segunda-feira, 29 de junho de 2020

O CICLO DE COISA NENHUMA


O espaço esvazia-se, a utilidade perde-se, a vida respira muito baixinho numa fraqueza que diz: "…façam de conta que não estou aqui." E enrola-se sobre si mesma numa manta de medo e solidão. Se alguém vier…se alguém quiser saber dela vai ter muito onde procurar. Sobre o lodo da maré vazia a carcaça do barco vai apodrecendo desfiando-se com o tempo. Em breve será nada e nem uma memória restará para o lembrar. Primeiro é ausência…depois sofrimento…a seguir rotina e por fim esquecimento.
Falta água a este barco, falta um telhado naquela casa e no entanto as plantas continuam vivas, a vida continua a crescer apesar da ausência, apesar do fim. Talvez alguém venha um dia procurar qualquer coisa que já não existe. Uma memória teimosa e persistente empenhada em recordar. Mas só vai encontrar o espaço vazio, uma utilidade perdida, qualquer coisa que já respirou muito baixinho como que a dizer: "…façam de conta que não estou aqui." E enrolada na sua própria ausência, de forma muito tímida foi deixando de ser.

Artur







sexta-feira, 26 de junho de 2020

MAL DE ARQUIVO

A ideia de que o objecto da história e, em particular, os objectos da história de arte, tenham origem num movimento rememorativo, ao mesmo tempo que preenche uma expectativa de redenção, dá conta de uma catástrofe que não se pode evitar, a saber, a transformação da vida em cinzas. Na verdade, a história trata com cinzas, restos funerários e não é possível pôr entre parêntesis a dominância destrutiva desse elemento catastrófico. Benjamin di-lo da melhor maneira: “O que passou, o já não existir, trabalha apaixonadamente no seio das coisas. A isso confia o historiador o seu interesse. Ele tira partido dessa força e conhece as coisas tal como são no instante em que já não são.”(Das Passagen-Werk, [D. 41]) 
Maria Filomena Molder,
Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais 


Este texto reconhece uma dívida e agradece a inspiração na obra Mal d’Archive de Jacques Derrida. A dívida, como é óbvio, inicia-se logo no título. Pese embora a homografia e a quase homofonia de “mal”, o pathos do vocábulo francês invoca o desejo, quase a obsessão apaixonada com o arquivo, descartando a relação que a palavra portuguesa mantém com categorias ético-morais; o mais aproximado a que podemos chegar na nossa língua é a expressão “mal de amor”. Queremos manter o significado da língua francesa e lá chegaremos, se tudo correr bem, ao paralelismo com a língua portuguesa.

Voltando ao texto de Derrida, convirá saber que o mesmo é a transcrição de uma conferência proferida pelo filósofo em Junho de 1994, em Londres, por ocasião de um colóquio internacional intitulado: Memória: a questão dos arquivos, organizado por René Major e Elizabeth Roudinesco, sob os auspícios da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld. A conferência-ensaio procurava reelaborar o conceito de arquivo na actualidade numa única configuração que englobasse as dimensões política, técnica, ética e jurídica. O pendor problematizante do pensamento de Derrida conduz a questão para os terrenos de uma metafísica difusa, afirmando, mais ou menos nestes termos, que nunca conseguimos renunciar, mesmo que inconscientemente, a exercer poder sobre o documento, a sua posse, retenção ou interpretação. Acreditamos que esta linha de problematização dialoga com uma formulação que Michel Foucault desenvolve em A Arqueologia do Saber, obra na qual o filósofo francês analisa a questão do documento e a sua transformação em monumento, ou seja, “a história tende à arqueologia – a descrição intrínseca do documento”. Como se percebe, a fulgurante inteligência francesa, pela voz dos dois filósofos, desloca a problemática do arquivo; embora o nome “arquivo” ainda conserve a memória do arkhê grego, conserva-se ao abrigo dessa memória, esforçando-se por esquecê-la: a passagem dos arquivos da esfera privada para a esfera pública, a sua abertura a investigadores e não-investigadores – idealmente, a todos os cidadãos que os requeiram – retirou-lhes o carácter de secretismo e confidencialidade que conferia poder exclusivo a quem os detinha, ou seja, esvaziou de conteúdo uma outra concepção de arkhê que remete para o comando e o domínio sobre uma comunidade exercidos pelos arcontes (os primeiros guardiões) dos arquivos. Como se vê, a família semântica de arquivo tem uma dimensão física (a morada dos documentos), histórica (tudo o que é relativo, já que o absoluto não tem história), normativa (a faculdade de exercer poder concernente ao controlo e manipulação dos arquivos) e ontológica (o ser do arquivo remete para tudo aquilo que é primordial, originário, original, para os aristotélicos “primeiros princípios”). 
É aqui que nos despedimos de Jacques Derrida; a “vontade de poder” dá lugar à vontade de saber e ao desejo de verdade. Que verdade ? Uma conhecida lei da Física estabelece que não é possível conhecer simultaneamente a velocidade e posição de um determinado objecto (partícula) já que, para conhecer a sua posição é preciso “iluminá-lo” e quando isso acontece, ele muda de posição e de velocidade. Significa isto que a observação afecta sempre a “verdade do objecto”. Ao longo do ano de 2018 – Ano Europeu do Património Cultural e 70. Aniversário da Cinemateca Portuguesa –, e parte do ano de 2019, “gente da casa” e outra, que dela não sendo, dela não deixa de o ser, seleccionou, pensou e escreveu, debaixo da rubrica Textos & Imagens, sobre diversos objectos que representam os vários arquivos que constituem o arquivo do CDI (segundo a feliz formulação de Teresa Borges), afectando-os e revelando o desejo de memória e o desejo de verdade de que falávamos; o arquivo de arquivos move-se, tem dinâmicas e lógicas internas que se ocultam e desocultam à medida do trabalho que sobre ele e a partir dele se desenvolve. As novas perspectivas que todos esses contributos trouxeram a objectos que pareciam fixos e instalados em categorias comuns e que, mercê desse trabalho, mudaram de posição e de velocidade, permanecem os mesmos, sendo já outros. 
Como todos os arquivos, o do CDI requer uma domiciliação e um suporte estável, o que o liga de certo modo à inescapável determinação topográfica dos arquivos desde tempos imemoriais (a arkhê dos arquivos à guarda dos arcontes). Supõe também a dimensão comum a essa arkhê, a arqueologia. Exceptuando algumas instâncias determinadas pela necessidade de conservação da integridade dos documentos/monumentos, ou jurídico-legais, está totalmente aberto à comunidade, sinal de uma modernidade e de uma actualidade perenes, que dispensam o estabelecimento de uma autoridade hermenêutica legítima com acesso privilegiado a fontes recusadas a não-especialistas; o desejo de verdade é cosmopolita e democrático; o poder arcôntico que detinha em exclusividade as funções de unificação, identificação e classificação caminha a par e passo com o poder de consignar, isto é, de reunir os signos num sistema de sincronia ideal, no qual não existe distanciação absoluta, heterogeneidade ou segredo que o separe dessa consignação, ou da sua função institucional. Não cabe aqui discutir – embora fosse interessante fazê-lo – o impacto deste arquivo sobre a historiografia do cinema em Portugal e talvez também o impacto sobre a historiografia do arquivo e do arquivismo. É um trabalho que está por fazer e que, certamente, será feito um dia. De uma coisa estamos certos: este projecto de saber, de prática e de instituição, de comunidade e consignação é atravessado na totalidade do campo por uma questão política: a da res publica. 
A Cinemateca é assim uma imensa sala de projecção, não só dos filmes, mas de tudo aquilo que com eles se relaciona, recusando a falsa aproblematicidade dos objectos; eles são, no fim de contas, uma inesgotável “planície de verdade” cuja pensabilidade nunca se esgota; ocultam-se e desvelam-se como enigmas; criam novos valores, sendo a sala de projecção não só a possibilidade de experiência dos objectos, mas a condição dos próprios objectos da experiência. Precisamos urgentemente de voltar à presença e à familiaridade. 
Começámos agora a era do medo, sobretudo o medo de perdermos o controlo das circunstâncias e rotinas da nossa vida diária. Compreendemos que, talvez, já não sejamos só nós que já não conseguimos moldar as nossas vidas, conferir-lhes sentido, dar-lhes um rumo, mas que também quem nos governa tenha perdido o controlo, para forças que os transcendem e que se situam no domínio do inimaginável. Estamos, sem dúvida, garantidamente menos confiantes nos nossos objectivos e aspirações comuns. Como celebremente comentou o politólogo John Dunn, o passado está um pouco melhor iluminado que o futuro; vemo-lo com mais nitidez. Mais do que nunca, vamos precisar de instituições públicas sólidas, credíveis, poderosas no que toca à criação de confiança comunitária – confiança no projecto colectivo –, capazes de fornecerem serviços fiáveis fornecidos por um sector público devidamente financiado. Algumas dessas instituições já existem.
Arnaldo Mesquita

* Texto publicado originalmente na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, na secção "Sala de Projeção". A fotografia pertence ao filme "Toute la Mémoire du Monde" de Alain Resnais.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

ROUGH BOY


ROUGH BOY



What in the world come over me?
I ain't got a chance of one in three
Ain't got no rap, ain't got no line
But if you'll give me just a minute I'll be feeli'n fine…

               ZZ TOP





Corria o ano de 1986 onde tudo era incerto, estávamos no início da nossa entrada no espaço da União Europeia e na fase final de mais uma crise económica. Aliás as crises económicas estiveram sempre aqui neste espaço onde somos sempre a um tempo culpados e vítimas de conjunturas que se desenvolvem sem nos perguntar nada. No início daquele Verão tinha conseguido um trabalho numa empresa ligada ao turismo a operar no Algarve. O Tomás candidatou-se um mês depois de mim e também conseguiu o trabalho. Durante seis meses, pelo menos. Depois logo se veria. A possibilidade de trabalho acompanharia a evolução sazonal do turismo na região. Com sorte voltaríamos a trabalhar na Primavera do ano seguinte. Até lá as nossas vidas entravam em pausa, arranjávamos actividades alternativas ou regressávamos a casa dos pais. Decidimos morar na mesma casa para dividir as despesas. Até aí conhecíamo-nos do mesmo grupo do bairro mas nunca fomos íntimos. Nesse Verão as coisas acabaram por mudar.
O nosso meio de transporte era uma Vespa, da célebre família das lambretas, que o Tomás trouxe de Lisboa. Original de 50 cm3, quitada a 90, o que na linguagem padrão significava que ao arrancar em primeira, quem não estivesse atento arriscava-se a ver a mota saír com a roda de frente no ar e a ficar pregado ao chão. Cenas de motas… Seja como fôr, o Tomás era doutorado no assunto. Desde ter corrido com o irmão no circuito de Vila Real,  fervoroso fiel da marca Kawasaky, enciclopédia do desporto motorizado, calendários dos grande prémios, pilotos, qualquer dúvida…ele esclarecia. Era como uma religião. Lembro-me de entrar no quarto dele de casa dos pais e sentir o odor típico de uma oficina. Isto porque, volta na volta era normal encontrar motas lá dentro desmontadas com as peças uma a uma penduradas na parede. Chegou a haver mesmo ensaios no corredor o que motivou o pai dele a desenvolver o hábito de, quando chegava a casa ao fim do dia percorrer o corredor de nariz no ar a tentar cheirar restos de óleo ou combustível queimado. Nesse Verão eu ainda andava de mota e fizémos juntos muitas horas em cima daquela Vespa preta a caminho da praia ou do trabalho. Houve longos passeios e longas conversas durante todo esse Verão, muita cerveja, petiscos do mar, salada montanheira. Cada um falava do que sabia e, se houvesse curiosidade, tentava ensinar ao outro. Eu falava de filmes, livros e realizadores enquanto e ele de motas, pilotos e gastronomia. Quando chegávamos à música havia empate. Ouvíamos os mesmos sons, tínhamos as mesmas preferências.
Numa tarde de Julho, quando ia a entrar em casa encontrei-o no sofá em frente à televisão. Discutimos programas para o resto do dia dado que estávamos ambos de folga. O Tomás falou-me na concentração de motards do Moto Clube de Faro, evento que apesar de ir na quinta edição era ainda um ser estranho vedado ao comum dos mortais. Hesitei. Cheirava-me a encontro de Hell Angels, gajos enormes com grandes barrigas, grandes barbas e cadastros bastante preenchidos. Ambiente hostil a quem fosse de fora. O Tomás tentou-me convencer relembrando outras concentrações onde já tinha estado presente em Inglaterra ou em Espanha. Aceitei com a condição de que assim que começasse a correr mal voltaríamos logo para casa.
Assim, eu o Tomás e a Vespa de 50 quitada a 90 rumámos ao aeroporto da cidade para nos juntarmos à concentração. Quando entrámos no terreiro fronteiriço à Ria Formosa e ao aeroporto encontrámos um cenário digno de Hollywood. Motas de todos os tamanhos e feitios, tipos caracterizados para figuração em filme de estrada, barbas, tatuagens e cicatrizes. O efeito de espanto foi mútuo na medida em que, ao ver entrar uma Vespa num mostruário onde alguns dos espécimes se assemelhavam a moradias com jardim, os motards suspenderam a actividade para melhor nos observar. Parámos a mota, descemos, fomos até à barraca das bebidas e pedimos uma cerveja. A vida continuou no recinto. Depois sentámo-nos numa mesa perto de um trio de amigos, dois holandeses e um escocês. Apresentámo-nos, começámos a falar e a conversa continuou. As cervejas não paravam de chegar à mesa…os charros também não. O Rock pairava no ar por cima da poeira e do cheiro a óleo e gasolina das motas. Fumava-se e bebia-se em acto contínuo. Não sei do que é que falámos na altura mas lembro-me de um instante em que tudo parou na minha cabeça. Foi quando olhei ao longe o Sol a pôr-se e uma música dos ZZ TOP apareceu por ali. Não sei se num rádio, não sei se numa banda que tocava no palco, não sei se apenas nas nossas cabeças. Calámo-nos todos por momentos e deixámos que as guitarras ocupassem o espaço. Os nossos rostos fecharam-se a olhar para dentro interrogando, contemplando, celebrando, num silêncio estridente. Quando a música acabou a algazarra aproximou-se de mansinho e tudo voltou ao que era. Nunca me senti minimamente ameaçado ou alvo de perturbação dos outros. Aliás sempre me senti bem vindo e confortável em ambientes de motards. Ali não foi excepção.
Os tempos eram "rough" (duros) e obrigavam-nos a ser "rough" como eles. No fim daquele Verão voltávamos para o desemprego e o futuro era uma incógnita negra para a maioria das pessoas da nossa geração. No fim de Setembro o Tomás voltou para Lisboa e eu fiquei a viver em Faro. No ano seguinte trocámos. Eu arranjei trabalho perto de casa e ele voltou para Faro. Anos mais tarde acabou por morrer num acidente de mota muito perto daquele lugar da concentração. Sem pensar duas vezes, dei o seu nome ao meu filho mais novo que nasceu no mesmo ano. E até hoje lembro-me dele e dos nossos passeios como se tivesse sido ontem.
Cada amigo tem o seu lugar na nossa vida. Um lugar que nunca pode ser preenchido por outra pessoa. E nesse lugar cabem recordações como esta em que nos sentimos em casa numa concentração de motards nos idos do Verão de 86.

Artur



quarta-feira, 24 de junho de 2020

FRENTE AO MAR




     


Há no mar qualquer coisa de familiar…qualquer coisa parecida com a minha casa, o meu espaço, o lugar onde não me sinto sobrar dentro de mim…
                   

segunda-feira, 22 de junho de 2020

UM FIM DE SEMANA ESTRANHO





Foi um fim de semana no mínimo estranho. Começou com o desaparecimento de um grande escritor de língua castelhana e continuou com o suicídio de um actor famoso, imagem simpática do nosso universo audiovisual. Por outro lado, grupos de jovens ignoraram por completo as regras preventivas de segurança para resistir à epidemia que atravessamos juntando-se em grandes grupos de convívio nocturno enquanto o primeiro médico infectado morria vítima do vírus. Seguiram-se as frases feitas para este tipo de ocasiões, os comentários elogiosos, as reflexões, perplexidades e todo o restante  folclore emocional que desperta em momentos como este. Momentos de fim absoluto, de morte, momentos onde tudo parece recolocar em perspectiva o sentido da existência. Doença terminal, suicídio, inconsciência, morte em trabalho.
Um escritor de sucesso inquestionável abriu-nos janelas sobre mundos imaginados que nos fizeram sonhar e, acima de tudo, histórias que nos fizeram companhia em horas de solidão. Um actor de sucesso, pai de família, atlético, bem parecido, que tinha aparentemente tudo para ser um homem realizado não resistiu ao desgaste da depressão. Um profissional de saúde infectou-se no decurso da execução do seu trabalho e acabou por morrer ao fim de vários dias em luta contra o vírus. Jovens de várias partes do país ignoraram o perigo do contágio e reuniram-se de forma indisciplinada e desorganizada em festas convívio despertando novos focos de contaminação e abrindo linhas de contágio por razões perfeitamente pueris.
Se para alguma coisa servirá a morte dos outros será para nos lembrar a nossa própria morte. Que não estaremos cá para sempre e que o sentido e a explicação que buscamos da razão de aqui andar nunca serão encontrados. E isso só por si seria razão suficiente para sermos menos egoístas, menos gananciosos, menos filhos da puta uns com os outros. Só que não. Estas mortes vão passar e daqui a umas semanas já ninguém se lembra do que aconteceu a não ser aqueles que sentiram mais de perto a partida dos outros. Recalibrada a perspectiva, realinhada a precariedade da existência, relembrados da nossa curta passagem por estas bandas, tudo voltará à imbecil normalidade.
Parece que a Vida, ou o Universo, ou a nossa própria condição humana quis dizer-nos qualquer coisa, dar-nos uma espécie de recado. Só não percebemos qual, exactamente. Ou se calhar percebemos…pelo menos uma ou outra parte, o que já não seria mau.

Artur

sexta-feira, 19 de junho de 2020

CARLOS RUIZ ZAFON



                                                                      1964 - 2020


  " Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él".

                                        La Sombra del Viento

quinta-feira, 18 de junho de 2020

CAN'T WALK



                                                                          Sofia

sábado, 13 de junho de 2020

O MISTERIOSO CABIDE



Assim que se entra na casa está mesmo à nossa frente a dar-nos a boas vindas. O vulto imenso apresenta-se assim como guardião daquele espaço, imponente e magnânimo, qual montanha de tecidos pendurados, pronta para nos acolher. Sabemos vagamente que se trata de um cabide por deixar ver um ou dois ganchos perdidos da sua constituição e por a dona da casa (uma grande amiga minha) nos dizer que assim é. E de facto, se o quisermos perceber a fundo vamos precisar de bastante tempo, tantas são as utilidades e as histórias que guarda para nos contar. Temos casacos de Inverno, casacos de Verão, impermeáveis, malas, guarda chuvas, cachecóis, xailes, camisolas, todos meticulosamente embrenhados numa organização única desafiando em permanência todas as leis do equilíbrio. Às vezes desconfia-se tratar-se de uma árvore centenária como a própria casa que por ali foi ficando até aos dias de hoje teimando em existir muito para além das possibilidades da existência. As suas profundas raízes rivalizam de importância com as fundações da habitação não sendo possível a umas existirem sem as outras. Reclamando  o seu estatuto de ocupante da casa, o cabide ali está acompanhando as refeições, intervindo nas conversas, avisando sinais de proximidade atmosférica. Acaba por ser uma personagem simpática a que nos habituamos ao longo das visitas, uma personalidade definida com que acabamos por gostar de conviver. Nas horas de silêncio e contemplação podemos focar-nos nas suas dimensões enquanto tentamos adivinhar a sua forma original como quem busca uma alma. Nas horas de tédio imaginamos uma determinada peça e partimos à aventura a explorar a montanha até a conseguirmos encontrar. Em horas de solidão estamos perante um interlocutor simpático que nos pode contar várias histórias conforme a hora do dia ou a época do ano. Trata-se de uma espécie de canivete suiço adaptado para todas as épocas e para todas as ocasiões. O cabide de casa desta minha amiga é em si um livro imenso onde podemos ler o tempo cronológico e avaliar o tempo meteorológico. Um cicerone para o interior da habitação, um habitante de facto, um mistério coberto de casacos e utilidades, uma peça fundamental e imprescindível de toda a decoração da casa.
Como um dólmen do Paleolítico ou um totem no espaço central da aldeia de uma tribo, ele ali está imponente e acolhedor sempre pronto para uma resposta. Olhando-nos da sua invejável estatura transforma a nossa reacção numa experiência religiosa. Passamos a admirá-lo com relativa rapidez e, ao fim de poucas visitas já não conseguimos perceber a casa sem a sua presença. É o primeiro que cumprimentamos à entrada e o último de quem nos despedimos e agradecemos a hospitalidade. A magia do seu mistério é o charme do seu encanto. Todas as casas têm a sua marca pessoal. Esta tem um cabide…



Artur

quarta-feira, 10 de junho de 2020

DANÇA DE SOMBRAS






                                                                          Sofia





                                                                    

domingo, 7 de junho de 2020

O UIVO DOS LOBOS









Acendo um cigarro enquanto observo o fogo…da lareira, do forno, o fogo em geral. Hipnotizado pelas chamas sou capaz de estar ali por alguns minutos sem pensar em nada. Como numa espécie de transe meditativo. Quando os lobos uivam ao longe a Natureza faz uma pausa e escuta.  Surpreende-se, arrepia-se, fica assustada. Ouve com atenção até terminar e depois volta aquilo que estava a fazer. Hoje em dia há vários uivos a voar sobre as montanhas, uns por cima dos outros, em competição para ver quem é mais assustador. Pequenas explosões transformam-se em fogos gigantescos incontroláveis de intolerância e ódio. De repente toda a gente se revolta, toda a gente tem uma razão para gritar, partir um vidro, pisar a opinião do outro. Uns manifestam-se contra o racismo, outros opinam sobre epidemias, outros ainda avisam que o inferno vem aí aos trambolhões para nos cair em cima. Só que sempre fomos racistas, ciclicamente fomos exterminados por doenças e o inferno cai-nos em cima da cabeça todos os dias. E tudo porque ainda não deixámos de ser ovelhas e obedecer a todas as instruções do pastor. O mesmo que nos dá o circo, e o futebol e a desgraça dos outros. O mesmo que nos diz onde e quando devemos manifestar a nossa indignação. O mesmo que nos vende a falsa roupagem de lobo  e nos diz quando nos quer pôr a uivar. O mesmo que ao fim do dia nos recolhe com a ajuda do cão e nos volta a trancar dentro da cerca. E assim se vão sucedendo os tempos como actos de uma mesma peça de teatro que nunca acaba. Tempos que se esmagam contra nós como ondas zangadas de espuma num paredão indiferente. Uns contra os outros…sempre uns contra os outros. Nunca com os outros em modo construtivo. Nunca numa direcção onde o somatório do bem estar de todos se alcança com o esforço de cada um. Não! Saqueemos as lojas daqueles que nos voltarão a cobrar a ousadia, vamos caíndo mortos às mãos da vaidade e da ganância de curas milagrosas, anunciemos as catástrofes todas que ainda estão para vir. E depois, muito mais contentes com a diversão permitida voltemos ao pasto, ao pastor, ao cão do pastor, ao fecho da cerca para dormitar no curral das ovelhas, para fazer exactamente tudo o que sempre fizémos no dia seguinte.
Acendo um cigarro e sinto-me farto. Sinto-me velho, cada vez mais farto. Do rebanho, do pastor, do cão, de tudo e de coisa nenhuma.
 Falta-me o fôlego, falta-me o tempo, falta-me a razão. Quando todos uivam acabo por fazer uma pausa. Primeiro surpreendo-me, às vezes arrepio-me, fico assustado. Depois regresso ao que estava a fazer. E dessa maneira a morte que nos pintam com traços de medo e afastamento…essa ideia que só chega no fim…esse desenlace que nos apavora não é mais do que uma encenação permanente onde o egoísmo e a ganância se juntam na dança que dançamos todos os dias.



Artur