AMERICAN FACTORY
Steven Regnar / Julia Reichert
Prod. Netflix
Distribuição Higher Ground Productions
EUA, 2019
(Documentário)
Gostaria de começar pela frase de
um antigo cidadão da ex União Soviética, engenheiro químico a trabalhar nas
obras na Europa Ocidental, a propósito da realidade do país onde tinha vivido
até há pouco tempo. Dizia ele : "Ao fim de uns meses de me mudar para o
Ocidente cheguei a duas simples conclusões. Tudo o que nos diziam sobre o
comunismo era mentira e tudo o que nos diziam sobre o capitalismo era
verdade."
A Economia tem ciclos a
lengalenga do baile entre a procura e a oferta enchem jornais e teses
académicas, mas no fim acaba quase sempre da mesma maneira. Na hora da
distribuição da riqueza há cada vez menos privilegiados mais ricos e aumenta o
numero de pobres ou despromovidos no que à hierarquia da qualidade de vida diz
respeito.
Serve esta breve introdução para
apresentar uma peça documental do ano passado que congrega em si esta parábola humana.
Falamos de AMERICAN FACTORY, estreado no Festival de Cinema de Sundance e
galardoado com, entre muitos outros prémios, o Oscar para o melhor filme na
categoria de documentário deste ano de 2020. O filme começa em plena crise
financeira de 2008 em Moraine, perto da cidade de Dayton, Ohio, quando a
empresa GM fecha uma unidade fabril que empregava milhares de trabalhadores da
região. Mais tarde a FUYAO, industria chinesa, decide investir na mesma região montando para o
efeito uma unidade produtora de vidros para a industria automóvel. A esperança
volta a despertar na comunidade assolada pela incerteza e desemprego.
Inaugurações com pompa e circunstância e promessas de futuros melhores começam
em desaceleração logo à partida com o choque de culturas. Os chineses acham os
americanos muito lentos na linha de produção, por outro lado os americanos
descobrem que os empregados chineses destacados para aquela fábrica não têm
direito a receber mais por se encontrarem deslocados e suportam horários
bastante pesados fazendo horas extraordinárias não remuneradas. Numa deslocação
à sede mãe um grupo de supervisores da linha de montagem fica impressionado com
a formas como a empresa se organiza na China. Se por um lado a estruturação
do trabalho assenta num rígido código de conduta militarizado, por outro ao
longo da festa de fim de ano vai aos poucos pairando a ideia da omnipresença e
omnipotência daquele conglomerado empresarial nas vidas dos seus trabalhadores
numa postura alienante de discurso religioso. Em Moraine os problemas começam a
surgir uns atrás dos outros. Falta de condições de segurança, aumento dos riscos
de acidentes de trabalho, desrespeito total pelas mais elementares regras
ambientais. Começa a correr a ideia de sindicalização entre os trabalhadores, a
administração contrata uma empresa de publicidade para combater essa ideia.
Marcam-se eleições para decidir se o sindicato poderá ou não interferir nas
relações de trabalho. Ganha o lado da empresa.
Por outro lado o grande
administrador, Cho Tak Wong, apresenta-se como um homem de negócios empenhado
no aumento dos valores da produção, nas vendas e nos lucros que pouco ou nada
beneficiam os funcionários. Um multimilionário cuja proveniência da fortuna
nunca se questiona, sendo ainda mais ridículo o facto de vir de uma China
comunista, de partido único onde o grande capital só pode ter origem no próprio
Estado .É curioso como de todas as origens ideológicas que possamos imaginar,
no fim os resultados são sempre os mesmos: exploração, prepotência,
desnivelamento de rendimentos. O Valor do Trabalho subjugado ao do Capital, o
valor humano reduzido a unidades de produção, o crescimento económico e cego na
direcção que ninguém percebe bem para onde, o lucro e a ganância sobre a
segurança, a higiene e o ambiente.
Já na fase final do filme
assistimos a um passeio de Wong pela fábrica na américa onde um assistente lhe
vai explicando quantos empregados vai conseguindo despedir por cada unidade
robotizada que conseguir instalar na linha de produção.
A certa altura diz próprio o Wong
que tem alturas em que se interroga se será um grande empreendedor ou
simplesmente um criminoso. Para rematar logo a seguir que isto só lhe acontece
em momentos de maior tristeza, o que é raro.
A estratégia de fazer sentir os
trabalhadores como parte de uma família mais alargada onde todos se esforçam
para um bem comum, através de pequenos gestos de consideração, festas, etc,
fazem parte de um conceito de empresa que quer apenas e só o lucro, o aumento
frenético da produção e o déficit de distribuição da riqueza. Através de
pequenas teatralidades que celebram os trabalhadores, através de um discurso
envangélico de salvação que não existe fora da fábrica.
O documentário tem ainda a grande
vantagem de se desenrolar sem tomar partido. Não diz, não toma posição nem conclui,
mostra. As pessoas vão entrando e saindo das imagens naturalmente, falando e
agindo como fariam todos os dias. Na linha da velha escola documental americana
do cinéma verité , de referências como Jonas Mekas ou Frederick Wieseman. Por
oposição ao método de Michael Moore que documenta já comprometido com uma ideia
levando o espectador ao seu encontro, filmando numa direcção muito precisa.
Importante a vários níveis,
AMERICAN FACTORY é também um documento decisivo a ter em conta quando terminar
este pesadelo que estamos a viver. Um testemunho da irracionalidade, da
desumanização e do absurdo do sentido que nos trouxe até aqui. Um mundo
dominado pelo lucro e pela ganância, desrespeitando as mais elementares regras
ambientais, a alienação do crescimento económico em sacrifício do sofrimento da
maioria para alcançar objectivos duvidosos, incertos ou sequer inexistentes.
Uma qualidade de vida irracional, anti- humana e anti- planetária. Será este o mundo para o qual queremos
voltar???
Artur
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