quinta-feira, 19 de junho de 2008

INTERROGAÇÕES AO VAZIO


(Foto de Sofia P.Coelho)
Sento-me no anonimato de um café com um caderno debaixo do braço à espera que qualquer coisa aconteça. Qualquer coisa digna do esforço de ser transcrita, redigida, destinada a algum leitor. As pessoas vão entrando e saindo como os pensamentos e as ideias da minha cabeça.” Isto já foi feito. Aquilo não tem interesse nenhum… Não! Demasiado “lamechas”, ou ainda, demasiado óbvio”. E assim vou tentando encontrar a ordem dentro do caos como costumo fazer sempre, como quem mergulha num contentor de lixo e volta à superfície com algo que merece ser reciclado, algo que viu adiada a sua sentença definitiva de existir. Assim, os pensamentos rodopiam e pensam-me mais a mim do que eu os penso a eles para ficar um buraco enorme por responder. Quem é que dá consciência a quem? Quem é que afinal existe ou tem a mania que assim é?
Confesso que sempre me atraíram estes jogos parvos de quem é o quê a baralhar as certezas que no fundo só foram inventadas para tornar os dias mais suportáveis e a vantagem de uns sobre os outros mais tolerante. Não tenho a certeza, nunca tive, que sou alguma coisa, que estou aqui ou sequer se alguma vez existi. Mas já senti a vida, do deslumbre até à desilusão, com as palavras, as minhas e as dos outros. Para mim tudo não passa de uma anedota grotesca em que somos forçados a participar para uma qualquer evolução de uma qualquer existência mais avançada que só ao de leve nos deixa ter consciência disso. A arte, o espírito criativo é o recreio, aquele espaço reduzido em que nos deixam brincar e estar mais perto da nossa verdadeira identidade. Porque se assim não fosse, situações como a de viver neste país só poderiam ser entendidas enquanto punição atribuída pelo Grande Conselho Inter galáctico na sequência de crimes contra o universo onde no mínimo um planeta foi mandado para o galheiro com todas as espécies que o habitavam… e a culpa foi nossa.
Voltemos pois ao caderno, ao espaço em branco que espera pacientemente o desenho das palavras em forma de pensamento armado em forma de discurso estruturado em forma de comunicação. Voltemos às reproduções do Paleolítico em paredes de cavernas para descobrir a mesma vontade. A de dizer e transmitir. A de povoar o espaço do nosso vazio com a hipótese da chegada do outro que nos irá ler. Que finalmente tomará conhecimento sobre uma coisa qualquer que quis dizer mas que não tinha destinatário imediato. As palavras, as imagens, todos estes códigos existem. Disso tenho a certeza. O resto…existirá ou não.
ARTUR

LISBOA QUE AMANHECE

Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo

A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram


Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece


O Tejo que reflecte o dia à solta
æ noite é prisioneiro dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem

E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes


Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a Única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras

E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura


Na Lisboa que amanhece

Sérgio Godinho

domingo, 15 de junho de 2008

TORGA AO LANCHE

"O defeito deve ser meu, que pareço um Hamlet de agora. As minhas certezas são poucas ou nenhumas. Ao todo, ao todo, acredito que a vida é um absurdo maravilhoso e a morte um escândalo sem remissão. Ora, nos escritos dos nossos bem-pensantes de serviço- que de resto, leio sempre rendido a um desembaraço intelectual que os honra- nem a mais pequena sombra de dúvida lhes trava os passos. Pelo contrário. Tudo neles é indiscutível e faz lei. E tropeço invariavelmente nessa suficiência peremptória, nessa infalibilidade convicta. Em vez de admirar no que dizem o drama da inteligência a procurar verdade, torço-me, constrangido, perante a presunção com que a decretam."
Miguel Torga in Diário XIII

GREEN STREET



GREEN STREET (REBELDES DE BAIRRO)
Lexi Alexander
Inglaterra, 2005

Após um episódio mal esclarecido de drogas encontradas no quarto do “campus” universitário, o estudante de Jornalismo Matt Bruckner resolve abandonar Harvard e rumar a Inglaterra onde reside a sua irmã Shannon com o marido (Steve) e um filho pequeno. Embora as drogas pertencessem ao companheiro de quarto (Jeremy), um menino de uma família rica, Matt tem receio de o denunciar. Com o dinheiro recebido pelo seu silêncio (10 mil dólares) paga a viagem. Chegado a Inglaterra Matt trava conhecimento com o irmão de Steve ( Pete). Tudo começa quando Steve sugere ao irmão que leve o cunhado a um jogo de futebol do clube local, o West Ham United. Pete faz parte de uma “Firm”, grupo de apoiantes “hooligan” do West Ham e tem muitas dúvidas de que um “yank” seja bem recebido pelo seu grupo, dada a natureza racista deste tipo de formações. Segue-se um diário da vida de uma “Firm” onde a luta de rua com as firmas rivais, os planos para os jogos, etc, configuram todo um dispositivo de guerra tendo como base a identificação com as equipas de futebol. A integração de Matt na firma após a primeira batalha de rua opera nele uma transformação interior influenciada pelos novos códigos morais do compromisso com o grupo. À medida que as nódoas negras e as equimoses vão decorando o corpo de Matt, a coragem que noutras circunstâncias lhe havia faltado começa a crescer dentro dele. Torna-se capaz de enfrentar o pai quando ele vai à sua procura e acertar “umas contas” atrasadas. Começa a escrever um diário sobre a sua passagem por terras de Sua Majestade sem saber bem o que irá fazer com ele no futuro. Reforça os seus laços de amizade com o grupo de que agora faz parte.
Green Street Elite (o nome da firma de Matt) refere-se na realidade à Rua Green em Londres, local onde se situa o estádio Boleyn Ground do West Ham United ( também conhecido por Upton Park). A firma real do clube chama-se Inner City Firm, uma das poucas coisas que não corresponde à realidade. Escrito por um ex-hooligan (Dougie Brimson), o filme retrata com alguma seriedade o dia a dia destes grupos urbanos violentos, apoiantes de clubes de futebol. Se as imagens de violência e o discurso vazio podem chocar, o pior choque vem quando encontramos estes elementos no trabalho de todos os dias. Não são excluídos, nem marginais, nem muito menos vagabundos mas homens com duas distintas dimensões comportamentais na sociedade. Podemos analisar o fenómeno do “hooliganismo” em várias vertentes, podemos até mesmo combatê-lo com todas as forças. O que não podemos é analisá-lo como acontecimento exterior à sociedade. Na medida em que parte dos seus membros, o “hooliganismo” é um sinal, um sintoma dessa própria sociedade. Uma sociedade doente, desagregada e que encontra nestas explosões urbanas a válvula de escape para uma grande parte das suas frustrações.
Baseado em estudos antropológicos sobre os comportamentos deste tipo de grupos, as críticas ao filme pelo exagero da violência, linguagem obscena e uso de drogas só reforçam a ideia de que a maioria de “nós” não quer ver o evidente. Muito menos mexer-lhe, transformá-lo…
Premiado nos festivais de cinema de LA Femme, Malibu e South by Soutwest, o filme encontra-se sem sombra de dúvidas na categoria de “maldito”. Não sendo brilhante também não desilude na medida em que retrata uma realidade, contribuindo assim para o seu entendimento. O que quisermos fazer com isso é que depende da resposta que lhe possam dar…
ARTUR GUILHERME CARVALHO

sexta-feira, 13 de junho de 2008

POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (...)

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida (...)

Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? (...)

Álvaro de Campos
(comemorando os 120 anos do nascimento de Fernando Pesooa- 13 de Junho de 1888)

terça-feira, 10 de junho de 2008

EQUADOR A TRÊS DIMENSÕES




(Fotos de Sofia P. Coelho)

Na elegância do gesto, na sinceridade do sorriso, no estender solidário da ajuda ou no movimento protector, a mesma rotina, os mesmos instintos, os mesmos intentos que se repetem com o passar do tempo, e que passando vão formando esse cordão que não quebra. O espaço para existir enquanto se existe, acarinhar enquanto houver necessidade de carinho, estar alegre porque se está. O mundo, a vida, os seres, elementos perdidos que se reencontram entre esquinas de amor. Sem preço, nem troca, nem contrapartidas pensadas. Os únicos que "somos" todos, seres familiares, habitantes de um espaço só. Gestos isolados que ganham a força do universo quando se partilham pelo simples prazer de partilhar.
ARTUR

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A PONTE


THE BRIDGE
Eric Steel
EUA, 2006

Figura mágica no quotidiano dos homens, uma ponte, qualquer ponte, traz consigo o fascínio da ligação, possibilidade de comunicação, travessia de obstáculo natural, comunhão de margens opostas pela separação. Para além disso, o imaginário humano tem um departamento inteiro dedicado às pontes no mundo infinito das histórias.
Vem tudo isto a propósito de um documentário inspirado num artigo publicado na revista The New Yorker (“Jumpers”) em 2003, da autoria de Tad Friend. Impressionado com o quadro de suicídios registado na ponte Golden Gate em S. Francisco, Eric Steel decidiu contar a(s) história(s) destes indivíduos. Para isso, ele e a sua equipa distribuíram várias câmaras em volta da ponte para obter outro tanto de ângulos de filmagem possíveis ao longo do ano de 2004. Dos 24 suicídios ocorridos nesse ano na ponte de Golden Gate, 23 foram registados no documentário. A brutalidade das imagens causa no espectador um impacto terrível, principalmente por serem reais. E esta questão só por si é capaz de gerar, como gerou, enorme controvérsia. Qual é a fronteira da exibição da realidade? Não será um pouco mórbida esta procura quase abstracta da tragédia alheia para fins de reprodução de imagens? Haverá uma barreira moral ou estética para a exibição da morte ao vivo? Não nos parece. E por uma quantidade de razões que a seguir se indicam.
Em primeiro lugar o documentário não se limita ao acompanhamento dos “potenciais” suicidas. As imagens são intercaladas com depoimentos de familiares e amigos das vítimas, de testemunhas presenciais dos suicídios, bem como de um sobrevivente de uma queda de cerca de 70 metros de altura para as águas da Baía de S. Francisco. Todos os depoimentos foram recolhidos sem a prévia informação de que os suicídios haviam sido filmados. O projecto manteve-se em segredo durante as filmagens para evitar que alguém tivesse a “brilhante” ideia de “imortalizar” a sua morte em filme. Mais tarde, terminado o filme, ele foi visionado por todos os intervenientes entrevistados que nada opuseram à sua exibição.
Por outro lado, existe uma força de vigilância permanente na ponte que está normalmente atenta a comportamentos estranhos das pessoas que a atravessam e que intervém rapidamente, ajudando a salvar a vida de muitas delas. Nas palavras de um desses elementos, os casos de suicídio ou de simples tentativa, são o “dia-a-dia” naquela ponte que, para além de dois passeios pedestres ao longo de toda a sua extensão, pouca ou nenhuma barreira tem, destinada a prevenir aqueles comportamentos. Qualquer um consegue facilmente saltar o parapeito e ficar do lado de fora da ponte.
No decorrer das filmagens, em cada 2 semanas houve uma pessoa que saltou da ponte. Se essa frequência for constante, isto significa uma média de 24 suicídios por ano.
Steel tenta registar e entender o que leva um ser humano a terminar voluntariamente com a sua existência e, em vez de uma, chega a várias conclusões. A violência das imagens, constituída pela cruel realidade e pelo instantâneo da atitude, é-o essencialmente pela banalidade do acto em si. Pessoas com uma vida “normal”, pessoas que ainda ontem riam, pessoas…como nós.
Vivemos num mundo repleto de equívocos e árido de sentido. Escondemos o suicídio com algum pudor mas não hesitamos em explorar à exaustão um homicídio violento. Se há alguma morbidez na feitura deste documentário, que dizer então de todas as imagens trágicas que nos bombardeiam os telejornais todos os dias? A fome em África, as guerras encomendadas, as tragédias naturais, etc,etc. Qual é a barreira moral ou ética que se poderá erguer neste registo? Nenhuma, digo eu. Dizia um pensador alemão do século passado que “ o suicídio é património da Humanidade”. Será talvez a última fronteira de morte onde a nossa vontade tem um papel decisivo e único. Não se deverá louvar nem encorajar, e muito menos condenar porque faz parte da intimidade de cada um. Mas é forçoso compreender que existe, é uma realidade intrínseca à nossa natureza por mais que a queiramos varrer para debaixo do tapete. Tal como as crianças violadas dentro do ambiente da família, os velhos depositados em lares degradantes e outras tantas habilidades que nos aproximam do estatuto de monstros…
Caminhamos pela estrada da existência como todos aqueles que atravessam a ponte. Uns para desfrutar da paisagem, outros para satisfazer o seu apetite turístico, outros para fazer desporto, tirarem fotografias, e outros para morrer.
A Golden Gate Bridge é uma das atracções turísticas mais visitadas do mundo. Uma ponte, um gigante de aço que liga duas margens sobre uma baía. Uma união de Natureza e engenharia humana. Um fronteira entre a Vida e a Morte…

ARTUR