Levanto-me de manhã com a urgência
de qualquer coisa que era para ser feita neste dia, uma insistência de horário,
para no instante a seguir perceber que é apenas o impulso que me perturba, a
obrigação abstracta de cumprir. De concreto , não tenho que ir a lado nenhum, não
sou obrigado a fazer nada a não ser ficar dentro de portas. Avanço para os
procedimentos rotineiros do café, espero um pouco e encho uma caneca. Vou para
a varanda tentando-me lembrar que dia é hoje. Nunca consigo acertar à primeira.
Os dias fundiram-se numa névoa temporal quase indistintos. Em vez de seguirem
uns atrás dos outros em fila como costumavam fazer, agora amontoam-se
desordenados como numa formação espontânea de um jogo de rugby.
Os dias são ao mesmo tempo longos
ou pequenos conforme o estado de espírito. De repente parece que se abriu um
alçapão no tempo e que escorreguei para um espaço vazio, suspenso, um vácuo onde
tudo fica pendurado numa lentidão estranha, uma frequência longa e permanente
de silêncio, como se estivesse debaixo de água.
Lá fora a cidade acorda. As ruas,
o rio lá em baixo, a ponte, a mata de Monsanto, está tudo no mesmo lugar.
Lisboa respira, continua viva. Uma respiração mais lenta mas mais saudável
decorada pelo canto dos pássaros, o bater cardíaco da terra por baixo de nós. O
movimento lento, o silêncio, tudo foi forçado a abrandar. Nos primeiros tempos
tenho dificuldade em perceber o que se está a passar. Falar com os outros à
distância, desinfectar tudo o que mexe e não mexe, o visível e o que não se vê.
É tudo novo e ao mesmo tempo estranho. Principalmente este silêncio permanente
onde na ausência dos outros vamos aprendendo a voltar para dentro de nós. E a
reflectir, ou simplesmente ficar como quem se senta ao Sol numa esplanada agradável.
Enquanto ficamos em casa a fugir
de um inimigo invisível mas destruidor em grande escala, enquanto nos equipamos
até aos dentes como combatentes a caminho de um cenário de guerra, enquanto
vamos assistindo ao sofrimento e à angústia dos infectados, dos mortos, da
teimosia dos profissionais de saúde, da solidariedade espontânea entre as
pessoas, de que sozinho ninguém sai daqui vivo, enquanto começamos a redescobrir
qualidades na nossa existência que julgávamos esquecidas há muito, enquanto
dobramos e desdobramos o cérebro revisitando espaços há muito fechados…………………..enquanto
tudo isto acontece, a cidade respira mais aliviada, o planeta recupera forças,
os animais ocupam novos espaços,
enquanto nos preocupamos em
salvar a vida, preservar a existência, atravessar esta tempestade destrutiva,
combater este inimigo invisível mas potencialmente devastador
enquanto nos vamos tentando
livrar de um vírus, a vida no planeta recupera da devastação causada pelo vírus
que temos sido nós…
Artur
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