domingo, 30 de julho de 2023

PELA ÁGUA - APOCALYPSE NOW

 


O poeta faz-se vidente com uma prolongada, imensa e meditada desregra de todos os sentidos. Tortura inefável onde ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde se faz, entre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito e o Supremo Sábio.

Arthur Rimbaud "Carta Ao Vidente"


Existe luz bastante para iluminar os eleitos e obscuridade bastante para os humilhar. Existe obscuridade bastante para ofuscar os réprobos e luz bastante para os tornar indesculpáveis.

Blaise Pascal "Pensées".



Nota prévia: Não pretendo analisar "Stalker", um objecto artístico que não é analisável, já que está para além das categorias analíticas comuns. Como, de resto, todos os restantes filmes de Andrei Tarkovski. O que aqui fica, se ficar, são apenas algumas intuições recorrentes de cada vez que o revejo, e reveste-se este texto necessariamente de um carácter impressionista ou expressionista. À escolha.


K. J. lembra-se de uma história murmurada numa noite de Verão por uma voz que diz:

Comi carne humana. Os cadáveres dos meus camaradas de campo. De doentes, de fracos que não aguentaram o golpe...

    A voz que falava nas trevas pertencia ao monitor de um campo de férias que K.J. frequentava em 1957, um antigo resistente, regressado do Gulag siberiano, capturado pelo Exército Vermelho, como tantos outros, ironicamente acusado de colaboração com o inimigo. Tinha regressado de onde nunca se regressa, mesmo quando se regressa. A sua, digamos assim, "confissão", porque murmurada e não gritada, porque feita na obscuridade e não em plena luz do dia, não corresponde a nenhuma necessidade de catarse colectiva, mas antes a um diálogo consigo mesmo que, só por acidente, se tornou público. 

    Tarkovski, adolescente e jovem adulto, também viveu o apocalipse da guerra e logo a seguir os das purgas, dos campos, e foi testemunha de uma esquizofrenia colectiva inscrita num sistema político baseado na mentira e no terror. A mesma mentira e o mesmo terror que, anos mais tarde, trucidariam o cineasta e mutilariam sem remédio a sua obra. "Eu, estou em todo o lado na prisão", diz o Stalker à sua mulher no início do filme.

A Tarkovski aplica-se na perfeição algo que Jean Renoir afirmou: "Um realizador faz um único filme em toda a sua vida. Depois, quebra-o em pedaços e fá-lo de novo". Ou aquilo que Raymond Bellour afirma no ensaio "Ciné-Répetitions" quando considera formas internas e externas de repetição no cinema, desde as formas de interacção dos ensaios à capacidade de o cinema re-inscrever os sonhos e desejos dos espectadores, preenchendo assim o seu desejo como repetição, o desejo como repetição. No caso de Tarkovski, tal expressa a profunda auto-consciência do seu desejo e da sua angústia.

"Stalker" foi realizado por Andrei Tarkovski em 1979 e é o mais devastado e devastador de todos os filmes. Nem o cinema americano, com toda a panóplia de efeitos especiais e artifícios técnicos disponíveis, nas inúmeras vezes que procurou representar o Armagedão, conseguiu atingir um tal grau de desolação, sentido de perda e percepção da catástrofe que as imagens puras e poéticas deste filme nos dão a ver (e ouvir). Para mais, com um tal desprezo não dissimulado pelo militantismo na arte, virando as costas a um discurso politizante e dirigindo-se a uma outra fonte e que é constituído pela sede de espiritualidade inerente a todos e cada um dos homens, e a que George Steiner chamou "a nostalgia do Absoluto". Depois do fim das grandes narrativas (hegelianismo, marxismo, positivismo) e da consequente perda de influência dos sistemas simbólicos - política, religião, filosofia, etc.) só a grande arte se acha capaz de dar ainda uma resposta a esse anseio. No cinema, Tarkovski foi o máximo cultor dessa tendência de substituição numa modernidade inacabada e aos soluços. Neste filme, fá-lo através de uma narrativa que acompanha a demanda de três homens após o fim da história da humanidade, numa temporalidade abolida, em ruptura definitiva e irredimível entre Natureza e História. Ninguém parece dar-se conta que o Apocalipse já ocorreu, ou seja, de que já ocorreu aquilo que estava anunciado há quase dois milénios, que o Sétimo Selo já foi rompido e a que a cólera do Cordeiro se derramou sobre o mundo.

 A ZONA




Aberta a todas as interpretações, e todas as interpretações são válidas, o que é a Zona exactamente ? Em primeiro lugar é o paradigma, ou o arquétipo de todas as zonas modernas (irresistível e tangencialmente somos levados a estabelecer uma estranha relação com as paisagens de "Deserto Vermelho" de Michelangelo Antonioni), desprovida de qualquer tipo de emoções, a não ser as que têm origem num profundo sentido de inquietação e desestabilização. E não poderia ser de outro modo: esta é a paisagem da mais absoluta ruína, composta por destroços, terrenos vazios, vias de caminho de ferro que não conduzem a nenhum lado, água por todo o lado. Já vimos antes esta paisagem: nos documentários sobre as cidades devastadas durante a II Guerra Mundial, em "Germania Anno Zero" de Roberto Rossellini, em "Nuit et Brouillard" de Alain Resnais, nas fotografias das cidades sírias bombardeadas até ao chão, em Mariupol arrasada pela artilharia russa e em todos os locais e em todos os locais que se tornaram não-locais. Temos olhos para ver e vemos. Mais ainda: a Zona está delimitada e guardada por militares: o direito encerra e guarda este sítio de não-direito. Delimitada por barreiras de arame farpado e por obstáculos metálicos, desorganizada, radicalmente desestruturada. Um espírito mais ou menos ordenado, que tentasse descortinar o seu plano, extensão, partes, orientação, sairia frustrado, tal a dimensão do caos que se apresenta, juncada de destroços humanos e materiais. Muito menos conseguiria descobrir a sua origem (o que é, de onde vem ?). Uma única certeza: apareceu assim, com esta natureza, depois da catástrofe, mas uma catástrofe imensa, sem retorno e sem remissão. Teve ou não lugar o desastre nuclear ? Dado o comportamento bizarro do tempo na Zona, pode ter ocorrido, pode vir a ocorrer; a estrutura da temporalidade é completamente subvertida e deixou de ser linear. 

OS HOMENS




Neste filme assombroso e assombrado, o stalker é o guia, aquele que conduz os outros no interior da Zona; um Professor e um Escritor. Nunca saberemos os seus nomes, nem isso importa. São personagens arquetípicas, cuja função simbólica vamos pouco a pouco construindo, a partir das suas acções. Não são sequer muito importantes na diegese; são um pretexto para o caminho espiritual do stalker no interior da Zona. Esse é o personagem principal, digamos, o ponto focal de todo o filme, à medida que a sua função intermedial se vai apagando, dando lugar à proeminência da sua verdadeira estatura: só ele encontra nas ruínas da Zona a melancolia e a nostalgia, a imensa tristeza que lhe confere um sentido. Só ele é capaz de compreender o sentido da expressão latina lacrimae rerum. E quem é esse que tudo compreende, mesmo aquilo que está para além da possibilidade de compreensão, para além ainda os juízos lógicos, de toda a racionalidade ? Um louco, um simples de espírito, um iluminado, um sacerdote, um guia, aquele que avança furtivamente. E compreende assim porque vive no interior da natureza simbólica das coisas, uma simbólica complexa e viva, que escapa às predicações, e porque existe no interstício entre dois mundos que nunca se encontram e que, sobretudo, nunca se reconciliam. Não existe mensagem nenhuma no filme; tentar encontrar a mensagem equivale a desapossar os símbolos da sua essência. No entanto, é inevitável que a nossa intuição nos indique que, para além de toda a vontade de verdade, para além de todo o desejo de saber, se insinue a convicção de que, no fim, é o mundo natural que prevalece, que vence o combate e que, sobre as ruínas de uma civilização devastada e perdida, os elementos naturais readquirem os seus direitos, tudo invadindo, e que os elementos dessa civilização - que aqui são representados pelos carros de combate destruídos, pelas armas espalhadas por todo o lado, pelos corpos calcinados daqueles que pereceram na catástrofe - são sobrepujados pelas plantas que os cobrem; o mundo torna-se liquído, o elemento omnipresente, fazendo lembrar a dominância desse elemento em "O Espelho" e, sobretudo, em "Nostalgia".

Se o poeta de "Nostalgia" parecia caminhar sobre as águas:



O stalker, por sua vezdeixa que a chuva os encharque, essas chuvas intensas (apocalípticas) que apaziguam todas as paixões e permitem reencontrar a esperança possível. Mas a água é também dotada de uma imensa carga emocional, comum aos dois filmes (três, se lhes juntarmos "O Espelho"). Numa das sequências mais extraordinárias do filme, os três homens param a sua deambulação pela Zona e, deitados numa posição quase fetal na superfície das águas, meditam. É um momento em que a acção - se de acção, no sentido clássico, se pode falar - pára, o tempo desacelera; a carga emotiva exerce sobre o plano uma tensão que Tarkovski tinha eliminado de quase todo o filme. Quase, porque, parecendo que a todo o momento escapa ao controlo do cineasta esses momentos de tensão existem e são quase insuportáveis de tão belos e emocionantes. Deixemos apenas um exemplo:
No início do filme, quando o stalker desperta do sono, vemos um copo que, por acção da vibração de um comboio que passa, se desloca sobre a mesa. Vê-lo-emos de novo, no fim, quando a filha muda do stalker, uma mutante sem pernas, o faz deslocar com a simples força do olhar; o círculo fechou-se. Mas aquilo que acontecia por força das leis da física, acontece agora pela simples força de vontade dessa rapariga estranha, dotada - suspeitamos - de uma fé inabalável: a força centrífuga passa a força centrípeta. Quem poderá salvar-nos ? O stalker, essa espécie de Cristo andrajoso, que tropeça na sua própria dúvida ? O Professor e o Escritor, meras peças de um jogo que não dominam ? Ou essa criança que vive no silêncio e no imobilismo e cuja força resulta de uma fé inabalável num poder que a transcende ?
A melancolia que se desprende destas imagens tem duas origens: o conhecimento do futuro e a angústia que esse conhecimento carreia; aquilo que o filósofo Martin Heidegger chamou "esquecimento do ser" - ou a memória desse esquecimento, e como me congratulo com este paradoxo ! - que invade a modernidade tecnológica, mediática, obcecada pelo sucesso e desligada da essência humana. Onde estão agora, pobre Heidegger, o ser-aí e o estar-no-mundo (in-der-Welt-sein) ?
Na realidade, "Stalker", muito antes das grandes teorias sobre o "fim da História", proclama bem alto que esse fim chegou, não por via de um cume de perfeição do capitalismo que aboliria a necessidade de ideologias e que, por ter atingido tal grau de perfeição, se teria tornado o álfa e o ómega da existência humana na Terra. Antes, ou melhor, sobretudo, porque a História e a sua legião de falhas, desencontros e absurdos, foi definitivamente derrotada pela Natureza, essa entidade física e metafísica, à qual se opôs desde sempre e que no derradeiro combate lhe determina o fim. Ou, como diz Milan Kundera em "A Arte do Romance":
Mas se o homem perdeu a necessidade de poesia, será que se apercebe do seu desaparecimento ? O fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não haja nada mais tranquilo que o fim.






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