Depois de Sartre, depois de Camus, depois do ensino
secundário, mais ou menos entre o segundo ano da Faculdade e a tropa, diria que
a obra de Milan Kundera entrou nas nossas vidas na mesma altura em que demos
entrada na vida adulta. Não se poderá dizer que foi um passeio agradável ou
sequer uma catástrofe mas, uma das primeiras lições que a obra de Kundera me
transmitiu foi a de que havia vidas bem piores que a minha. O C foi o primeiro
a ler “A Insustentável Leveza do Ser” e passava noites a fio a elogiar a obra. Era
a continuação das leituras anteriores, era Kafka e Nietzsche no melhor de cada
um, era o novo marco na literatura europeia. Numa noite de Sábado, finalmente,
emprestou-me o livro com todo o cuidado, como quem passa uma relíquia sagrada
de uma igreja para outra. Sem ter ainda largado o livro ainda houve tempo para
uma breve advertência: o livro não estava completo, faltavam-lhe mais ou menos
umas dez, quinze páginas. Depois me explicaria a razão, agora não era o tempo
disso. Não liguei e quase que lhe arranquei o livro dos dedos ainda indecisos.
O C era feito de mistérios e enredos inacabados. Claro que devorei o livro
mesmo sem as páginas referidas o que me obrigaria a reler mais duas ou três
vezes, agora já na forma completa. O romance apoiado numa estrutura fragmentada
faz cruzar personagens e ambientes de uma forma fluída, cujo sentido se vai
fortalecendo como um curso de água que desce de montanhas escarpadas e
irregulares para se espraiar num amplo estuário, misto de suavidade e angústia.
Fala de amor e lealdade, de liberdade e opressão, caricatura do comportamento
humano, desventuras e breves alegrias. Fala na busca da felicidade e das várias
transformações em que ela se vai tornando. Entre os dois mundos do tempo da
Guerra Fria as pessoas procuram desesperadamente a sua felicidade carregando
consigo os fantasmas do passado exigindo da existência coisas diferentes. Um
pouco autobiográfico “A Insustentável Leveza do Ser” é contada a partir do lado
de lá da cortina de ferro onde a liberdade é um sonho e os conceitos se
confundem de acordo com as leituras oficiais do partido único. Do lado de cá
também não se poderá falar exactamente do Paraíso na Terra, havendo bastantes
contradições e manchas a assinalar. De um lado e de outro os sistemas
desfazem-se sobre as suas próprias contradições devorando gerações, uma a
seguir à outra.
As fronteiras do silêncio voltavam a fechar-se sobre a
Europa, e a Grande Marcha já não desfilava senão em cima de um pequeno estrado
no centro do planeta. As multidões que outrora se acotovelavam ao pé do estrado
tinham partido há muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem espectadores…..
…..a Grande Marcha continua, apesar da indiferença do
mundo, mas está a tornar-se nervosa, febril, ontem contra a ocupação do Vietname
pelos americanos, hoje contra a ocupação do Cambodja pelos vietnamitas, ontem
para apoiar Israel, hoje pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã
contra Cuba, e sempre contra a América, sempre contra os massacres e sempre em
apoio a outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e para poder
acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único acelera cada vez mais
o passo, de modo que a Grande Marcha já só é um cortejo de gente apressada a
desfilar a galope, e a cena cada vez se encolhe mais, até ao dia em que finalmente
há-de tornar-se apenas um ponto sem dimensões.
(A Insustentável Leveza do Ser)
Não vou perder aqui
tempo a descrever todos os aspectos do romance. Limitar-me-ei a referir a sua
grande importância no momento em que surgiu na medida em que abriu um caminho
onde o humor, a memória, e a percepção da beleza podem reclamar um novo Homem,
uma nova Literatura desde que combinados num padrão de exigência e rigor que se
eleve acima da espuma dos dias. Claro que não aconteceu nada como é habitual. A
mediocridade e o kitsh político e social prosseguiram o seu caminho como
sempre. A arte é feita de sobressaltos ocasionais em que a estrutura abana mas
não cai, a evolução espreita mas depois vai esconder-se a correr. Sobre os
personagens sopram os ventos da História interferindo nos seus percursos mais
ou menos intensos, mais ou menos elaborados, varrendo-os de qualquer maneira da
mesa onde depositaram as suas aspirações iniciais.
O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são
tresanda a estupidez. Viva Trotski
Ludvik
(A Brincadeira)
Seguiram-se mais romances que fui devorando ao longo dos
anos. O primeiro de todos da sua biografia, “A Brincadeira”, escrito entre 1962
e 1965. Marketa e Ludvik são estudantes universitários em Praga. Ela
identificava-se com tudo o que vivia, o campo de férias num castelo na Boémia,
as aulas de ginástica os programas do partido em geral para os jovens. Ludvik
até concordava com ela mas naquele instante queria era que estivessem juntos em
Praga e não suportava a ideia de que ela estaria mais feliz no campo de férias.
Resolve ser irónico. Numa breve piada
escrita num postal para a namorada num campo de férias tudo acaba por se
precipitar indo parar a um campo de reeducação e ficando com a sua vida virada
de pernas para o ar. Para sempre… Acaba
por encontrar Lúcia com quem se envolve mas sem a conseguir amar ou sequer
tratar bem. Em cima de uma pilha de mal-entendidos, cada um transportará a sua
verdade ,
alheia à verdade dos outros, todas elas devastadas pelos
ventos da História.
Kundera reflecte, caricaturiza, compadece-se, odeia, explode
de raiva e resigna-se, e pelo caminho retrata pessoas e o mundo como quem
relata um combate no qual todos acabamos por perder no fim. A sua obra marca
uma época que já não existe embora a maior parte das angústias e do sofrimento
sejam os mesmos. O cenário mudou mas a peça será sempre a mesma.
Muitos anos depois perguntei ao C o que é que tinha
acontecido às páginas perdidas da “Insustentável Leveza do Ser”. Fez um ar
solene e inspirou fundo. Estava no fim da recruta, ne semana de campo. A certa
altura no meio do mato deu-lhe aquele ataque inequívoco e imprescindível de se
ter que agachar atrás de uma moita. No fim, o único papel disponível era o do livro
que o acompanhava dentro da mochila. Uma história que Kundera poderia ter
escrito.
Artur
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