sábado, 4 de abril de 2020

CRÓNICA DOS DIAS QUE PASSAM


Levanto-me de manhã com a urgência de qualquer coisa que era para ser feita neste dia, uma insistência de horário, para no instante a seguir perceber que é apenas o impulso que me perturba, a obrigação abstracta de cumprir. De concreto , não tenho que ir a lado nenhum, não sou obrigado a fazer nada a não ser ficar dentro de portas. Avanço para os procedimentos rotineiros do café, espero um pouco e encho uma caneca. Vou para a varanda tentando-me lembrar que dia é hoje. Nunca consigo acertar à primeira. Os dias fundiram-se numa névoa temporal quase indistintos. Em vez de seguirem uns atrás dos outros em fila como costumavam fazer, agora amontoam-se desordenados como numa formação espontânea de um jogo de rugby.
Os dias são ao mesmo tempo longos ou pequenos conforme o estado de espírito. De repente parece que se abriu um alçapão no tempo e que escorreguei para um espaço vazio, suspenso, um vácuo onde tudo fica pendurado numa lentidão estranha, uma frequência longa e permanente de silêncio, como se estivesse debaixo de água.
Lá fora a cidade acorda. As ruas, o rio lá em baixo, a ponte, a mata de Monsanto, está tudo no mesmo lugar. Lisboa respira, continua viva. Uma respiração mais lenta mas mais saudável decorada pelo canto dos pássaros, o bater cardíaco da terra por baixo de nós. O movimento lento, o silêncio, tudo foi forçado a abrandar. Nos primeiros tempos tenho dificuldade em perceber o que se está a passar. Falar com os outros à distância, desinfectar tudo o que mexe e não mexe, o visível e o que não se vê. É tudo novo e ao mesmo tempo estranho. Principalmente este silêncio permanente onde na ausência dos outros vamos aprendendo a voltar para dentro de nós. E a reflectir, ou simplesmente ficar como quem se senta ao Sol numa esplanada agradável.
Enquanto ficamos em casa a fugir de um inimigo invisível mas destruidor em grande escala, enquanto nos equipamos até aos dentes como combatentes a caminho de um cenário de guerra, enquanto vamos assistindo ao sofrimento e à angústia dos infectados, dos mortos, da teimosia dos profissionais de saúde, da solidariedade espontânea entre as pessoas, de que sozinho ninguém sai daqui vivo, enquanto começamos a redescobrir qualidades na nossa existência que julgávamos esquecidas há muito, enquanto dobramos e desdobramos o cérebro revisitando espaços há muito fechados…………………..enquanto tudo isto acontece, a cidade respira mais aliviada, o planeta recupera forças, os animais ocupam novos espaços,

enquanto nos preocupamos em salvar a vida, preservar a existência, atravessar esta tempestade destrutiva, combater este inimigo invisível mas potencialmente devastador


enquanto nos vamos tentando livrar de um vírus, a vida no planeta recupera da devastação causada pelo vírus que temos sido nós…


Artur

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