sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O PRIMEIRO DIA

É sempre uma brisa nova, um ar desconhecido desenhado na esperança de melhor tempo. O primeiro dia do resto das nossas vidas, uma eternidade de repetições, uma realidade que nunca muda, porque nada muda, porque o Tempo tem o seu tempo de mudar, um tempo e um “porquê” que não nos pertence.
Amanhã é sempre o primeiro dia do resto das nossas vidas mas o tempo que mais pesa é sempre aquele que recorda, aquele que vai pescar momentos de felicidade. O tempo que interessa é o tempo que já não temos, aquele que se recorda com palavras e gestos lentos de apreciador.
O Tempo meus amigos, essa entidade que não existe, é tão real como o futuro que está para chegar, como as esperanças que nos alimentam para não terminar antes do tempo.
Existimos nós e algumas memórias que fintam as mágoas dos dias sem sentido. O Tempo somos nós. Todos os “amanhãs” são o primeiro dia do resto das nossas vidas… até ao último dia.
Artur

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL


...são os votos sinceros deste blog para todos os seus leitores, ouvintes,espectadores, utilizadores, críticos, anónimos, antónimos, heterónimos, homónimos, estudantes, reformados, discriminados e consumidores em geral. Pelo menos esta noite vamos fingir que nada se passa a não ser o Inverno na rua e a família à mesa, risos e tranquilidade.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

RECORDAÇÕES


(Fachada do Templo de Abu Simbel no Egipto)

Há épocas da nossa vida que podemos reduzir em duas ou três frases curtas e outras que davam para encher romances extensos, tipo Tolstoi, que o interesse nunca esmoreceria. Quando chega o Natal o carteiro da existência deixa impreterivelmente um enorme pacote de recordações à nossa porta, pacote esse que vai aumentando todos os anos. A vantagem de envelhecer é precisamente a da alegria que há em recolher esse pacote e tirar de lá só aquilo que nos apetece. Como se fossem fotografias velhas recuperadas nas limpezas de uma divisão esquecida da casa. Este ano apetece-me falar do Natal de 74.
Nesse ano, eu e os meus amigos tínhamos 12 anos de idade e vivíamos todos dentro de um colégio interno centenário onde, por exemplo, já tinha estudado o meu avô. Em Abril desse ano tinha sido a Revolução. Lá fora o ambiente fervia em incerteza e alegria. O futuro do país era uma incógnita que tropeçava em tentativas de golpes de estado, manifestações, greves, extremismos, prisões, exílios, etc. Dentro do colégio no entanto, a vida mantinha-se inalterada. Os corredores centenários de pedra dos claustros mantinham-se intimidantes, prontos a dar-nos um “calduço” se os atravessássemos a correr, a mata espreguiçava-se ao ritmo do Inverno, vestida de folhas secas, balouçando a sua melodia ao vento no alto dos eucaliptos, o campo de futebol coleccionava piscinas de lama e gravilha ficando impraticável para qualquer actividade desportiva pelo menos até meio do segundo período, os professores continuavam as suas actividades. E entre estes dois mundos vivíamos nós, comentando efusivamente as actividades da revolução como se falássemos de uma série da televisão, continuando a vida daquela casa centenária como que tripulando uma máquina do tempo.
Independentemente de viver em pleno Renascimento na corte dos Medici, ou nas ruas de Paris no momento em que reis sobem ao cadafalso, quando se tem 12 anos há coisas muito mais importantes a fazer como estabelecer amizades que irão durar uma vida inteira , perceber o manual da procriação, definir os primeiros interesses de conhecimento, ouvir aquela música fantástica da banda cujo nome tivemos dificuldade em pronunciar das primeiras vezes que quisemos dizer a outro.
O Zé, o Alexandre, o António e eu voluntariámo-nos para o departamento de Arqueologia no nosso espaço de actividades extra-curriculares, orientado pelo nosso eterno Prof. De História, um entusiasta das coisas mais insignificantes que nunca nos deixava de prender a atenção. Das futuras eternas grandes amizades passámos a visitar duas vezes por semana uma “casa” cheia de surpresas. Fotografias sobre Pompeia, as expedições arqueológicas ao Vale dos Reis no Egipto, as pirâmides dos Maias, as manifestações do Paleolítico superior no nosso território, antas e cromeleques, tudo era fascinante. Foi nessa altura que li o meu primeiro livro até ao fim. Era sobre todas estas expedições arqueológicas e intitulava-se “Deuses, Túmulos e Sábios”.
Pouco antes das férias de Natal a minha avó resolveu dar-me uma prenda antecipada. Nessas férias iríamos os dois até Londres a casa da minha tia que já lá vivia há uns anos. O meu primo tinha nascido em Agosto desse ano e ainda não conhecia o meu tio Frank (um homem tão extraordinário que justifica um post inteiro só para ele).
E assim foi. Em época de grandes mudanças e sob um clima de incrível agitação no nosso país, eu tinha 12 anos, tinha descoberto a Arqueologia, vivia num mundo antigo fora do mundo e descobria um mundo novo num país estrangeiro onde voltei muitas vezes. Em alturas mais negras da minha vida, aquele fim do primeiro período do ano lectivo de 74/75 saltava da estante da memória e instalava-se no meu Presente sem que fizesse nenhum esforço para isso. Hoje percebo que tinha sido feliz sem o saber. Tinha conquistado um lugar dentro de mim que nunca mais abandonei.

Artur

NÃO SABEMOS NADA

Não há nada melhor do que começar um texto com uma tirada redundante, uma frase bombástica que poderia incorporar um diálogo de um filme. Uma coisa tipo: “ Morte? Que sabem vocês sobre a morte?”… e depois aplicá-la ao contexto daquilo sobre o que estamos a escrever nesse momento. Por exemplo: “Felicidade? Que raio sabemos nós sobre a felicidade?”
Que raio sabemos nós sobre o que quer que seja, receptores passivos da informação industrial, da”massificação” cultural, condenados a uma algazarra ensurdecedora que não é mais do que um jogo onde são sempre os mesmos que acabam a perder? Que sabemos nós, afinal?
Sabemos o que vivemos, sabemos as pessoas que conhecemos, sabemos coleccionar memórias e seleccionar aquelas que mais nos interessam no momento. Que raio sabemos nós sobre a felicidade se não a conseguiríamos identificar nem que ela se sentasse em cima da nossa cara?
“O Paraíso não é um lugar mas um breve momento que conquistamos dentro de nós.” Esta frase foi escrita pelo Mia Couto e é daquelas frases que encerra em poucas palavras quase toda a sabedoria da existência. Não sabemos nem nunca saberemos o que será a felicidade. Só a memória e o significado interior é que, em conjunto, nos podem dizer se fomos alguma vez felizes… Deste modo, fica aberto o caminho para uma história de Natal, para um tempo em que alguém foi feliz embora na altura não o soubesse.

Artur

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

ADEUS JOÃO


Todos acabamos por embarcar para o ultimo voo, para aquele de onde não há regresso. O destino, à semelhança de todos os voos que fazemos, é sempre uma incógnita. Uma incógnita de meteorologia, agitação social, tipo de passageiros, doenças à nossa espera, avarias, prolongamento de estadias, colegas que ainda não conhecemos. Toda a nossa vida de tripulantes é feita dessa incerteza que nos rouba alguns dos melhores e dos piores momentos da vida…porque estamos sempre em algum lugar fora dela. Agarramo-nos então ao pouco que nos resta, a essa tábua de salvação para manter a sanidade mental ou baixar a febre tropical ou simplesmente trocar dois dedos de conversa que nos ajudam a compreender que ainda estamos vivos apesar de pairar fora da vida. Conheci-te nessas circunstâncias. Um Natal em Bangcoque, uma peça da escola do primeiro filho em Johanesburgo, um AVC do meu pai em Cabo Verde, o casamento de um amigo em Luanda... escolhe um. Perdidos em paisagens estranhas e gentes desconhecidas, valem-nos os colegas, que rapidamente se tornam amigos, quase parentes. Contigo voltei à vida em conversa amena, entre dois ou três copos num bar anónimo de um hotel qualquer. Sempre que nos encontrávamos falávamos de tudo e de nada, como fazem os amigos, ao longo destes vinte e tal anos. Dávamo-nos bem, conseguíamos compreender “o outro” embora com vinte anos de diferença a marcar as nossas idades. Partiste agora e eu não me consegui despedir.
Antes assim. Quem chegar primeiro ao balcão anónimo do hotel desconhecido pede uma cerveja para o outro. Não estou triste porque sei que haveremos de nos voltar a ver. Hoje sou eu que demoro mais tempo a chegar ao bar anónimo. Mas conforta-me saber que tu já lá estás com uma cerveja em cima do balcão à minha espera. Até já João
Artur

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

NUMA CIDADE QUALQUER

Um hotel, um aeroporto e um autocarro entre eles. Uma cidade escura à meia-noite após um dia de chuva. Podia ser o princípio de um filme. Scorcese molhava as ruas de Nova Iorque quando filmava de noite para melhor captar os brilhos da iluminação artificial. No meu caso, o princípio do filme é apenas uma sessão contínua numa cidade qualquer, digamos, Belo Horizonte. Ruas e ruas desertas, taipais de lojas corridos, uma luz teimosa a um canto e um homem solitário à porta a falar e a gesticular para o vazio. Uma bicicleta parada a uns metros dele.
Uma conversa de e-mail trocada com a minha mãe em Melbourne, fora de horas, desfasada de simultâneo, entre diferenças horárias e computadores sonâmbulos, tempos mortos que insistem em falar. Tive um bisavô que viveu e morreu por estas paragens. Isso até sabia vagamente, muito por alto. O que não sabia era que se tratava de um plantador de café. Contou o meu avô que desembarcou nos finais dos anos 40 com a mãe e os irmãos no Rio de Janeiro e demorou três dias a chegar à fazenda do pai dele. Daí um tio-avô em S. Paulo e uma descendência que nunca conheci. O meu avô parou por aqui mas seguiu para a Austrália. O pai dele era uma espécie de Indiana Jones, pistola de um lado e chicote do outro, chapéu de feltro, a dureza típica de quem vive da terra. Uma boa história para tentar um dia destes.
Um homem é feito de histórias. Perdão…Um homem é “construído” por histórias. O seu rasto é um livro que muitos ou poucos conseguem ler. Mesmo as que se inventam pertencem sempre a alguém.
Uma cidade escura que se prepara para dormir, uma rua deserta de lojas fechadas, um homem que fala sozinho a poucos metros de uma bicicleta. Comunicações interrompidas que ainda assim conseguem falar, um livro que se lê em folhas dispersas pelo vento a caminho de um aeroporto. As histórias desconhecidas que escreveram o nosso DNA, o sentido cada vez mais difícil de encontrar numa cidade escura, numa rua qualquer. Há sempre um homem que fala sozinho dentro de nós…
Artur

terça-feira, 23 de novembro de 2010

ARCADE FIRE

Agendados para tocar no nosso país, o concerto acabou por ser cancelado por causa da cimeira da NATO. Aqui fica um cheirinho do que perdemos...ao lado do Camaleão que continua eterno.


Somethin' filled up
my heart with nothin',
someone told me not to cry.

But now that I'm older,
my heart's colder,
and I can see that it's a lie.

Children wake up,
hold your mistake up,
before they turn the summer into dust.

If the children don't grow up,
our bodies get bigger but our hearts get torn up.
We're just a million little gods causin' rain storms turnin' every good thing to
rust.

I guess we'll just have to adjust.

With my lightnin' bolts a glowin'
I can see where I am goin' to be
when the reaper he reaches and touches my hand.

With my lightnin' bolts a glowin'
I can see where I am goin’
With my lightnin' bolts a glowin'
I can see where I am, go-go, where I am

You'd better look out below

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

QUEM É QUEM?

Não sei como nem quando é que isto começou, e pouco me importa. Poderia fazer uma breve viagem e encontrar duas ou três ocasiões em que tentei falar contigo sem êxito. Umas vezes era porque chovia, outras era porque fazia Sol. Estavas sempre muito ocupado no teu cargo muito importante a tratar das coisas importantes que te diziam respeito… ou estavas sem tempo nem paciência para me aturar. Mas não vou entrar por aí. A culpa não é para aqui chamada. Os factos, sim. E, analisando a questão friamente, o facto principal é que nos fomos afastando com o passar do tempo. O mar foi comendo lentamente essa praia que era a nossa, até não sobrar nada entre ele e os penhascos da indiferença. Do espaço vazio da tua companhia passei à indiferença da tua existência. E aos poucos, a tua imagem foi-se desvanecendo até não sobrar nada. Hoje se te sorrir é com o esforço da representação a arregaçar-me as bochechas da cara. Se te cumprimentar, é com o guindaste da formalidade a erguer-me a mão aberta na tua direcção. Não sei como é que cheguei até aqui, só sei que este é o lugar onde estou. E, nesse lugar a tua amizade é-me completamente indiferente. Poderíamos estar aqui a desfiar um novelo interminável de razões, motivações e “porquês”. Mas não me interessa. À minha volta vão morrendo cada vez mais pessoas que eu conhecia bem, inesperadamente, sem razão, caem. Algumas nem sequer considero amigas apesar da grande empatia que nos liga. A injustiça e a lei do Absurdo que regula as nossas existências, aprendida nos livros da juventude e sentida agora na carne, diz-me que não há tempo para um gajo se preocupar com frivolidades. Passaram vários tempos para eu ter deixado de ter tempo para ti. Passou o tempo de querer agradar aos outros com sacrifício da individualidade; de alimentar uma amizade inexistente em troca de um conforto emocional; de dizer ou calar, conforme as circunstâncias, e abafar o pensamento.
Agora as praias são outras, o amor entre as pessoas ou é genuíno ou não é. Não “ses”, nem “mas”, nem “enfins”. Agora as pessoas juntam-se, encontram-se e bebem uns copos desde que tenham essa vontade, desde que sintam que lhes vai fazer bem.
Os poemas, os romances, a música e tudo isso que nos fazia vibrar, eram no fundo a mais alta expressão desta verdade. Se nos faziam sentir bem, voltávamos a ver, a ler, a ouvir. Não porque esta fosse melhor que a outra, mas porque esta nos dizia alguma coisa e, fundamentalmente, nos fazia sentir bem. Assim é com as pessoas. Muito tempo de afastamento torna-nos pedras, penhascos indiferentes que contemplam o mar. Até o filho afastado da mãe em colo alheio acaba por parar de chorar e de se refazer emocionalmente. Por passarem vários tempos por ele, até deixar de ter tempo para ela.
Não há raiva nenhuma, nem pena, nem qualquer outro tipo de emocionalidade envolvida. Há uma estrada deserta com partículas de poeira ainda suspensas no ar, únicas testemunhas de um carro que acabou de arrancar. Há um par de botas empoeiradas que caminham vagarosamente pela berma da estrada, um homem de saco às costas que segue o cheiro da brisa do mar. Quem é quem? Não interessa…não tem importância.

Artur

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

FAR AWAY SO CLOSE



AS ASAS DO DESEJO por Wim Wenders

FAR AWAY SO CLOSE por U2

O som e a imagem numa combinação extraordinária, explosiva dos sentidos, da harmonia, da estética. A Escrita Universal em imagens

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

SIT DOWN


I'll sing myself to sleep
A song from the darkest hour
Secrets I can't keep
Inside of the day
Swing from high to deep
Extremes of sweet and sour
Hope that God exists
I hope I pray


Drawn by the undertow
My life is out of control
I believe this wave will bear my weight
So let it flow


Oh sit down
Sit down next to me
Sit down, down, down, down, down
In sympathy


Now I'm relieved to hear
That you've been to some far out places
It's hard to carry on
When you feel all alone
Now I've swung back down again
It's worse than it was before
If I hadn't seen such riches
I could live with being poor
Oh sit down
Sit down next to me
Sit down, down, down, down, down
In sympathy


Those who feel the breath of sadness
Sit down next to me
Those who find they're touched by madness
Sit down next to me
Those who find themselves ridiculous
Sit down next to me
Love, in fear, in hate, in tears


Down
Down


Oh sit down
Sit down next to me
Sit down, down, down, down, down
In sympathy


Oh sit down
Sit down next to me
Sit down, down, down, down, down
In sympathy




Aguenta, companheiro, estou quase a chegar. O calmeirão do recreio não nos vai dar porrada a vida inteira. O teu Pai tem que fazer um dia de intervalo...não pode ser uma besta a semana toda. A tua mulher fugiu..vamos afogá-la em cerveja. As lágrimas hão-de secar. Estaremos vivos mesmo depois de mortos.
Aguenta, companheiro. Mantém o nariz fora da água, respira como se não houvesse amanhã. Só mais umas remadas e estamos juntos, para nadar de volta ou para ir até ao fundo.
Não te assustes quando te querem encher de medo a toda a hora. És o deus atacado de amnésia que pergunta às àrvores se se lembram dele. Não te podem matar, nem maltratar uma vida inteira. Aguenta, companheiro.
Os nossos reinos não são deste mundo, as nossas mágoas são imagens projectadas a fingir que são reais.
Abre o vidro do carro e deixa entrar a brisa do Oceano. Põe o rádio no máximo e canta.
Aguenta, companheiro. Já foste amado tantas e tantas vezes que te esqueces quando o Amor tarda em chegar. Respira o Mar, grita a canção que sai do rádio.
Por cada injustiça sofrida, dois braços solidários se levantarão. Quem se sente mal, triste, desamparado, perdido...sente-se ao pé de mim.
Aguenta companheiro. Estou quase a chegar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

KEN LOACH


O OUTRO LADO DO ESPELHO


A obra de Ken Loach não se resume em meia dúzia de frases feitas e está longe de encaixar em qualquer molde formal dos manuais que estudam cinema. Trata-se de uma tese de vida inteira que, experimentando, discutindo e inovando a linguagem cinematográfica por um lado, e por outro, concentrando-se narrativamente naquele caminho onde a realidade incómoda se esconde, contribuiu decisivamente para o alargamento da lucidez e da honestidade no acto de observação da sociedade humana e das suas (poucas) certezas.
Panfletário, agitador, polémico e político (?) foram alguns dos adjectivos utilizados para caracterizar um cineasta que aos 70 anos volta à agenda da cinematografia mundial ao vencer a Palma de Ouro da penúltima edição do Festival de Cannes com THE WIND THAT SHAKES THE BARLEY. A crítica convive mal com os seus filmes. Minimiza os seus efeitos, apressa-se a etiquetá-los para melhor os poder arrumar para longe da discussão.
Fundamentalmente, Ken Loach exerce o ofício do cinema ao serviço da humanidade, desenvolvendo para tal uma acção psicanalítica que transporta o espectador até uma linha fronteiriça de contacto com os fantasmas que habitam os recantos mais escuros da memória esquecida. Vantagens? Uma melhor compreensão e conhecimento da natureza humana e uma (ainda que remota) possibilidade de se evitar a repetição de erros já cometidos.
Estamos obviamente a falar de um cinema fora da corrente dominante, abrindo mais uma vez o eterno confronto ideológico entre a arte de exclusivo entretenimento e a de objecto de análise e técnica de conhecimento do Homem sobre si próprio. Um debate infinito mas sempre estimulante nas suas dimensões de desafio.



REALISMO E DRAMA DOCUMENTADO


Ken Loach é oriundo de uma realidade cultural (britânica) onde se desenvolve um estilo baptizado de Realismo Britânico, estilo esse que deixou as suas marcas de influência até aos dias de hoje. Caracterizado pela crueza das imagens, é nos ambientes mais desfavorecidos da sociedade que o Realismo Britânico encontra o seu espaço ideal. Entre o esmagamento de uma realidade dura e desfavorável e um comportamento humano cuja fronteira entre a crueldade e a solidariedade é uma linha quase imperceptível, correm os personagens de um destino despojado de qualquer tipo de esperança. Na construção e desenvolvimento deste conceito de cinema encontramos o papel decisivo da obra de Loach.
Ken Loach chega à BBC em 1962, iniciando uma carreira que esteve sempre muito próxima do fenómeno televisivo. Começa por dirigir episódios da série Z CARS, e a peça para televisão UP THE JUNCTION (65). No ano de 66 inicia uma parceria com o produtor Tony Garnett, com o documentário dramatizado (docudrama) CATHY COME HOME, sobre a vida dos sem abrigo.
O binómio Loach/Garnett chegou mesmo a tornar-se termo genérico para designar alguns dos melhores “docudramas” realizados nas décadas de 60 e 70, abrindo espaço para acesos debates no seio da esquerda artística.
Discutia-se acerca do “realismo progressivo”, bem como da pureza realista onde a utilização misturada de realidade e ficção estava longe de ser uma questão pacífica. A utilização dos actores e da câmara ganhavam com Loach uma nova expressividade, nomeadamente no paradoxo que poderíamos qualificar de “ espontaneidade ensaiada”. Actores e não actores envolviam-se em cena, sintetizados pelo aparente improviso do seu desempenho.
Por outro lado o estilo documental da utilização da câmara acabava por criar um efeito não ensaiado de realismo. Sendo a realidade o objecto do olhar, não o era na sua feitura. A realidade absoluta era filtrada pela linguagem cinematográfica para que os contornos do seu retrato fossem mais nítidos. Porque todos os efeitos do trabalho final se conjugavam no retrato mais honesto das suas consequências. Vamos encontrar um resultado final do que acabámos de referir em filmes como KES (69) e FAMILY LIFE (71).





OS DOIS LADOS DA MOEDA


Em termos temáticos, os filmes de Loach são uma busca obsessiva da realidade e dos seus efeitos no caminho dos seus personagens. Nessa busca desenha-se um compromisso do seu criador com dois elementos fundamentais: o lado escondido da memória e o lado dos vencidos.
Introduzindo o debate político no cinema, assina uma série de trabalhos distribuídos pelos movimentos sociais e pela acção administrativa do seu país. Nesta última categoria vamos encontrar um tema recorrente na sua obra, ou seja a relação secular ocupante/ocupado entre a Inglaterra e a Irlanda. A ela dizem respeito filmes como HIDDEN AGENDA (90), o já referido THE WIND THAT SHAKES THE BARLEY e ainda um extraordinário episódio para televisão da série DAYS OF HOPE (75). Neste capítulo podemos resumir três estádios fundamentais: a) a revolta do movimento de libertação e a consequente e brutal reacção das forças britânicas de ocupação; b) os acordos que permitem a independência da nova República da Irlanda e a manutenção do Ulster na coroa britânica; c) a guerra civil entre irlandeses e a continuação no Norte da acção armada do IRA. Ao longo dos filmes desenrola-se o discurso histórico contado através do percurso dos personagens individuais. Político? Claro que sim se tivermos em conta que abordar qualquer tema histórico é inevitavelmente cair no discurso político. E se o tema estiver perto da história contemporânea, além do político podemos juntar-lhe o adjectivo “incómodo”. É sempre incómodo falar das condições de vida dos desempregados, dos sem abrigo, da desigualdade e má distribuição da riqueza, tal como é igualmente incómodo dizer que apesar de vítimas os desfavorecidos também são cruéis, despóticos ou violentos com outros. A essência da humanidade é assim.
Resta deixar apenas uma breve referência ao filme político a esse monumento cinematográfico que retrata a Guerra Civil Espanhola e que recebeu o prémio para o melhor filme do ano em 1995. LAND AND FREEDOM é um filme de referência obrigatória a muitos níveis que recebeu dos dois lados da crítica o extremo qualificativo. O cinema não é nem nunca pretendeu ser uma visão absoluta da história ou da política, antes pelo contrário. É antes ponto de partida de reflexão e debate, varinha agitadora da consciência e rastilho de discussão. Nesse aspecto os filmes de Ken Loach devem ser entendidos enquanto janelas de abertura para os temas retratados. Como se numa biblioteca de imagens encontrássemos as ferramentas necessárias ao nosso desenvolvimento e ao nosso conhecimento enquanto seres conscientes.


ARTUR GUILHERME CARVALHO

• FILMOGRAFIA
2010 Route Irish

2009 Looking For Eric

2007 It's a Free World...

2007 Cada Um o Seu Cinema (segment "Happy Ending")

2006 The Wind That Shakes The Barley

2005 McLibel (documentary) (re-enactments)

2005 Tickets

2004 Ae Fond Kiss...

2002 11'09''01 - September 11 (segment "United Kingdom")

2002/I Sweet Sixteen

2001 The Navigators

2000 Bread and Roses

1998 My Name Is Joe

1998 McLibel (documentary) (re-enactments)

1997 The Flickering Flame (documentary)

1996 Carla's Song

1995 Land and Freedom

1995 A Contemporary Case for Common Ownership (documentary short)

1994 Ladybird Ladybird

1993 Chuva de Pedras

1991 Riff-Raff

1990 Hidden Agenda

1989 The View from the Woodpile (TV documentary)

1986 Fatherland

1984 Which Side Are You On?

1983 The Red and the Blue: Impressions of Two Political Conferences - Autumn 1982 (TV documentary)

1983 Questions of Leadership (TV documentary)

1981 Looks and Smiles (as Kenneth Loach)

1981 A Question of Leadership (TV documentary)

1980 Auditions (TV documentary)

1980 The Gamekeeper

1979 Black Jack

1971-1977 Play for Today (TV series)
– The Price of Coal: Part 2 (1977)
– The Price of Coal: Part 1 (1977)
– The Rank and File (1971)

1975 Days of Hope (TV mini-series)
– 1926: General Strike (1975)
– 1924 (1975)
– 1921 (1975)
– 1916: Joining Up (1975)

1973 Full House (TV series)
– Episode dated 13 January 1973 (1973)

1973 A Misfortune (TV movie)

1971 Vida em Família (as Kenneth Loach)

1971 ITV Saturday Night Theatre (TV series)
– After a Lifetime (1971)

1971 The Save the Children Fund Film

1969 Kes (as Kenneth Loach)

1965-1969 The Wednesday Play (TV series)
– The Big Flame (1969)
– The Golden Vision (1968)
– In Two Minds (1967)
– Cathy Come Home (1966)
– The Coming Out Party (1965)
See all 10 episodes »

1967 Poor Cow

1964 Diary of a Young Man (TV series)
– Life, or a Girl Called Fred (1964)
– Marriage (1964)
– Survival or They Came to a City (1964)

1964 Z Cars (TV series)
– The Whole Truth... (1964)
– A Straight Deal (1964)
– Profit by Their Example (1964)

1964 Teletale (TV series)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

UMA TRIBO À DERIVA



Não têm uma equipa...Não têm um treinador...Não têm um dirigente desportivo...Não têm uma Direcção...E não têm vergonha.

E têm uma massa associativa que não merecem, nem respeitam nem dignificam.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

AQUI OU NO LUGAR DE SEMPRE

Deixo a cidade para trás, depois de um dia de trabalho. Mais um. Tudo aconteceu como era suposto acontecer, sem sobressaltos, igual aos outros dias. Por isso não me lembro de nada. Estamos lá mas não estamos. As coisas correm sozinhas pelas suas vias próprias de comunicação, qual estruturas industriais perfeitas e gigantescas. A nós cabe-nos o papel de guarda-nocturno, turnos de vigia, verificações, registos. Só actuar em caso de anormalidade, de falha na estrutura. E depois, a vida, as bebedeiras e o sexo, as questões em debate no sofá do Psicólogo, as manhãs nostálgicas em frente ao mar, as refeições em silêncio com os rostos de todos os dias, a morte dos outros, a nossa. Até o carro percorre o caminho para casa sozinho sem precisar de grande intervenção minha. De repente saímos e de repente um portão. A casa onde moro e um espaço enorme sem nome nem conteúdo entre a partida e a chegada.
Um puto de bibe num recreio da escola aproxima-se das grades e observa o exterior com receio e curiosidade. Um adolescente irreverente debate-se dentro de uma onda demorada como uma peça de roupa na centrifugação da máquina de lavar. Julga que vai morrer. A seguir à aflição, desiste. Embrulha-se com o inevitável e espera. A onda devolve-o com jeitos de sabedoria. “ Vai-te lá embora e toma mais cuidado da próxima vez”.
Em vez do caminho directo a casa apetece-me beber qualquer coisa. Tento convencer o carro a alterar o rumo. Um Gin Tónico (com maiúsculas porque estou cheio de sede) numa esplanada em frente ao mar. Uma rapariga simpática que flutua com uma bandeja na mão. Um peito muito agradável e apelativo. Um quadro de Van Gogh no Reyksmuseum em Amsterdão depois de uma pausa num Coffee Shop. E ao fundo as palavras de um poema, as imagens de um filme a brincar entre a espuma das ondas e os reflexos do Sol. Como um gato que tive e que me desafiava para a brincadeira.
A sensação cada vez mais nítida de um campo de férias no fim das aulas. Um planeta para visitar, um espaço existencial temporário que de lazer pouco tem. Um caminho mais pedregoso do que confortavelmente pavimentado. Um tempo que terminará antes de voltar a casa. Um estágio, um tirocínio, um saco de pedras para carregar a que se chamam “mágoas”, uma possibilidade de crescimento, uma valente porra. E um espaço mínimo de resistência que não envelhece nem fica mais fraco. Uma vela mínima que arde mas que não apaga. Uma luz que me lembra quem sou, mesmo quando já quase me esqueci de mim. E que me manda pensar, estar atento, não desligar. Daí o espanto infantil vestido com um bibe a observar o mundo lá fora, daí a onda a que não se resiste, daí o eterno desalinhamento em relação a tudo o que se apresenta como inevitável, completo, absoluto.
O segundo Gin mais lento a escorregar e o Sol de Outono a anunciar o Natal. Não me arrependo de nunca estar dentro do contexto, nem de não ter mais nada a não ser dúvidas, nem de me ter limitado a viver enquanto a vida corria, nem de ter amado. A grande vantagem da Lucidez é conseguir chegar ao fim e não ter nada a ensinar nem exemplos para anunciar. Apenas ajudar a pensar, aliviar o peso das pedras, sorrir como se nada fosse. Olhar para um miúdo e ajudá-lo a encontrar segurança. Mostrar-lhe que “não custa nada”. Mesmo quando dói bastante a ponto de parecer que não vamos conseguir aguentar.
A Vida é uma casa alugada, não a comprámos. Viemos estagiar neste campo a que não pertencemos. Por isso tantas coisas nos fazem tanta confusão, por isso não embarcamos em tantos comboios. Porque a pequena vela que insiste em se manter acesa é como o testemunho de uma memória que fala sem a conseguirmos ouvir. A memória do “Ser” que somos, o autocarro, o caminho de regresso a casa.
E entre as ondas, o Princípio e o Fim, um gato atrevido e as palavras de um poema por escrever brincam às escondidas, um portão de uma casa onde sempre morei, uma frase suspensa de significado, uma empregada simpática em decote sorridente, a obrigação de ser eterno, o amor ao próximo, a consciência instintiva, um quadro do Van Gogh, a Vida eterna que corre solta pelo corredor vestida com um bibe azul e branco da cor do mar…

Artur

NEVER GONNA BE ALONE


Nickelback - Never Gonna Be Alone[Official Videoclip]
Carregado por bRu7-eXeC. - Videos de musica, clipes, entrevista das artistas, shows e muito mais.
Time, is going by, so much faster than I
And I'm starting to regret not spending all of here with you
Now I'm wondering why I've kept this bottled inside
So I'm starting to regret not selling all of it to you
So if I haven't yet, I've gotta let you know

You're never gonna be alone from this moment on
If you ever feel like letting go, I won't let you fall
You're never gonna be alone, I'll hold you 'til the hurt is gone

And now, as long as I can, I'm holding on with both hands
'Cause forever I believe
That there's nothing I could need but you
So if I haven't yet, I've gotta let you know

You're never gonna be alone from this moment on
If you ever feel like letting go, I won't let you fall
When all hope is gone, I know that you can carry on
We're gonna see the world out, I'll hold you 'til the hurt is gone

Oh, you've gotta live every single day
Like it's the only one, what if tomorrow never comes?
Don't let it slip away, could be our only one
You know it's only just begun, every single day
Maybe our only one, what if tomorrow never comes?
Tomorrow never comes

Time is going by so much faster than I
And I'm starting to regret not telling all of this to you

You're never gonna be alone from this moment on
If you ever feel like letting go, I won't let you fall
When all hope is gone, I know that you can carry on
We're gonna see the world out, I'll hold you 'til the hurt is gone

I'm gonna be there always
I won't be missing a word all day
I'm gonna be there always
I won't be missing a word all day

terça-feira, 2 de novembro de 2010

DUQUES E VALETES


















CARTA ABERTA AO PROFESSOR DOUTOR JOÃO DUQUE



Um amigo, cujos critérios de selecção de notícias e da respectiva relevância para a vida nacional muito prezo, fez-me chegar cópia do despacho publicado em Diário da República de 25 de Outubro de 2010:


"Por despacho do Presidente do Conselho Directivo do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, de 1/9/08, proferido por delegação do Reitor da mesma Universidade de 25/7/07:

Eduardo de Almeida Catroga - contratado , por conveniência urgente de serviço, em regime de contrato administrativo de provimento, para o exercício das funções de Professor Catedrático Convidado a tempo parcial 0 %, além do quadro deste Instituto, com efeitos a partir de 1 de Setembro de 2008 (não carece de visto prévio do T.C.).


26 de Maio de 2010 - Professor Doutor João Duque"



Quando li, e li muitas vezes, não quis acreditar. É que, fique V. Exa. sabendo, este meu amigo é dado a partidas, graçolas, farsas avulsas, palhaçadas, enfim. E fui verificar. E de facto lá estava, escarrapachado no órgão oficial esta bizarra nomeação que, extra quadro, nomeia um professor a tempo parcial 0%, por conveniência urgente de serviço, com efeitos retroactivos a 2008. Não podendo continuar a duvidar desta evidência (se não pudermos acreditar no D.R., vamos acreditar em quê ?), comecei a duvidar que fosse V. Exa. o autor desta inusitada nomeação. Um telefonema para o ISEG tirou-me todas as dúvidas : "que não senhor, que o Professor Doutor Jão Duque era o único Presidente com esse nome na instituição, que não havia outro, que era impossível confundir o senhor Professor Doutor com qualquer outra personalidade, que não havia confusão de nomes". Não conseguindo descortinar outras hipóteses (como sabe, as hipóteses são realidades alternativas a esta em que vivemos, ou julgamos viver), atrevo-me a dirigir-me a V. Exa. para que de uma vez desfaça este imbróglio, livrando-nos da angústia em que vivemos (utilizo o plural de forma, quiçá, abusiva, já que presumo a existência de outros portugueses sobreexcitados com este enigma). É que, veja V. Exa., o mesmo Professor João Duque que, semana após semana, em parceria com o Dr. Medina Carreira, partilha com a plebe as suas doutas opiniões de reputado catedrático de Economia (e Presidente do ISEG), apontando o Estado Social como o grande responsável pela anunciada bancarrota do país, e a redução drástica da despesa como o único caminho capaz de evitar a sobredita falência do país, não pode ser o mesmo Professor Doutor João Duque que, na instituição a que preside, contrata amigos e conhecidos, a tempo parcial 0 e com efeitos retroactivos a 2008, a não ser que o amigo Dr. Catroga trabalhe pro bono, isto é, sem aumentar um cêntimo à despesa pública, a tal que é preciso reduzir drasticamente.


Pelo exposto, peço-lhe, rogo-lhe, não nos deixe nesta dúvida, neste dilacerante e exasperante sobressalto: haverá tal como no clássico "Dr. Jekyll And Mr. Hyde", um Professor Doutor João, científico e opinativo, inimigo acérrimo do aumento da despesa , eminente moralizador da vida pública portuguesa, castigador do Estado Social, e um Sr. Duque, gastador, capaz de dar emprego a amigos e conhecidos, aumentando assim a despesa e contribuindo um pouco mais para as reformas douradas que atravancam e desmoralizam as nossas já depauperadas finanças ?
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com os melhores cumprimentos:
Arnaldo Mesquita

domingo, 31 de outubro de 2010

O TOCADOR DE BAIXO



Eras homem de poucas falas, o que só ajudava a aumentar as dimensões do mito à tua volta. Durante anos julguei que era um truque para engatar miúdas. Mas não. Tudo o que girava à tua volta era um composto nebuloso de lenda e mistério. Nem a tua idade certa conseguimos saber. Enquanto ainda andávamos a “pastar” no liceu, já tu trabalhavas há vários anos naquela editora de livros para crianças. Mas no bairro os mais velhos garantiam que nem sempre tinhas sido assim. Foi quando voltaste de África que te transformaste num ser diferente…o único que eu conheci. Calado, misterioso, que acompanhava todas as nossas maluqueiras com o baixo, sem questionar. Nunca havia conflitos de interesse criativo. Esperava pelo teu autocarro à quinta-feira, o dia dedicado à falta de jantar, para seguirmos juntos para o ensaio. Caminhava a teu lado como um tagarela. Despejava baldes de palavras e recebia um sorriso ou um resmungo de volta, uma vez por outra. Quando alguém te perguntava directamente qualquer coisa sobre a vida, a morte, a guerra, a tua resposta não variava muito. Inclinavas-te meditativo sobre o baixo a contemplar as caixas de ovos que isolavam as paredes no estúdio. “Sabes, pá…há coisas que só passando por elas…Cada um lê o mesmo livro de maneira diferente.” E pronto. O resto da noite selava-te a boca e só os dedos agarrados às cordas do baixo se faziam ouvir.
Demorei muito tempo a perceber se era teu amigo. Eu achava que sim embora não tivesse a certeza. Nunca te perguntei nada sobre isso para não ouvir uma resposta daquelas que não queria. Mas houve uma tarde em que percebi. Foi quando estávamos a tocar numa escola nos arredores de Lisboa. Estavas dentro da música ou a música estava dentro de ti, o que vai dar ao mesmo. A minha batida saía ao ritmo correcto ao fim de meses a assassinar bombos e tambores. E o baixo parecia que tocava sozinho, sem esforço. Tu dançavas para lá e para cá como um deus que acabava de regressar a casa. O teu casaco comprido desenhava a envergadura das asas que te levavam para muito longe, para os paraísos da harmonia. Eras tu sozinho e nada mais existia. Ias caminhando e dançando na direcção da luz dos bastidores, deixando para trás uma sombra mágica de expressão, uma forma para a qual todas as palavras eram supérfluas. Nessa noite transmiti-te essa “fotografia” da silhueta do baixo que desaparecia a caminho da luz. Só não te disse que tinha percebido que éramos amigos. Tu viraste metade de uma caneca de cerveja e arqueaste as sobrancelhas numa expressão de espanto natural. “Sabes, há coisas que só passando por elas… cada um lê o mesmo livro de maneira diferente”.
E lê mesmo. Ontem não foi muito agradável ler uma costura gigante a decorar a metade rapada da tua cabeça. Parecia um adereço “Punk” fora de moda. Nem me é agradável antever os teus próximos dias enfiado no folclore do combate ao tumor que era maligno, ao desalinhamento das diabetes, à progressiva implosão do corpo. E à pergunta da praxe, respondeste com a mesma calma de sempre. “Sabes como é…só passando por elas”.
Sei que somos amigos, sei que não tens medo. Talvez uma pequena tristeza de estar agora a passar por isto tudo. Mas tens uma vida cheia de acontecimentos fantásticos que não partilhaste com ninguém, uma “marmita” existencial plena, um bilhete que te permitiu andar em todos os carrosséis. A tua partida não será mais que uma repetição. A tua condição divina reconfirmada, repleta de lendas e mistérios que te acompanharão como bagagem. És um deus que eu vi um dia a caminhar para a luz a balouçar um baixo que tocava sozinho. Uma silhueta de quem fui amigo. Uma canção que nunca vai sair de moda porque não pertence a tempo nenhum. Se esperares um bocadinho, daqui a nada estou a dirigir-me para a saída do palco. A mesma por onde passaste. Vou deixando para trás uma silhueta muito mais pequena que a tua e voltar a beber umas cervejas seja lá onde for. Porque…há coisas que só passando por elas… E o livro que me emprestaste lê-se de muitas maneiras. Uma por cada leitor que lhe pega…
Artur

sábado, 30 de outubro de 2010

AGUENTAR...


Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CADAVRE EXQUIS



"Le dur désir de durer" - Paul Éluard


NOTA PRÉVIA: Um amigo, cujas opiniões muito prezo, alertou-me para o facto de os meus pobres escritos neste blog estarem feridos de morte pela raiva, acrimónia e azedume que encerram. Assim, louvando-me no poder e justeza dos seus argumentos, resolvi emendar-me, converter-me, corrigir-me, tornando-me cordato, sensato, consensual, apaziguador, materializando-se este esforço na:

CARTA ABERTA AO CANDIDATO, SUA EXCELÊNCIA PROFESSOR DOUTOR ANÍBAL CAVACO SILVA.


V. Exa.:

Serve a presente para transmitir a V. Exa. o desgosto que me causou o tom de cerimónia fúnebre com que foi embrulhado o anúncio da candidatura de V. Exa. a um novo mandato como Presidente da nossa República. Uma ocasião que, outrossim, se queria festiva, cheia de esperança e confiança no futuro, revelou-se afinal uma função soturna, cinzenta e sem qualquer rasgo de alegria ou de emoção. Qualquer coisa assim como uma comunicação ao país de uma vitória antecipada, a fazer lembrar as comunicações do defunto e saudoso Almirante Américo de Deus Thomaz. Mas, não se iluda V. Exa. quanto a isso, não foi apenas uma questão de estética ou de estilo que me embaraçou. Pelo contrário, foram diversas questões substantivas e de fundo que acabaram por defraudar as altas expectativas que depositei na solene ocasião, e que passo a partilhar com V. Exa.. Sem qualquer preocupação metodológica, começo pelo fim, já que por algum lado se há-de sempre começar. Lamento profundamente que tenha declarado não acreditar em utopias nem fantasias. Relembro-lhe que utopia é um derivado da palavra grega utopos, que significa "lugar que não existe". Ora, será difícil que alguém acredite ou deixe de acreditar em lugares que não existem. No entanto, se quisermos levar a hermenêutica um pouco mais além, sempre diremos que as utopias, não sendo questão de crenças, são construcções intelectuais, mundos possíveis, alternativos, sistemas de organização política, social e económica relacionadas com determinadas estruturas conceptuais que respondem a um imenso estendal de questões que os homens sempre colocaram sobre as formas de vida em comum, de progresso e de aperfeiçoamento material e espiritual. Nesse sentido, uma obra como "A República" (escrita por Platão no século IV a.c.) pode ser considerada como uma utopia, para além de ser uma espécie de radiografia do pensamento político e filosófico da sua era, característica partilhada por todas as utopias dignas desse nome. Por outro lado, a afirmação ainda me espantou mais quando me recordei que V. Exa., há alguns anos, declarou ser "A Utopia" o seu livro preferido. Na altura, enganou-se, atribuindo-o a Thomas Mann (escritor alemão do século XX, autor de "A Montanha Mágica", "Morte Em Veneza", etc.), quando ela foi escrita por Thomas More (escritor e santo inglês do século XVI, que concebeu a sua obra como idealização de um Estado capaz de realizar plenamente as potencialidades humanas, dentro de critérios ético-morais e humanistas abrangentes. De passagem, note-se que a obra é usualmente considerada como uma crítica feroz da situação política e social da época). No que às "fantasias" diz respeito, cabe-me perguntar se haverá maior fantasia do que aquela que consiste em fazer promessas que consabidamente não podem ser cumpridas; em 2005 V. Exa. referiu-se ao seu vasto conhecimento em matéria económica e financeira e experiência nesses domínios como uma mais-valia da sua eleição, já que poderia colocar experiência e conhecimento ao serviço do país, melhorando-lhe a condição. Ontem, reiterou essa mesma promessa fantasiosa. Também considerei um pouco excêntrico o anúncio relativo às suas despesas de campanha : metade do montante legalmente autorizado e nada de cartazes -também conhecidos como "outdoors". Excêntrico, mas moralizador. Pedindo-lhe que me perdoe o atrevimento, sugeria-lhe que abdicasse das pensões e reformas que acumula com o seu salário, tornando assim o seu exemplo universal e poderosamente motivador para toda a classe política, algo assim como um imperativo categórico (I. Kant "Crítica da Razão Prática", Alemanha, século XVIII). Não me surpreendeu a magnífica avaliação do seu mandato, não podendo no entanto concordar com essa visão mirífica. Com confessada mágoa declaro que tenho do seu mandato uma péssima opinião, que me leva a classificá-lo na categoria mau ou, vá lá, medíocre. Não entrarei na questão da interpretação que V. Exa. faz dos poderes presidenciais, pois tal conduziria inevitavelmente a um nível de enunciados psico-morais no qual não pretendo envolver V. Exa.. Restrinjo-me a enunciar dois factos exemplificativos da interpretação errónea da sua magistratura: durante o ano de 2009 (ano em que se realizaram três actos eleitorais), V. Exa. arrastou durante meses a questão do estatuto político-administrativo dos Açores, abrindo uma guerra desnecessária com o Governo e o partido que o apoia, tentando, quiçá, favorecer o principal partido da oposição, na altura dirigido pela sua amiga pessoal e correlegionária política, Dra. Manuela Ferreira Leite. Esta leitura do facto sustenta-se na evidente falta de razões para esse arrastamento e por essa dilação. O segundo facto consiste na lamentável questão das "escutas" e da comunicação que então fez ao país, em plena campanha eleitoral. Se a intervenção presidencial no jogo partidário e eleitoral não foi propositada e resultou de mera coincidência temporal, torna-se ainda mais grave, revelando grande inconsciência política. Finalmente, sublinho o facto de V. Exa. se ter interrogado, estendendo a interrogação a todos os portugueses e comprometendo-os na eventual resposta, sobre o que seria o país se não tivesse beneficiado da sua magistratura. Pior ? Seria muito difícil...
Espero que me perdoe o desabafo e este partilhar de mágoas e decepções, evidenciando uma manifesta incapacidade de me exprimir em português correcto e tendo que recorrer a um vocabulário rude e a uma síntaxe pobre. Não me agradeça; eu pertenço à metade dos portugueses que gostariam de o ajudar a terminar com dignidade o seu mandato.

Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com os melhores cumprimentos, colocando-me ao seu dispor para tudo aquilo que entender necessário

Arnaldo Mesquita

terça-feira, 26 de outubro de 2010

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

YELLOW



Quando um grupo de amigos se junta, acontecem momentos como este. A plateia fica hipnotizada e até os velhos do camarote se calam. A amizade, a arte e a harmonia juntas, perfazem as únicas estações do caminho que valem a pena recordar. Um pequeno tributo a Jim Henson.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Angelus Novus, Walter Benjamin e A Corja 3



CATÁSTROFE ATRÁS DE CATÁSTROFE, RUÍNA APÓS RUÍNA

A Corja agita-se freneticamente. Pode agora atirar-se ao Orçamento como os cães à carniça, lamentar-se e choramingar, cumprindo a função de carpideiras para o qual os oficiantes da Corja são naturalmente talhados. A mãe de Boabdil, último sultão de Granada, ao ver o filho carpir a mágoa de ter perdido a cidade para os Reis Católicos lançou-lhe, com verrinosa crueldade, o dito que mais parece um anátema: "Chora agora como uma mulher aquilo que não soubeste defender como um homem". Aos do PSD já lhes cheira a poder, tal como aos porcos cheira a lavadura: agitam-se as hostes salivando ao cheiro de empregos, prebendas, privilégios e sinecuras a distribuir. A Corja e a seita social-democrata tratam de obliterar a sua quota-parte de responsabilidade no estado pré-comatoso, pré-caótico a que este pobre país chegou, ignorando olimpicamente um outro documento, recentemente editado, que escava fundo nas areias movediças do regime, encontrando uma das raízes do nosso actual problema; falo do livro "Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro", do Juiz Carlos Moreno do Tribunal de Contas. Nele são denunciados sem piedade todos os conluios, negociatas, acordos escuros e outras formas criminosas através dos quais os governos Cavaco, Guterres, Barroso, Lopes e Sócrates esbanjaram em negócios ruinosos para o Estado o dinheiro dos contribuintes e que, através das famosas parcerias público-privadas, conduziram o país ao actual descalabro. Cito, de tão exemplar que é, o caso do Eng. Ferreira do Amaral que, na qualidade de Ministro das Obras Públicas, assinou um dos mais escandalosos e ruinosos contratos com a Lusoponte. O referido senhor é, desde que abandonou funções governativas, pasmai almas inocentes, administrador da Lusoponte. Esta gente, que nunca produziu nada, em contribuiu com nada para o bem comum, faz lembrar o parasita que se alimenta do sangue do hospedeiro até o esgotar e levar à morte, mudando-se em seguida para outro hospedeiro. Foi assim que encheram os bolsos, através de relações, contactos, amizades e conluios, como os mafiosos, com a subtileza e altivez que falta aos seus congéneres criminais. Para eles, cito um passo do Padre António Vieira do "Sermão do Bom Ladrão":

"O que só digo e sei, por ser Teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos Princípes de Jerusalém : Principes tui socci forum : os teus Príncipes são companheiros dos ladrões. E por quê ? São companheiros dos ladrões porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões porque os consentem; são companheiros dos ladrões porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões porque os defendem; e são finalmente companheiros dos ladrões porque os acompanham e hão de acompanhar ao Inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo."

O que foi que Isaías disse e que Vieira cita ? "os teus príncipes são infiéis, companheiros dos ladrões; todos eles amam as dádivas, andam atrás das recompensas. Não fazem justiça ao órfão e a causa da viúva não tem acesso a eles" Isaías 1.23

Não precisamos temer, como os romanos, a invasão dos sevandijas. Eles já cá estão.

BENJAMIN

Para melhor compreender o conceito de "interrupção histórica", proponho-me analisá-lo em primeira instância como um conceito polémico e provocatório, isto é, pela via da confrontação de Benjamin com o historicismo e com a historiografia racionalista e socializante do progresso, confronto que está na origem das famosas "Teses Sobre o Conceito de História". Lembremos que a crítica de Benjamin não se dirige apenas à ideologia do progresso da social-democracia nem à erudição laxista, pretensamente desinteressada do historiador; atrás destas escritas aparaentemente contraditórias da História, Benjamin visa a própria concepção do "tempo homogéneo e vazio", esse tempo indeiferente ao infinito que se escoa, igual a si-mesmo, afogando à sua passagem o sofrimento, o horror e também o êxtase da felicidade. A historiografia que repousa sobre esta concepção trivial do tempo como cronologia linear opera na base de dois princípios narrativos complementares: desde logo um conceito totalmente brusco de causalidade histórica, como se a sucessão cronológica fosse sinónimo de uma relação substancial de necessidade histórica. A isto opõe Benjamin um conceito pleno do tempo de agora, ao mesmo tempo surgimento do passado no presente e "evento do instante", "do que começa a ser..que deve pelo seu nascimento nascer de si-mesmo, vir a si, sem partir de nenhuma parte".


CONTINUA



terça-feira, 19 de outubro de 2010

THE LUNATICS





The lunatic is on the grass
The lunatic is on the grass
Remembering games and daisy chains and laughs
Got to keep the loonies on the path
The lunatic is in the hall
The lunatics are in my hall
The paper holds their folded faces to the floor
And every day the paper boy brings more
And if the dam breaks open many years too soon
And if there is no room upon the hill
And if your head explodes with dark forbodings too
I'll see you on the dark side of the moon
The lunatic is in my head
The lunatic is in my head
You raise the blade, you make the change
You re-arrange me 'till I'm sane
You lock the door
And throw away the key
There's someone in my head but it's not me.
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear
And if the band you're in starts playing different tunes
I'll see you on the dark side of the moon

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ANGELUS NOVUS, WALTER BENJAMIN E A CORJA - PARTE 2







TREMENDISTAS : TREMEI !
Os tremendistas, brilhantemente capitaneados por Medina "Olho-Maroto" Carreira, têm estado relativamente calmos. Nos últimos dois dias comoveram-se até às lágrimas com o milagroso salvamento dos mineiros chilenos e emocionaram-se com a vitória da selecção nacional contra a poderosa equipa islandesa. Hoje, pelo contrário, voltam a agitar-se : o seu saber económico de pacotilha ataca de novo, ante a expectativa da apresentação de um Orçamento que, antes mesmo de ter sido conhecido, já era por eles classificado como o pior documento do género desde a fundação da nacionalidade. Do alto da sua imensa sabedoria, a rapaziada comenta com o mesmo grau de certeza o impacto das medidas, a sua justeza e o contrário; aplaude ou desaprova a romaria dos banqueiros a S. Bento e à sede do PSD; o silêncio e a cumplicidade do Presidente Cavaco; as incertezas juvenis de Passos Coelho e todos os outros assuntos da actualidade político-económicas do país. Fazem lembrar aquilo que alguém disse sobre os Habsburgos : "Não aprenderam nada, não esqueceram coisa nenhuma". Os outros, optimistas ou moderados, parecem ter sumido da face da Terra, acrabunhados pela legião medino-carreirista, deixando sozinho o último e valoroso guerreiro nacional, o Ministro Teixeira dos Santos, esse émulo dos nossos heróis de Quinhentos, um paladino de grandeza épica, que declarava recentemente:
"Eu trabalho 24 horas por dia. E de noite, se for preciso, também"
DERIVA
Baudelaire, pessimista absoluto, foi mais longe do que esta canalha tremendista. Virá um tempo, dizia ele, em que a beleza não só será esquecida, mas em que o monstruoso será celebrado como beleza:
"O mundo vai acabar. A humanidade tornar-se-à decrépita. Um Barnum do futuro mostra aos homens degradados do seu tempo uma bela mulher de tempos antigos artificialmente conservada. "Eh, o quê ! dizem eles, a humanidade foi em tempos tão bela ?" Eu digo que isto não é verdade. O homem degradado admirar-se-à e chamará à beleza feiura"

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Angelus Novus, Walter Benjamin e a Corja - Parte 1 1/2



IDÓLATRAS

Nas últimas semanas o referencial Medina "Freak" Carreira mudou. O que agora é discutido é a possibilidade de não ser aprovado o Orçamento de Estado para 2011. Os tremendistas da Corja sublinham com a histeria que os caracteriza - e cujos sintomas mais evidentes são os olhos em alvo, um traço de suor no buço, o pulso acelerado e outros fenómenos fisiológicos, motores e emocionais que assolam o crente em presença do Divino - a reacção dos "mercados"a tão nefasto acontecimento. A idolatria perante esse deus iracundo e vingativo, o temor reverencial perante Maimon e o seu poder, obscurece a mente dos membros da seita. Seria bom que reflectissem sobre a seguinte tese : os processos do moderno capitalismo financeiro ameaçam a sobrevivência da Democracia, colocam em risco o nosso modo de vida e prometem um regresso à barbárie pré-moderna.

BENJAMIN

Existem pensadores sistemáticos, organizados, com uma profundidade capaz de abarcar o Mundo e tudo o que ele contém. O pensamento de Walter Benjamin é desorganizado, caótico, fragmentário, sem nenhuma ambição totalizante. É o único pensador contemporâneo capaz de nos comover. A sua linguagem implica uma metafísica e uma relação teológica com a História.

TESE

Gostaria agora, para benefício da Corja, de reflectir sobre um dos aspectos mais acutilantes do pensamento de Benjamin. Nas "Teses Sobre o Conceito de História" a tarefa do historiador materialista é definida essencialmente pela produção de rupturas, ou fracturas, que escandem a narrativa e que não são simples marcas da desorientação moderna ou do fim de uma visão universal e coerente; são também indícios de uma falha essencial de onde pode emergir uma outra história, uma outra verdade (de onde podem nascer outras histórias, outras verdades. Possibilidade nunca garantida. Longe de apresentar um outro sistema explicativo ou uma "contra-história" plena e válida, oposta e simétrica da história oficial, a reflexão do historiador deve provocar um sobressalto, um choque que paralize o desenrolar falsamente natural da narrativa. Breve, mutio em breve, voltarei a este conceito de interrupção da História.

LEITURA DE CASA PARA A CORJA

"O Fim da História e o Último Homem" de Francis Fukuyama

CONTINUA

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Angelus Novus, Walter Benjamin e a Corja


“Não é um pobre povo; resiste aos profetas da desgraça e à própria desgraça”

Raul Brandão

“…e escutar os rumores do dia como se fossem os acordes da eternidade”

Karl Kraus



Nos dias que correm ,assistir aos telejornais ou ler os jornais portugueses transformou-se num exercício penoso, humilhante, nauseante e até vomitivo. A culpa é de um conjunto de paineleiros que se perpetuam até à exaustão e que vão rodando pelos diversos canais televisivos e pelos jornais diários e semanais, repetindo os mesmos lugares comuns (bem dizia Roland Barthes que a estupidez é a euforia do lugar…), martelando os teleouvintes com o mesmo discurso catastrofista, profetizando a desgraça. Esta seita do “prognóstico só no fim do jogo” ocupa-se e ocupa-nos com predições sobre o presente e baboseiras sobre o futuro, o que diz tudo sobre o carácter dos seus conhecimentos. Pena é que não os tenhamos visto nem ouvido antes da tempestade rebentar, ocupados que estavam em cuidar das suas vidinhas. Conhecemos bem os buracos de onde rastejaram : bancos e administrações públicas e privadas, consultadorias diversas e todas as prebendas, sinecuras e privilégios que conseguiram assegurar na sua longa e promíscua relação com uns e outros, sempre sentados à manjedoura dos dinheiros públicos, sempre prontos para se porem em bicos de pés para chegarem um pouco mais à frente na corrida às migalhas que caem do Orçamento de Estado. O mesmíssimo Estado a quem ladram quando as coisas correm bem, isto é, quando exigem menos intervenção e regulação estatal desde que as negociatas encham os bolsos dos seus patrões e correm a pedinchar apoios estatais quando as coisas descambam. Veja-se, a este propósito, a intervenção do Estado no BPN e no BPP e o aval dado aos restantes. São estas mesmas luminárias que não se cansam de culpar os funcionários públicos, os pobres e os desapossados pela crise actual, esquecendo os crimes de banqueiros, especuladores e financeiros cujas práticas lançaram milhões de pessoas na miséria e que continuam a lançar sobre as sociedades e sobre a política o pus execrável das suas acções. Compreende-se bem este silêncio : não convém morder a mão do dono que nos alimenta. Convirá também referir que todas estas criaturas, sem excepção alguma, fizeram parte dos sucessivos governos que, devido às más práticas, contribuíram enormemente para esta situação: foram eles que ao longo das últimas três décadas foram tecendo a nojenta teia de interesses, negociatas e branqueamentos que enredaram o Estado e as finanças públicas, manietando a decisão política e remetendo a mais nobre das práticas humanas para um papel de mera serventuária dos interesses privados. Portanto, e a respeito destes imbecis, está tudo dito. Referirei apenas dois exemplos que simbolizam na perfeição a matéria de que esta Corja é constituída: um deles, quiçá o mais evidente, chama-se Medina Carreira e notabiliza-se pelo massacrante discurso tremendista, pontuado aqui e ali por expressões do mais baixo nível, de um enorme mau gosto, boçalidade e vulgaridade. Já pouca gente liga ao conteúdo da sua retórica panfletária, sendo a atenção desviada pelas referias catilinárias e pelos tiques de um fácies que faz lembrar as personagens de certos filmes de terror. O outro, é uma espécie de Nosferatu de terceira categoria, dando pelo nome de Ernâni Lopes ( o tal que, in illo tempore, dançou alegre e servilmente o tango com o FMI) e pertence à clique que, escandalosamente, acumula pensões, reformas e salários milionários, uma delas obtida ao fim de meia dúzia de anos ao serviço do Banco de Portugal. Bem pode agora clamar pela redução de salários em 10, 20 ou 30 %. Do alto da sua superioridade moral e da intocabilidade ética, nunca será afectado por crise nenhuma.
Alonguei-me demais na caracterização da Corja. Resta dizer, para entrarmos naquilo que realmente é significativo, que estes profetas da desgraça, devotos do onanismo , iliteratos ferozes e analfabetos militantes nunca leram uma linha de Walter Benjamin, remédio que eu, de modo benevolente e pedagógico, lhes recomendaria como terapêutica para a doença de que padecem. Assim, e sem mais tardança, comecemos.

O quadro aqui reproduzido foi pintado por Paul Klee e oferecido a Gershom Scholem que, por sua vez, o ofereceu a Walter Benjamin. Ouçamos o filósofo alemão descrever a sua visão do quadro, um dos leit-motivs do fundamental texto “Teses Sobre o Conceito de História”:

“Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se amontoam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que chamamos progresso”

Por agora fico-me por aqui, ordenando à Corja (e já agora, a um certo Abranhos), o seguinte TPC:

- Relacione o texto de Walter Benjamin com o verso de Karl Kraus “A origem é o fim”.


CONTINUA

domingo, 10 de outubro de 2010

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

DE LUANDA A MAPUTO DE BICICLETA





Maputo, 6 da manhã. Em rumo automático fecho a porta do quarto do hotel e caminho para o elevador. Ainda meio a dormir encontro um tipo de mochila às costas, saco de viagem e uma enorme caixa de cartão, supostamente de acomodamento de um televisor de plasma (a avaliar pelas inscrições no exterior). Apresso-me a ajudá-lo a embarcar a bagagem no elevador sob pena de ficarmos ali o dobro do tempo. Enquanto descemos, meto conversa. Pergunto-lhe se não poderia ter vendido a televisão em vez de a carregar para cima, com todas as contrariedades alfandegárias inerentes. Num sorriso aberto ele responde-me que não se trata de uma televisão, mas de uma bicicleta. “Mesmo assim…” – fico eu a pensar. Apresentações feitas, antes de chegar ao nível da recepção fico a saber que estou a falar com Pedro Fontes e que acaba de atravessar o continente africano desde Luanda até Maputo…de bicicleta. “E quanto tempo demorou?” – pergunto eu. “Cinco meses” – responde ele num sorriso cativante de orelha a orelha – “Cheguei ontem”. Horas depois embarcávamos no mesmo voo com destino a Lisboa. Tivemos ainda tempo para trocar mais algumas impressões pelo caminho. Pedro Fontes, além de “ganda maluco”, é um tipo de uma simpatia transbordante, feliz decerto com a sua aventura concluída. Deixou-me os endereços na net e eu prometi-lhe que divulgaria a sua proeza no meu blog. No mapa apresentado, a rota inicial acabou por ser alterada a partir de Saurimo (Angola)(ver o segundo mapa). De facto, o Pedro entrou em Moçambique pelo Lago Niassa e rumou à costa para depois seguir para Sul a caminho de Maputo. Pedro: desejo-te as maiores felicidades e deixo-te um grande abraço. Manhãs como aquela em que te conheci fazem valer a pena deambular pelo mundo por profissão. Como se diz na minha terra: “Estamos juntos”…
Artur

Se quiserem obter mais informações sobre esta extraordinária odisseia, aqui ficam os contactos do Pedro.

luandamaputobybicycle@gmail.com
www.luandamaputobybicycle.blogspot.com

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

REVIVER O PASSADO EM BRIDESHEAD



Considerado pela maior parte da critica, como o melhor romance da obra de Evelyn Waugh (1903-1966), “Brideshead Revisited” é essencialmente uma viagem solitária aos confins do amor e da religiosidade. Com o sub-título “The Sacred And Profane Memories Of Captain Charles Ryder”, começamos por encontrar o narrador perante a antiga propriedade da família Marchmain, Brideshead, vinte anos depois de ter lá estado como visitante. Inevitavelmente, uma cascata de memórias vai precipitar-se sobre o agora capitão Ryder. Desde o seu primeiro encontro com Sebastien Flyte ( o filho mais novo de Lord Marchmain) em Oxford nos anos 20 até àquele dia, terá passado uma vida inteira. Uma vida que rapidamente galgou o muro da entrada aventureira e inexperiente da vida para os territórios da maturidade, do cinismo e do peso dos anos. Num ambiente aristocrático e privilegiado, Charles vai conhecer um mundo contraditório, onde a festa dos sentidos se combina com as contradições deprimentes da condição humana. Experimentando o amor e a boa vida, conhece também a frustração e a impossibilidade de ser feliz. A contradição de, feita a escolha, nunca se conseguir a plenitude da vontade por mais voltas que dermos à vida ou ao pensamento.
A primeira adaptação para o ecran de “Brideshead Revisited” ocorre em 1981. Produzida pela Granada Television para o canal ITN, transformou-se num marco importante na história da televisão. De tal forma que acabou por ser incluído na lista dos 100 melhores programas de televisão de sempre elaborado pelo British Film Institute. O seu palmarés incluiu 13 nomeações para os Prémios BAFTA (British Academy Television Awards) vence 7; 11 para os Prémios Emmy (Academia Americana de Televisão) vence 1; e 3 Golden Globe Awards (prémio atribuído pela imprensa de Hollywood) vence 2.
Servido por um elenco de luxo, os promissores Jeremy Irons, Anthony Andrews e Diana Quick, aparecem confortavelmente enquadrados num excelente grupo de veteranos (Laurence Olivier e John Gielgud).
Apesar da adaptação ter a sua própria dimensão narrativa, independente do romance, as alterações que se verificaram na versão cinematográfica de 2008 aniquilam por completo a grandiosidade da novela de Waugh, na medida em que se centram apenas em torno da relação entre Charles e Julia. De fora fica a relação homosexual (platónica ou material) entre Charles e Sebastien, o peso da religião na existência dos personagens e a localização de uma família tradicional num novo tempo que quase os extermina. Uma última referência para a banda sonora da autoria de Geoffrey Burgon, aqui homenageado no trailer de abertura.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

100 Anos de República

O jornalista pede à Dra. Maria Cavaco Silva para caracterizar a natureza do primeiro mandato como Presidente da República do Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva. No remanso algarvio da Vivenda Mariani, numa bela tarde de Agosto embalada por suaves brisas marítimas e cheiro a bronzeadores solares, a nossa Primeira-Dama responde:

- Muito sinceramente, e repare que esta é uma opinião pessoal, desinteressada e objectiva, eu penso que o meu marido, o Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva, tem governado muito bem, com muita moderação e equidistância, conduzindo os destinos do nosso país como só ele sabe e é capaz.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

PRIMEIRO FORAM OS CIGANOS


“Primeiro levaram os negros.
Mas não me importei com isso.
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários.
Mas não me importei com isso.
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis.
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados.
Mas como tenho meu emprego, também não me importei.
Agora estão me levando,
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht (1898-1956)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O DIA EM QUE NIETZSCHE CHOROU



Pinchas Perry

EUA, 2007

Estamos em Viena nos finais do séc. XIX. Louise von Salome, uma jovem poetisa russa procura os serviços do eminente Professor Dr. Josef Breuer no sentido de ajudar o seu amigo Friedrich Nietzsche, vítima de uma série de doenças misteriosas. As crises suicidárias persistentes que têm vindo a assombrar aquele brilhante e revolucionário pensador, correm o risco de se precipitarem num trágico e derradeiro fim. O recente método de tratamento experimentado pelo famoso médico, a cura através do diálogo com o paciente, é a sua última esperança. Apesar da recusa inicial do pensador em ser tratado por razões económicas, Breuer monta um sistema onde vai incluir o seu jovem assistente Sigmund Freud. Breuer finge ser ele o paciente e Nietzsche o portador da cura. Utilizando o método do diálogo enquanto terapia, o médico vai então dar início ao seu trabalho. Mas não é só o filósofo a sofrer com os seus demónios mentais. Também Breuer vive em desespero, acometido por insónias, pesadelos e uma obsessão destrutiva por uma paciente antiga. Assim começa um longo diálogo entre dois seres intelectualmente superiores que enquadra alguns dos aspectos mais relevantes do pensamento de finais do séc. XIX, pensamento esse que acabaria por entrar pelo século seguinte enquanto referência de influência.
Baseado no livro com o mesmo título, da autoria do Psiquiatra e Académico Irvin Yalom, o filme segue a mesma linha narrativa, não se baseando nenhum deles integralmente na realidade. De facto, o que o autor constrói é uma sucessão provável de acontecimentos, uns reais outros ficcionais, misturando-os numa sequência que respeita de uma forma honesta, tanto personagens como as suas vidas e características.
Estamos perante aquela tripla realidade plena (ler o livro, ver o filme, comprar a t-shirt), em que vale a pena apreciar todas e cada uma das dimensões desta interessante narrativa.
Servido por um lote de excelência de actores (Armand Assante/ Ben Cross/ Katheryn Winnick), este filme de produção independente ocupa o seu espaço sem dificuldades aparentes, desenrolando-se com tranquilidade à medida que aborda uma temática complexa, ou, pelo menos, de elaborada explanação.
Sabemos que muitos dos factos contidos na narrativa são reais, tal como os personagens principais. Provavelmente Nietzsche e Breuer nunca se encontraram, mas o médico e o pai da Psicanálise associaram-se para a feitura do livro “Estudos sobre a Histeria”. O tempo e o lugar da narrativa são também concordantes com a realidade. Apesar de não haver registo do encontro entre Lou e Breuer, nem sequer da preocupação da aristocrata russa pelo seu amigo, Nietzsche esteve em Viena naquele período. A Primavera de 1882 e o Inverno de 1883, foi um período bastante conturbado na vida de Nietzsche, como se pode inferir da sua correspondência. Lou, Paul e a sua irmã Elizabeth são destinatários de um estado de espírito de depressão e alienação. Mas é também durante este período que Nietzsche dá um novo rumo à sua vida intelectual, culminando com o fim do primeiro capítulo de “Assim Falava Zaratustra”.
A cuidadosa descrição da relação entre os primórdios da psicanálise e psicoterapia, e o pensamento filosófico de Nietzsche é a chave do sucesso desta narrativa. Enquanto a terapia psicanalítica se começava a desenvolver na direcção do tratamento da histeria, o séc. XIX assistia na civilização ocidental ao emergir do pessimismo existencialista. Kirkegaard, Dostoievsky, ou mesmo o poeta Holderling eram marcos deste sentimento. Nietzsche era outro dos exploradores desse desespero. Juntando o especialista da histeria com o do desespero, o que Yalom conseguiu foi levantar uma interessantíssima série de questões acerca da relevância da Filosofia Existencial na Psicanálise, e sobre o lugar da Ciência na vida humana. Ao acompanhar os diálogos entre dois seres desesperados, ambos convencidos que estão a ajudar o outro, médico e paciente perdem-se numa área turva e incerta, um fenómeno de inversão de lugares, que é em si uma interessante ligação histórica ao período em questão.

Artur