Volta na volta regresso a Kafka
por inúmeros motivos desde a quase infinita fonte de aprendizagem literária e
existencial até às pequenas peripécias que se vão colocando no caminho. No
tempo presente, um tempo de perplexidade e de reclusão, o universo kafkiano
aumenta a sua dimensão reocupando o espaço de pensar e reflectir. Ao contrário
de outros seus contemporâneos (Musil, Rilke ou Trakl) a sua vida é escassa em
incidentes ou peripécias relevantes, quase toda ela passada na sua cidade
natal, Praga, e num círculo de relações muito limitado. A sua curta e recatada
existência não o impediu no entanto de construir um universo muito próprio e
muito diversificado que projectou a sua influência muito para lá da sua
contemporaneidade. A sua capacidade de observação da realidade humana associada
à construção de atmosferas e situações ao mesmo tempo esmagadoras, absurdas e
irrealistas acabaram por se revelar fieis retratos, caricaturas grotescas e
relatos verosímeis de um espécie
imperfeita, rídicula e assustada que é a nossa. Embora sejam conhecidas
algumas das suas obras fundamentais, uma grande parte do que escreveu veio a
perder-se durante o holocausto da segunda guerra mundial.
Hoje viajei até dois dos seus
contos que mais me marcaram no tempo em que os li: "Recordações da estação
dos caminhos de ferro de Kalda" e "Na nossa Sinagoga". Trata-se
de duas peças interessantes acerca da solidão, da comunidade e da sua relação
com a vida, do absurdo da existência, da incapacidade de encontrar um sentido e
tropeçar em vários ao mesmo tempo.
No primeiro caso, um homem fica
responsável por uma estação de caminho de ferro situada numa linha que com o
tempo foi deixando de ter qualquer utilidade. Todos o sabem, o encarregado da
estação, o inspector que o visita periodicamente, os escassos habitantes que
por ali passam de vez em quando. Não é segredo nenhum. No entanto o homem vai
mantendo a sua rotina, as suas tarefas de manutenção, alimentado por uma
solidão voluntária que acaba por o conduzir de volta aos outros. Numa realidade
condenada, num mundo que termina sem surpresas, a vida continua teimosamente
agarrada ao passado deixando-se transformar sem oferecer resistência.
No segundo conto, numa aldeia
remota existe um animal vagamente semelhante a uma marta de pelo de cor
indefinida que vive na Sinagoga desde sempre. Só aparece quando começam as
rezas atraído pelo barulho e ocupa a parte cimeira do espaço onde se sentam as
mulheres. Estas são as únicas que se sentem perturbadas com a presença do
animal porque as distrai. Das várias tentativas pensadas para correr com aquele
habitante do espaço religioso nunca se chegou a uma conclusão. O animal foi
ficando, as gerações passaram e nada mudou. O conto termina com uma sensação de
conclusão adiada para tempos futuros embora indecifráveis de concretizar.
Com estes dois contos
atravessamos estes novos tempos. Se por um lado insistimos em continuar a viver
como fazíamos até aqui sabemos perfeitamente que essa existência está condenada
a desaparecer. Por outro lado, com um corpo estranho a marcar presença no nosso
quotidiano sentimos a incapacidade de o conseguir exterminar. Ficará por cá
enquanto for vivo e lhe apetecer. Sabemos que um dia irá desaparecer, só não
conseguimos antever quando. E no meio de tudo isto o significado da existência
(se é que alguma vez existiu) é aquilo que menos importa…
Artur
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