quarta-feira, 12 de julho de 2023

A PROPÓSITO DE LEVEZAS INSUSTENTÁVEIS


 


 

Depois de Sartre, depois de Camus, depois do ensino secundário, mais ou menos entre o segundo ano da Faculdade e a tropa, diria que a obra de Milan Kundera entrou nas nossas vidas na mesma altura em que demos entrada na vida adulta. Não se poderá dizer que foi um passeio agradável ou sequer uma catástrofe mas, uma das primeiras lições que a obra de Kundera me transmitiu foi a de que havia vidas bem piores que a minha. O C foi o primeiro a ler “A Insustentável Leveza do Ser” e passava noites a fio a elogiar a obra. Era a continuação das leituras anteriores, era Kafka e Nietzsche no melhor de cada um, era o novo marco na literatura europeia. Numa noite de Sábado, finalmente, emprestou-me o livro com todo o cuidado, como quem passa uma relíquia sagrada de uma igreja para outra. Sem ter ainda largado o livro ainda houve tempo para uma breve advertência: o livro não estava completo, faltavam-lhe mais ou menos umas dez, quinze páginas. Depois me explicaria a razão, agora não era o tempo disso. Não liguei e quase que lhe arranquei o livro dos dedos ainda indecisos. O C era feito de mistérios e enredos inacabados. Claro que devorei o livro mesmo sem as páginas referidas o que me obrigaria a reler mais duas ou três vezes, agora já na forma completa. O romance apoiado numa estrutura fragmentada faz cruzar personagens e ambientes de uma forma fluída, cujo sentido se vai fortalecendo como um curso de água que desce de montanhas escarpadas e irregulares para se espraiar num amplo estuário, misto de suavidade e angústia. Fala de amor e lealdade, de liberdade e opressão, caricatura do comportamento humano, desventuras e breves alegrias. Fala na busca da felicidade e das várias transformações em que ela se vai tornando. Entre os dois mundos do tempo da Guerra Fria as pessoas procuram desesperadamente a sua felicidade carregando consigo os fantasmas do passado exigindo da existência coisas diferentes. Um pouco autobiográfico “A Insustentável Leveza do Ser” é contada a partir do lado de lá da cortina de ferro onde a liberdade é um sonho e os conceitos se confundem de acordo com as leituras oficiais do partido único. Do lado de cá também não se poderá falar exactamente do Paraíso na Terra, havendo bastantes contradições e manchas a assinalar. De um lado e de outro os sistemas desfazem-se sobre as suas próprias contradições devorando gerações, uma a seguir à outra.

 

As fronteiras do silêncio voltavam a fechar-se sobre a Europa, e a Grande Marcha já não desfilava senão em cima de um pequeno estrado no centro do planeta. As multidões que outrora se acotovelavam ao pé do estrado tinham partido há muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem espectadores…..

…..a Grande Marcha continua, apesar da indiferença do mundo, mas está a tornar-se nervosa, febril, ontem contra a ocupação do Vietname pelos americanos, hoje contra a ocupação do Cambodja pelos vietnamitas, ontem para apoiar Israel, hoje pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã contra Cuba, e sempre contra a América, sempre contra os massacres e sempre em apoio a outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e para poder acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único acelera cada vez mais o passo, de modo que a Grande Marcha já só é um cortejo de gente apressada a desfilar a galope, e a cena cada vez se encolhe mais, até ao dia em que finalmente há-de tornar-se apenas um ponto sem dimensões.

(A Insustentável Leveza do Ser)

 

 Não vou perder aqui tempo a descrever todos os aspectos do romance. Limitar-me-ei a referir a sua grande importância no momento em que surgiu na medida em que abriu um caminho onde o humor, a memória, e a percepção da beleza podem reclamar um novo Homem, uma nova Literatura desde que combinados num padrão de exigência e rigor que se eleve acima da espuma dos dias. Claro que não aconteceu nada como é habitual. A mediocridade e o kitsh político e social prosseguiram o seu caminho como sempre. A arte é feita de sobressaltos ocasionais em que a estrutura abana mas não cai, a evolução espreita mas depois vai esconder-se a correr. Sobre os personagens sopram os ventos da História interferindo nos seus percursos mais ou menos intensos, mais ou menos elaborados, varrendo-os de qualquer maneira da mesa onde depositaram as suas aspirações iniciais.

 

 

 

O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotski

Ludvik

 (A Brincadeira)

 

Seguiram-se mais romances que fui devorando ao longo dos anos. O primeiro de todos da sua biografia, “A Brincadeira”, escrito entre 1962 e 1965. Marketa e Ludvik são estudantes universitários em Praga. Ela identificava-se com tudo o que vivia, o campo de férias num castelo na Boémia, as aulas de ginástica os programas do partido em geral para os jovens. Ludvik até concordava com ela mas naquele instante queria era que estivessem juntos em Praga e não suportava a ideia de que ela estaria mais feliz no campo de férias.  Resolve ser irónico. Numa breve piada escrita num postal para a namorada num campo de férias tudo acaba por se precipitar indo parar a um campo de reeducação e ficando com a sua vida virada de pernas para o ar. Para sempre…  Acaba por encontrar Lúcia com quem se envolve mas sem a conseguir amar ou sequer tratar bem. Em cima de uma pilha de mal-entendidos, cada um transportará a sua verdade ,

alheia à verdade dos outros, todas elas devastadas pelos ventos da História.

Kundera reflecte, caricaturiza, compadece-se, odeia, explode de raiva e resigna-se, e pelo caminho retrata pessoas e o mundo como quem relata um combate no qual todos acabamos por perder no fim. A sua obra marca uma época que já não existe embora a maior parte das angústias e do sofrimento sejam os mesmos. O cenário mudou mas a peça será sempre a mesma.

Muitos anos depois perguntei ao C o que é que tinha acontecido às páginas perdidas da “Insustentável Leveza do Ser”. Fez um ar solene e inspirou fundo. Estava no fim da recruta, ne semana de campo. A certa altura no meio do mato deu-lhe aquele ataque inequívoco e imprescindível de se ter que agachar atrás de uma moita. No fim, o único papel disponível era o do livro que o acompanhava dentro da mochila. Uma história que Kundera poderia ter escrito.

 

Artur


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