a única vitória certa da nossa existência é a de sabermos que não vamos ficar cá para sempre. E isso dá-nos uma felicidade, uma alegria sussurrada que nada nem ninguém poderá roubar...



Artur

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

NOVEMBRO

For last year's words belong to last year's language.
And next year's words wait another voice.

T.S. Eliot "Four Quartets"



Será que vou encontrar outra voz para as palavras deste novo ano ? Será que vou encontrar outro ano para estas novas palavras ? Que nova linguagem me espera ao cabo dos trabalhos que cada novo ano me traz ?

NÃO É MEIA NOITE QUEM QUER


António Lobo Antunes

 

2012

 

Os livros do Mestre são bilhetes deixados na beira de um penhasco que nos convidam a saltar, não têm meio-termo. Ou vamos ou ficamos do lado de cá a ver o que poderia ter sido uma boa leitura. A opção do salto é uma vertigem, um bailado entre o medo e a ansiedade, uma entrada a pique num universo que nos é proposto, sem rede nem protecções. Sabemos como entramos naquele mar que nos convida com a certeza de que nunca sairemos dali da mesma maneira. Uma parte de nós fica para trás enquanto um outro tanto acaba por ser adquirido na viagem. Os livros do Mestre não são para ler, com a pontuação arrumada, as ideias lavadas e a narrativa alinhada por pesos e alturas. Os livros do Mestre são autênticas aventuras dos sentidos que nos atropelam em cada frase estilhaçada, em cada pensamento intermitente, em cada personagem que começa a falar e pára de repente para continuar mais adiante, indiferente ao tempo a que se refere e a quem lhe termine a frase. Mas no ambiente caótico deste mar de escrita, tal como no mar real, o truque é abandonarmo-nos às vagas, deixar que a corrente nos leve, apreciar essa vertigem de estar num mundo que não dominamos e fazer a viagem. Essencialmente “sentir”, permitir que as células do romance se confundam com as nossas, ver no silêncio o desenho do diálogo do leitor com os outros personagens.

Descendente do (para mim) melhor romance da obra do Mestre (“Explicação dos Pássaros”), este “Não É Meia-noite Quem Quer” apresenta-se num fim-de-semana de despedida de uma mulher que visita a casa de férias da sua infância antes de se suicidar. Em ambos os romances estamos perante a morte anunciada, suicida ou não, do personagem central. Se no primeiro caso se vai desenrolando a desarrumação total da vida presente do homem, neste é a recordação da vida que se arruma na cabeça de uma mulher com 50/60 anos. A memória de uma família em que todos sofrem para dentro, em que os gestos de carinho são intenções que ficam suspensas no ar, quatro filhos, um pai bêbado e uma mãe austera, um espaço familiar em que o pudor de demonstrar o afecto é tão grande que ninguém acaba por perceber bem, sequer, se alguém gosta de alguém. As memórias de uma mulher que carrega consigo a dor da morte do irmão que se recusou ir para a guerra e se atirou do penhasco, do outro que voltou da guerra e se afastou da família, do surdo, da mãe adultera e disciplinadora que a segurou ao colo uma vez, do pai que se escondia na dispensa no meio das garrafas, de um marido que foi mais acidental do que passional, das amigas com que partilhou afectos. E mais importante para quem recorda antes de morrer, não é saber se foi feliz, não é pescar remorsos, rancores, culpas, maravilhas por explorar. Apenas fazer correr o filme de uma vida, repetir cenas, frases e gestos e encontrar finalmente a estação da aceitação das coisas na sua realidade mais óbvia. Não se trata de perdoar nem muito menos aceitar o que quer que seja, mas fazer do registo um exercício de testemunho existencial. Esta foi a nossa vida, vamos morrer a seguir, uma coisa e de pois outra sem etiquetas nem grandes pensamentos para embrulho. Assim é a existência, esse fenómeno pouco seguro, pouco dado a certezas e justificações, essa simples vivência, objecto de registo e indiferença, de memória e tentativa de compreensão.

“Não É Meia-noite Quem Quer” é mais um momento de paixão e vertigem em que as páginas se percorrem sem cansaço num mar de memórias de uma mulher que tenta fazer as últimas arrumações do seu passado e, desse modo, o registo da sua existência. Ficamos amigos dela sem reservas a partir do momento em que a sua história se torna a nossa história, em que a sua respiração nos devolve o ar, em que o seu coração nos faz circular o sangue das nossas veias. Porque a Humanidade é apenas uma.

Obrigado Mestre.

 

Artur