terça-feira, 28 de abril de 2020

Diário da Peste 7/4/2020

O próprio horizonte temporal do problema derrota o equilíbrio psíquico: como será viver sob o espectro da peste, com tudo o que lhe está associado, durante dois anos, por exemplo?

domingo, 26 de abril de 2020

Diário da Peste 4/4/2020 (segunda parte)

3
Uma coisa parece certa. A coberto da emergência, variados «actores», relevantes a todos os níveis político-económicos, estão a posicionar-se para reforçarem o seu poder.
Basta pensar nas grandes corporações que lucrarão, numa lógica capitalista feroz e hegemónica, com as oportunidades. Assim como a nível político (basta pensar o que se passou na Hungria). Seguramente, a China poderá colher benefícios concretos, e em termos ideológicos estas situações oferecem argumentos à extrema direita populista, aos regimes autoritários e, em geral, a todas as tendências políticas iliberais.
4
É possível também que, no rescaldo da peste, a esfera de privacidade individual se veja ainda mais enfraquecida. É que se, no Ocidente, toda a alienação da privacidade como contrapartida da comodidade do uso das tecnologias cibernéticas  está, neste momento, ainda  fundamentalmente nas mãos de corporações sendo explorada para fins publicitários, não se sabe até que ponto a esfera política se vai interessar por tais ferramentas. É uma discussão (e um perigo) que no meio de todo este pânico, porventura, será esquecida.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Diário da Peste 4/4/2020 (primeira parte)

1
São tantas as perguntas que se não adivinham as respostas. Quem e o quê emergirá beneficiado desta longa letargia? Que hábitos mudarão? Que novos equilíbrios serão alcançados? Que oportunidades serão aproveitadas? Haverá melhor distribuição da riqueza ou, pelo contrário, um aprofundar das forças distópicas do capitalismo? E, quanto àqueles que perderão, porque a experiência ensina que são os mais vulneráveis os que mais sofrem com os grandes eventos transformativos?
Haverá talvez uma repercussão negativa no todo da sociedade mas devido às profundas assimetrias há, geralmente, um embate desproporcional sobre os mais fracos sejam eles blocos geo-políticos, países, ou indivíduos.
2
Em Portugal, sendo um país pobre e, já antes, desigual, será que vamos entrar num novo período de escassez económica, de perda de direitos sociais? Uma crise económica e social entorpecedora como a última (a da chamada «crise das dívidas soberanas») que, no melhor dos cenários, nos levará ainda mais fundo numa dinâmica distópica que parece ser a tendência neste aziago século XXI?

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Diário da Peste 3/4/2020

Naturalmente, há o cansaço. Do isolamento. Das múltiplas preocupações pois tudo é difícil numa sociedade paralisada, a opressão que é o futuro, o próximo com o arrastar disso tudo, aquele posterior à peste pelo que se antecipa de uma crise económica que parece inevitável, filtrada pelo trauma do que aconteceu na crise anterior.
Pairando acima disso, o medo do contágio.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

CREPÚSCULOS DE FIM DE SEMANA II









Acordo bem humorado e cheio de energia, coisa que já não me acontecia há alguns tempos. Comemos o pequeno almoço com os cânticos religiosos em fundo. Há uma atmosfera de paz em cada átomo de oxigénio respirado. Segue-se a breve transformação no coronel Azevedo. Um bigodinho branco ralo, um jeito na careca e mais algumas rugas para credibilizar a idade avançada. Depois seguir para o set das filmagens e esperar. Sento-me com o guião na mão e dou-lhe mais uma revisão das minhas falas. Na primeira cena estou a almoçar com mais velhotes à minha volta. Dirijo-me à senhora que está ao meu lado e me pergunta se vi um programa ontem na televisão. Tenho que lhe responder com alguma gravidade: "Sabe que o inimigo é manhoso…Está sempre à espreita a ver quando é que estamos distraídos. Mas eu também não ando cá desde ontem…Corto-lhes a linha de abastecimentos que os fodo…" À terceira vez fica bem e vamos filmar outra cena. As minhas outras duas que restam ficam para depois do almoço. Bebo o café cá fora com a planície a perder de vista. O André lembra-me o primeiro filme em que trabalhámos juntos. Éramos cavaleiros mouros a protagonizar a Lenda das Amendoeiras no castelo de Palmela. Um dia inteiro em cima do cavalo  a assustar turistas e a fumar ganzas. Então não me havia de lembrar? Bons tempos André.
À tarde as outras duas cenas. O avô do rapaz que é o protagonista, morre. Estamos os dois no mesmo quarto. Ele deitado na cama eu de vigília numa cadeira. O neto entra e olhamo-nos. Ele vai abraçar o avô, eu levanto-me e viro-me para a janela. Caiem-me as lágrimas pela cara abaixo, tento falar mas não consigo. Viro-me, coloco muito devagar a mão no ombro do rapaz. Estendo-lhe um livro de encadernação antiga, o "Don Quixote", onde o avô escreveu por baixo do título : "Crepúsculos de fim de semana", uma analogia como ele via a maior parte das coisas importantes da existência. Antes de sair agarrado à bengala, digo: "O teu avô disse-me para te dar isto…"
A minha ultima cena é um delírio em que estou supostamente de volta à parada na cerimónia do arrear da bandeira. Perfilo-me, faço a continência e imito uma fanfarra militar com bombo, metais e tudo. Na cena dois enfermeiros aguardam que termine a cerimónia para me virem buscar. Percebo que a sugestão da banda sonora foi bem recebida porque ouço um ou dois a rir por trás das câmaras. Enquanto me estou a limpar e a trocar de roupa consigo falar com o autor do guião a quem peço um exemplar inteiro. Responde afirmativamente com uma  condição. Se eu lhe levava o carro para Lisboa porque o prazo da inspecção acaba amanhã e eles ainda vão continuar a filmar mais uns dias. Assim entregava-o à namorada e ela fazia o resto. Aceito, trocamos números e moradas e fico com as chaves. Já à saída tenho ainda tempo de me despedir do André. Foi bom termo-nos voltado a ver. Damos um abraço e ele oferece-me um charro. Agradeço a meto-me ao caminho com o Sol em descida acentuada e o vento a pentear a seara devagarinho. Lembro-me que outro amigo vive por aquelas bandas e decido fazer um desvio. Entro na aldeia de casas caiadas de branco, atravesso o largo da Câmara Municipal e subo até ao cemitério. Vale-me não ver ninguém nem existir horários na província para visitar os que já partiram. Forço uma grade ferrugenta e ando alguns metros até o encontrar. Sento-me ao lado da campa e fico ali em silêncio a ver o Sol a pôr-se lá ao longe enquanto vou fumando o charro que me deu o André. O Zé saiu desta colecção de crepúsculos muito novo num acidente de automóvel mas nunca deixámos perder o contacto. Volta na volta encontramo-nos nos sonhos e há sempre um programa aliciante para fazer. Conto-lhe a minha aventura daquele fim de semana de filmagens. Que estou a ficar velho e cada vez mais lento. Daqui a dois dias tenho a operação marcada para retirar o tumor da cabeça. Pode correr 50/50, posso não acordar ou posso me safar, depende de muitos factores incluindo a sorte. Se calhar, da próxima vez que nos encontrarmos já não será preciso vir aqui…visitar o teu jardim de pedra. Se assim fôr só lamento não poder ouvir este silêncio nem observar o espectáculo do pôr do Sol que é único aqui no Alentejo. Por isso vou ficar mais um bocado aqui ao pé de ti na conversa até que uma coruja de cima de uma árvore me venha dizer se não acho que já são horas de me ir embora para casa.


terça-feira, 21 de abril de 2020

CREPÚSCULOS DE FIM DE SEMANA





No meio da confusão habitual em que costuma rolar a minha vida recebi um telefonema madrugador do Ramos da agência. Tinham um papel para mim num filme de um estreante realizador mas com qualidades no currículo. Aceitei sem sequer perguntar o que era. Duas ou três frases, uma participação curta, seguiria por mail. Depois de uma almocinho ligeiro na tasca do bairro regado com uma boa garrafa de tinto alentejano, pus a mochila aos ombros e meti-me no metro a caminho de Sete Rios. A camioneta saiu pouco antes das três. Pelo caminho fui vendo a informação enviada. tinha para aí três intervenções no máximo. Fazia um coronel veterano que estava num lar de idosos e já não jogava com o baralho todo. Era o companheiro de quarto do avô do protagonista, um puto novo à procura de si próprio como é próprio de todos os putos novos. Eu era uma espécie de Kilgore, o tenente coronel marado que comandava a helitransportada no APOCALYPSE NOW. Neste caso um tipo com intervalos de lucidez que falava sozinho e pouco se ralava com o que os outros pensavam dele. Cheguei  duas horas depois com um jeito no pescoço e as pernas dormentes. À minha espera com um cartão com o meu nome estava um jovem simpático de barbas fartas que fazia lembrar o meu filho mais velho. Metemo-nos no carro a caminho do set, planície de um lado e do outro, gado, oliveiras, regas e o calor típico da região em toda a parte. Sempre gostei de fazer de maluco, não sei porquê, sinto-me mais à vontade. Também nunca fui muito bom da cabeça nem me dei com gente que não fosse.  Digamos que, não o sendo, andei sempre por ambientes onde eles eram a maioria, habituei-me como quem descobre uma família e nunca me senti desconfortável. O velho diz umas coisas engraçadas. Veterano dos pára-quedistas, comissões em Angola e na Guiné durante a guerra colonial faz a orientação cronológica dos seus tempos de combatente. Tento meter conversa pelo caminho. Digo que o personagem faz lembrar o tal filme mas o meu interlocutor nunca o viu. Estuda no Técnico, está a fazer uns trocos nas férias…Mas já ouviu o pai dele falar do APOCALYPSE  NOW. Finalmente chegamos ao local das filmagens, um convento antigo com uns claustros refrescados por um pequeno lago,  sebes baixas geometricamente aparadas e canteiros com flores coloridas. Apresentações com a equipa de filmagens, realizador, técnicos, actores. Reconheço o assistente de produção de outros "carnavais" quando fazia figuração em filmes franceses no tempo da faculdade. O André, operador de câmara, duplo, figurante, o homem dos sete instrumentos. Persistente nunca abandonou a actividade. Abdicou de uma vida confortável, família tradicional, estabilidade, por amor à arte. Eu não fui capaz. Voltei agora que estou quase avô, quase reformado, quase….coisa nenhuma. Horários das filmagens num papel. Alvorada às seis. O convento é habitado por uma ordem monástica composta por monges bastante avançados na idade mas cheios de genica e simpatia. Cedem uma parte das instalações, incluíndo o refeitório, e têm como única condição respeitarmos os seus horários. Jantamos ainda de dia em silêncio ouvindo ao fundo cantos gregorianos vindos da igreja. A seguir somos encaminhados para as nossas celas/quartos de dormir. Antes de entrar o André traz uma garrafa de aguardente produzida no convento e ficamos ali na varanda do claustro a beber um último para o caminho. A aguardente é suave e escorre bem. Entro no quarto de uma simplicidade absoluta mas também extremamente limpo. Da janela vejo um pequeno bosque com árvores à contraluz enquanto o Sol se desliga devagar. O crepúsculo é sempre um espectáculo para os sentidos...no Alentejo é uma obra prima de qualidade. Pego no telemóvel e ligo. à Joana, aos meus filhos, a dois amigos. Ninguém atende. O efeito da aguardente começa a bater, primeiro devagar e depois a espreguiçar-se pelo cérebro e pelo seu recente ocupante. Gostava de vos dizer que vos amo muito a todos vocês mas como não atendem vou desligar o telefone que amanhã o dia começa cedo.

Artur


domingo, 19 de abril de 2020

Diário da Peste 2/4/2020

É importante uma palavra sobre as «teorias da conspiração». Elas, em geral, têm algo de alucinatório e, por isso, não são credíveis. Todavia, numa coisa talvez estejam certas: há movimentos de escopo imenso, que em muito ultrapassa o indivíduo, numa sociedade global e plena de meios técnicos. Há forças e ideias que constituem um fundo comum mundial que ditam as regras do jogo, geo-político, social, económico e até moral. Essa amplitude desmesurada de tal modo confunde a capacidade de análise que tudo, então, parece possível.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Diário da Peste 1/4/2020

O tempo perde, seguramente, sentido quando, no confinamento, escasseiam os estímulos.
Contudo, nada, nunca, está parado. O devir humano continua com a mesma vitalidade de sempre. Agora, porém, está camuflado pelo medo.
É a paralisia de um estado larvar do mundo mas de imprevisível mutação.

LUIS SEPULVEDA

Luis Sepúlveda


                                            1949 - 2020

terça-feira, 14 de abril de 2020

AMERICAN FACTORY








AMERICAN FACTORY

Steven Regnar / Julia Reichert

Prod. Netflix

Distribuição Higher Ground Productions

EUA, 2019

(Documentário)


Gostaria de começar pela frase de um antigo cidadão da ex União Soviética, engenheiro químico a trabalhar nas obras na Europa Ocidental, a propósito da realidade do país onde tinha vivido até há pouco tempo. Dizia ele : "Ao fim de uns meses de me mudar para o Ocidente cheguei a duas simples conclusões. Tudo o que nos diziam sobre o comunismo era mentira e tudo o que nos diziam sobre o capitalismo era verdade."
A Economia tem ciclos a lengalenga do baile entre a procura e a oferta enchem jornais e teses académicas, mas no fim acaba quase sempre da mesma maneira. Na hora da distribuição da riqueza há cada vez menos privilegiados mais ricos e aumenta o numero de pobres ou despromovidos no que à hierarquia da qualidade de vida diz respeito.
Serve esta breve introdução para apresentar uma peça documental do ano passado que congrega em si esta parábola humana. Falamos de AMERICAN FACTORY, estreado no Festival de Cinema de Sundance e galardoado com, entre muitos outros prémios, o Oscar para o melhor filme na categoria de documentário deste ano de 2020. O filme começa em plena crise financeira de 2008 em Moraine, perto da cidade de Dayton, Ohio, quando a empresa GM fecha uma unidade fabril que empregava milhares de trabalhadores da região. Mais tarde a FUYAO, industria chinesa, decide investir na mesma região montando para o efeito uma unidade produtora de vidros para a industria automóvel. A esperança volta a despertar na comunidade assolada pela incerteza e desemprego. Inaugurações com pompa e circunstância e promessas de futuros melhores começam em desaceleração logo à partida com o choque de culturas. Os chineses acham os americanos muito lentos na linha de produção, por outro lado os americanos descobrem que os empregados chineses destacados para aquela fábrica não têm direito a receber mais por se encontrarem deslocados e suportam horários bastante pesados fazendo horas extraordinárias não remuneradas. Numa deslocação à sede mãe um grupo de supervisores da linha de montagem fica impressionado com a formas como a empresa se organiza na China. Se por um lado a estruturação do trabalho assenta num rígido código de conduta militarizado, por outro ao longo da festa de fim de ano vai aos poucos pairando a ideia da omnipresença e omnipotência daquele conglomerado empresarial nas vidas dos seus trabalhadores numa postura alienante de discurso religioso. Em Moraine os problemas começam a surgir uns atrás dos outros. Falta de condições de segurança, aumento dos riscos de acidentes de trabalho, desrespeito total pelas mais elementares regras ambientais. Começa a correr a ideia de sindicalização entre os trabalhadores, a administração contrata uma empresa de publicidade para combater essa ideia. Marcam-se eleições para decidir se o sindicato poderá ou não interferir nas relações de trabalho. Ganha o lado da empresa.
Por outro lado o grande administrador, Cho Tak Wong, apresenta-se como um homem de negócios empenhado no aumento dos valores da produção, nas vendas e nos lucros que pouco ou nada beneficiam os funcionários. Um multimilionário cuja proveniência da fortuna nunca se questiona, sendo ainda mais ridículo o facto de vir de uma China comunista, de partido único onde o grande capital só pode ter origem no próprio Estado .É curioso como de todas as origens ideológicas que possamos imaginar, no fim os resultados são sempre os mesmos: exploração, prepotência, desnivelamento de rendimentos. O Valor do Trabalho subjugado ao do Capital, o valor humano reduzido a unidades de produção, o crescimento económico e cego na direcção que ninguém percebe bem para onde, o lucro e a ganância sobre a segurança, a higiene e o ambiente.
Já na fase final do filme assistimos a um passeio de Wong pela fábrica na américa onde um assistente lhe vai explicando quantos empregados vai conseguindo despedir por cada unidade robotizada que conseguir instalar na linha de produção.  
A certa altura diz próprio o Wong que tem alturas em que se interroga se será um grande empreendedor ou simplesmente um criminoso. Para rematar logo a seguir que isto só lhe acontece em momentos de maior tristeza, o que é raro.
A estratégia de fazer sentir os trabalhadores como parte de uma família mais alargada onde todos se esforçam para um bem comum, através de pequenos gestos de consideração, festas, etc, fazem parte de um conceito de empresa que quer apenas e só o lucro, o aumento frenético da produção e o déficit de distribuição da riqueza. Através de pequenas teatralidades que celebram os trabalhadores, através de um discurso envangélico de salvação que não existe fora da fábrica.
O documentário tem ainda a grande vantagem de se desenrolar sem tomar partido. Não diz, não toma posição nem conclui, mostra. As pessoas vão entrando e saindo das imagens naturalmente, falando e agindo como fariam todos os dias. Na linha da velha escola documental americana do cinéma verité , de referências como Jonas Mekas ou Frederick Wieseman. Por oposição ao método de Michael Moore que documenta já comprometido com uma ideia levando o espectador ao seu encontro, filmando numa direcção muito precisa.
Importante a vários níveis, AMERICAN FACTORY é também um documento decisivo a ter em conta quando terminar este pesadelo que estamos a viver. Um testemunho da irracionalidade, da desumanização e do absurdo do sentido que nos trouxe até aqui. Um mundo dominado pelo lucro e pela ganância, desrespeitando as mais elementares regras ambientais, a alienação do crescimento económico em sacrifício do sofrimento da maioria para alcançar objectivos duvidosos, incertos ou sequer inexistentes. Uma qualidade de vida irracional, anti- humana e anti- planetária.  Será este o mundo para o qual queremos voltar???

Artur


sábado, 11 de abril de 2020

REGRESSO A KAFKA









Volta na volta regresso a Kafka por inúmeros motivos desde a quase infinita fonte de aprendizagem literária e existencial até às pequenas peripécias que se vão colocando no caminho. No tempo presente, um tempo de perplexidade e de reclusão, o universo kafkiano aumenta a sua dimensão reocupando o espaço de pensar e reflectir. Ao contrário de outros seus contemporâneos (Musil, Rilke ou Trakl) a sua vida é escassa em incidentes ou peripécias relevantes, quase toda ela passada na sua cidade natal, Praga, e num círculo de relações muito limitado. A sua curta e recatada existência não o impediu no entanto de construir um universo muito próprio e muito diversificado que projectou a sua influência muito para lá da sua contemporaneidade. A sua capacidade de observação da realidade humana associada à construção de atmosferas e situações ao mesmo tempo esmagadoras, absurdas e irrealistas acabaram por se revelar fieis retratos, caricaturas grotescas e relatos verosímeis de um espécie  imperfeita, rídicula e assustada que é a nossa. Embora sejam conhecidas algumas das suas obras fundamentais, uma grande parte do que escreveu veio a perder-se durante o holocausto da segunda guerra mundial.
Hoje viajei até dois dos seus contos que mais me marcaram no tempo em que os li: "Recordações da estação dos caminhos de ferro de Kalda" e "Na nossa Sinagoga". Trata-se de duas peças interessantes acerca da solidão, da comunidade e da sua relação com a vida, do absurdo da existência, da incapacidade de encontrar um sentido e tropeçar em vários ao mesmo tempo.
No primeiro caso, um homem fica responsável por uma estação de caminho de ferro situada numa linha que com o tempo foi deixando de ter qualquer utilidade. Todos o sabem, o encarregado da estação, o inspector que o visita periodicamente, os escassos habitantes que por ali passam de vez em quando. Não é segredo nenhum. No entanto o homem vai mantendo a sua rotina, as suas tarefas de manutenção, alimentado por uma solidão voluntária que acaba por o conduzir de volta aos outros. Numa realidade condenada, num mundo que termina sem surpresas, a vida continua teimosamente agarrada ao passado deixando-se transformar sem oferecer resistência.
No segundo conto, numa aldeia remota existe um animal vagamente semelhante a uma marta de pelo de cor indefinida que vive na Sinagoga desde sempre. Só aparece quando começam as rezas atraído pelo barulho e ocupa a parte cimeira do espaço onde se sentam as mulheres. Estas são as únicas que se sentem perturbadas com a presença do animal porque as distrai. Das várias tentativas pensadas para correr com aquele habitante do espaço religioso nunca se chegou a uma conclusão. O animal foi ficando, as gerações passaram e nada mudou. O conto termina com uma sensação de conclusão adiada para tempos futuros embora indecifráveis de concretizar.
Com estes dois contos atravessamos estes novos tempos. Se por um lado insistimos em continuar a viver como fazíamos até aqui sabemos perfeitamente que essa existência está condenada a desaparecer. Por outro lado, com um corpo estranho a marcar presença no nosso quotidiano sentimos a incapacidade de o conseguir exterminar. Ficará por cá enquanto for vivo e lhe apetecer. Sabemos que um dia irá desaparecer, só não conseguimos antever quando. E no meio de tudo isto o significado da existência (se é que alguma vez existiu) é aquilo que menos importa…

Artur


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Diário da Peste 31/3/2020

Um assunto que, lentamente, ocupa todo o tempo, que condiciona todo o espaço (territorialisando todos), que influi em todos os actos da vida e monopoliza toda a atenção. Sim, o desejo do retorno ao que era, ainda no início deste ano, é mais forte do que nunca. Não, esse mundo já desapareceu, não há nada para onde voltar. Quanto mais não seja pela crise económica que se anuncia, e cuja consequência, como todas as crises económicas precedentes, tem o sortilégio de transformar profundamente o mundo. A última, que se arrastou por 10 anos, provocou infinda miséria em Portugal, perturbou a vivência de todos e quando se dela saiu trouxe consigo a praga que foi o turismo (e a gentrificação) embora, ainda assim, isso tenha ajudado a superá-la. Agora, a crise económica será acompanhada, com probabilidade, de aspectos ainda mais sinistros. É como uma grande onda que empurrará para o fundo os náufragos já cansados, já demasiado cansados de tanto nadar.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Diário da Peste 30/3/2020

A vida espreita por baixo do vírus. Converte-se, a vida, em obsessão única, destino único de sobrevivência ou de morte. Por detrás, contudo, pulsam as mesmas forças que impulsionam o devir humano.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Diário da Peste 28/3/2020

Um exercício de escala. A escala ínfima do vírus, a escala máxima do orbe, a escala abstrata da estatística, o horror abstrato dela, a escala da economia, a infinita complexidade de países, continentes inteiros paralisados, a escala dos abismos da estupidez, humana que outra não haverá ou se conhece, e, por contraste a minúcia do engenho científico. A escala de cada um é que é, talvez, a mais problemática. Que pode o indivíduo perante tanta transcendência?

segunda-feira, 6 de abril de 2020

AS VÁRIAS FACES DO SILÊNCIO





É talvez a maior novidade destes dias: o silêncio. O espaço vazio onde nada se passa enquanto tudo acontece. Da janela para fora o silêncio é desenhado pelos pássaros, uma população agora mais presente e mais numerosa. O melro habitual na ponta do parapeito sempre pronto para uma conversa breve, as gaivotas mais lá em cima, os pombos agora mais atrevidos a passear pela rua fora em vez de espreitar dos telhados, os pardais. Um tráfego aéreo intenso mas ao mesmo tempo silencioso. Na fila para o supermercado as pessoas guardam a distância recomendada e fazem uma fila espaçada, muito maior que o habitual como se de um jogo de recreio se tratasse. Mas mantém-se silenciosas com medo de dizer alguma coisa. Entreolham-se interrogativas, contemplam a paisagem com a mesma expressão de perplexidade e ignorância escondida atrás da máscara. Escondem-se do risco continuando a sobreviver, num equilíbrio difícil e instável que lhes abalou as certezas e relativizou as prioridades. E quando tudo isto passar, quando se chegar ao fim, o que é que vai acontecer? Quais são as chances de sobreviver e acabar com as mãos a abanar, sem meios de continuar vivo. Tudo isto passa pelas nossas cabeças embora não se ouça. As preocupações e os medos vivem em nós silenciosamente. Com tanta mudança nas nossas vidas de um dia para o outro começamos a duvidar se existiu alguma coisa lá atrás. Alguma coisa em forma de Passado que se foi descolando como um adesivo peganhento. As prioridades mudaram de lugar. É preciso sobreviver mas é preciso também voltar a inventar a vida, dar-lhe outro sentido, não importa qual. Desde que não se volte ao mesmo modo que , de certa forma nos trouxe até aqui. É urgente reinventarmo-nos…de uma maneira ou de outra. Talvez o Silêncio e a Solidão sejam parte da ferramenta essencial para o fazermos…Quem sabe..?


Artur

Diário da Peste 27/3/2020

É ainda verdade aquela ideia de que ao lado, antes ou depois da peste vêm a fome e a guerra. Nas suas novas encarnações a fome assume a forma da crise económica e a guerra a de uma acrescida conflitualidade social embora, infelizmente, a fome também possa ser o antigo flagelo da fome e a guerra, outra questão nunca resolvida, continue a despontar em tantos locais do globo e com esta peste tornar-se mais encarniçada. Não se sabe, com o decorrer do tempo, deste tempo distorcido vivido entre o terror, a perda e o tédio, como essas que cavalgam na desgraça vão fazer sentir a sua presença.
Acima de todas, no entanto, sua irmã e senhora, a morte sorri.

domingo, 5 de abril de 2020

Diário da Peste 25/4/2020

Indignam-se as pessoas com a crueldade e a infâmia das grandes empresas que despedem pessoal e querem, apesar da sua imensa prosperidade, apoios estatais ou uma socialização dos seus prejuízos nestes tempos de peste. Mas isso é a estrutura base, dir-se-ia genética, do sistema capitalista. Os empregados representam, apenas, custos de produção. Se há uma contracção brutal do mercado então há que despedir para salvar a empresa. A razão até é simples: o valor social de uma empresa não é directo, não há relativamente aos seus trabalhadores um compromisso social e humanitário, há tão somente e em abstracto o valor indirecto de permitirem a empregabilidade da população em geral. Contribuem para a comunidade apenas nessa medida quer se considere que haverá, mais tarde, um trickle down dos seus proventos, quer se enverede por uma noção mais essencialista do valor da iniciativa privada, como o único princípio verdadeiro que trará prosperidade a todos. E, claro está, para manter um quase sacrossanto princípio de propriedade há que manter a estrita separação entre o capital pessoal dos accionistas e o capital, de risco, das empresas. Por isso não se indignem contra aqueles grandes empresários que solicitam ajudas públicas. Para eles, as suas empresas estão sempre primeiro. A questão, a verdadeira questão, é se queremos esse tipo de capitalismo puro, e toda a lógica dele que, sendo perversa, fica agora sob escrutínio.
Teme-se que, de algum modo, este capitalismo que se aproximou, novamente, deste modelo puro saia reforçado desta crise, e ainda mais cruel e desumano.

sábado, 4 de abril de 2020

Diário da Peste 24/3/2020

A apreensão (o pânico) de sair à rua. O medo do outro. Como pode isso não ser traumático?

CRÓNICA DOS DIAS QUE PASSAM


Levanto-me de manhã com a urgência de qualquer coisa que era para ser feita neste dia, uma insistência de horário, para no instante a seguir perceber que é apenas o impulso que me perturba, a obrigação abstracta de cumprir. De concreto , não tenho que ir a lado nenhum, não sou obrigado a fazer nada a não ser ficar dentro de portas. Avanço para os procedimentos rotineiros do café, espero um pouco e encho uma caneca. Vou para a varanda tentando-me lembrar que dia é hoje. Nunca consigo acertar à primeira. Os dias fundiram-se numa névoa temporal quase indistintos. Em vez de seguirem uns atrás dos outros em fila como costumavam fazer, agora amontoam-se desordenados como numa formação espontânea de um jogo de rugby.
Os dias são ao mesmo tempo longos ou pequenos conforme o estado de espírito. De repente parece que se abriu um alçapão no tempo e que escorreguei para um espaço vazio, suspenso, um vácuo onde tudo fica pendurado numa lentidão estranha, uma frequência longa e permanente de silêncio, como se estivesse debaixo de água.
Lá fora a cidade acorda. As ruas, o rio lá em baixo, a ponte, a mata de Monsanto, está tudo no mesmo lugar. Lisboa respira, continua viva. Uma respiração mais lenta mas mais saudável decorada pelo canto dos pássaros, o bater cardíaco da terra por baixo de nós. O movimento lento, o silêncio, tudo foi forçado a abrandar. Nos primeiros tempos tenho dificuldade em perceber o que se está a passar. Falar com os outros à distância, desinfectar tudo o que mexe e não mexe, o visível e o que não se vê. É tudo novo e ao mesmo tempo estranho. Principalmente este silêncio permanente onde na ausência dos outros vamos aprendendo a voltar para dentro de nós. E a reflectir, ou simplesmente ficar como quem se senta ao Sol numa esplanada agradável.
Enquanto ficamos em casa a fugir de um inimigo invisível mas destruidor em grande escala, enquanto nos equipamos até aos dentes como combatentes a caminho de um cenário de guerra, enquanto vamos assistindo ao sofrimento e à angústia dos infectados, dos mortos, da teimosia dos profissionais de saúde, da solidariedade espontânea entre as pessoas, de que sozinho ninguém sai daqui vivo, enquanto começamos a redescobrir qualidades na nossa existência que julgávamos esquecidas há muito, enquanto dobramos e desdobramos o cérebro revisitando espaços há muito fechados…………………..enquanto tudo isto acontece, a cidade respira mais aliviada, o planeta recupera forças, os animais ocupam novos espaços,

enquanto nos preocupamos em salvar a vida, preservar a existência, atravessar esta tempestade destrutiva, combater este inimigo invisível mas potencialmente devastador


enquanto nos vamos tentando livrar de um vírus, a vida no planeta recupera da devastação causada pelo vírus que temos sido nós…


Artur

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Diário da Peste 22/3/2020

Sente-se, agora, uma tensão que respeita à quantidade de informação que é saudável para cada um. Perante a perspectiva de um arrastar da situação com a possibilidade de aparecerem num futuro a médio prazo inúmeros outros problemas desencadeados pela peste, e da dimensão obsessiva deste assunto e da saturação que isso implica, será que fazer dele um tema permanente de inquirição é a coisa mais saudável? Não será, pelo contrário, mais sensato buscar um equilíbrio, ainda que precário, entre informação, investigação e uma salutar alienação?

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Diário da Peste 21/3/2020

Esse fechamento é, aliás, a marca de uma sociedade técnica (atirada, agora, de encontro ao virtual): o perigo da disfuncionalidade. A desumanização do virtual como único modo de acesso ao outro. Por outro lado, há, inegavelmente, uma plasticidade imensa do espírito humano, que sabe adaptar-se a todo o tipo de situações e de encontrar equilíbrio mesmo na adversidade. Além do mais, poder-se-á estar também perante uma questão geracional. Os nativos digitais estão tão à vontade com o ecossistema cibernético que talvez lhes não custe a adaptação.
Outra pergunta, ainda sem resposta, é: o que será do amor, da amizade, da aproximação ao outro?

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Diário da Peste 20/3/2020

A estranha temporalidade deste tempo de peste: este único assunto comanda os dias, e apesar da saturação, a sua resolução é lentíssima. Há, então, um confronto com as potências negativas, claustrofóbicas, do confinamento sanitário. Há, também, uma tensão para um empobrecimento existencial. Nada da vida com estímulos e com os outros, sob o medo, a apreensão, a vivência com o que está fechado e interdito.