sábado, 25 de junho de 2016

PÉROLAS DE SCOLA 4


BRUTTI, SPORCHI I CATTIVI/ FEIOS, PORCOS E MAUS

Ettore Scola

Itália, 1976

Estamos na década de 70 do século passado num bairro de barracas da periferia de Roma. Através de um lento e englobante plano-sequência vamos sendo apresentados aos vários elementos do clã Mazzatela à medida que se levantam para um novo dia. Uma jovem adolescente sai para a rua com uns recipientes na mão para ir buscar água. Saltita na inocência dos seus 12/13 anos enquanto caminha por um cenário de porcaria, feito de habitações precárias, poças de água e caos urbano em geral.Mais tarde voltaremos a vê-la a recolher as crianças do bairro para um “infantário” improvisado feito de uma cerca de arame semelhante a um galinheiro gigante. Giacinto é o patriarca desta agremiação vagamente familiar composta por gente que trabalha nem sempre nas mais nobres actividades. Por ter queimado um olho com cal viva recebeu uma indemnização de um milhão de liras do seguro que esconde avidamente. Um milhão que o resto da família cobiça urdindo toda a espécie de malfeitorias para se conseguir apropriar dele.
Esta é em síntese a intriga básica de (na minha opinião) uma das mais belas e mais brutais obras-primas da história do Cinema por ser pouco comum na abordagem, cruel na descrição e  impiedosa na análise.
O filme acompanha um grupo de marginais em geral que enquanto tenta sobreviver tudo faz para ocupar ou destruir o espaço alheio. O dia da pensão da avó é o dia de festa dos netos que rapidamente dividem o dinheiro à porta dos serviços na presença de uma anciã demente que passa os dias em frente à televisão. O dinheiro ocupa o lugar do filtro maior ou, se calhar, do filtro absoluto em que se desenvolvem as suas existências. Não há espaço para identidade, dignidade ou sequer consciência porque isso seria perder tempo, ficar para trás, deixar de ser ou de estar vivo. As análises filosóficas ou sequer sociológicas ficam na gaveta deixando à vista o osso duro da condição humana que encarna o “espírito do tempo” onde tudo é dinheiro, vantagem, sobrevivência pura e dura. Nada que não seja feito no resto da sociedade pelas outras camadas só que essas têm tempo para construir álibis, desenhar teorias, elaborar justificações. Neste bairro de barracas onde se avista ao longe a cúpula da Basílica de S. Pedro no Vaticano não há espaço para a piedade, o sentimento ou o sonho.


E sendo uma tragédia do princípio ao fim, ao exibir a condição humana na sua forma mais animalesca não conseguimos deixar de rir. Não conseguimos desenhar a fronteira entre o drama e a comédia, elementos indivisos do nosso comportamento, equilíbrio instável sem o qual não seria possível suportar o fardo da nossa condição. Os pobres vão morrer pobres e não são nenhuma espécie de heróis por causa disso, não acolhem consciência política, não alimentam qualquer tipo de esperança em relação ao futuro. Nasceram condenados àquela condição que os empurrou para a sobrevivência a qualquer preço, para a bestialidade e para todas as categorias dos mais primários instintos animalescos que nos assistem.  Alegoria destas últimas considerações poderia ser a extraordinária cena em que Giacinto, percebendo ter sido alvo de envenenamento corre para o mar e injecta água salgada pela boca abaixo auxiliado pela bomba de uma bicicleta para poder vomitar. Em O MILAGRE DE MILÃO (De Sicca) os pobres encontram a sua libertação através da morte, em VIRIDIANA (Luís Buñuel) ao ser oferecida hospitalidade numa casa senhorial campestre a um grupo de vagabundos, a primeira coisa que se lembram de fazer no dia em que estão sozinhos é dar uma festa e destruir a casa toda. Em FEIOS PORCOS E MAUS a brutalidade e o grotesco das relações humanas explode em cada gesto embalada pela condenação da miséria.
No fim ao nascer de mais um dia, a jovem adolescente que no princípio acompanhámos com os baldes a caminho da água retoma a sua rotina diária. Saltita enquanto caminha mas quando a câmara a deixa ver de corpo inteiro reparamos que está grávida.
Tragédia hiper relista, crueldade acutilante, grotesco permanente, hilaridade, tristeza, e até ternura são as componentes constantes deste colosso da condição humana. Sem respostas rápidas nem soluções fáceis e muito menos teorias reconfortantes. Uma sociedade bestificada sem identidade nem compaixão só poderá produzir bestas que não sabem quem são ocupadas apenas em destruir o que não lhes pertence. 
Se lhes forem dadas as condições ideais o ser humano é capaz do melhor e do pior.
Ficamos à espera de saber o que seria se existissem as ferramentas para fazer o melhor.
Um colosso que deveria ser visto por todos.

Artur




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