domingo, 15 de agosto de 2010

CRÓNICAS DO BAIRRO II


(Porque o Cristiano morreu)
Naquela época vivia-se “em andamento”, isto é, não havia muito tempo para pensar, porque os acontecimentos sucediam-se a uma cadência demasiado acelerada obrigando-nos a comportar como melgas no Verão…um ciclo de existência muito curto e uma avidez ofegante de vida. Deixar picadelas em todas as carnes, beber todo o sangue possível, evitar as armadilhas electrificadas dos estabelecimentos comerciais, rodopiar alegremente em torno dos lampiões da avenida, e no fim… estoirar. Parar para reflectir os mistérios de tudo isto era tempo perdido, uma armadilha idêntica àquelas duas barras de néon azul penduradas no tecto da geladaria, que de tempos a tempos nos avisavam num estalo ruidoso que alguém tinha caído. A depressão ficava para mais tarde. Para quem conseguisse chegar ao Inverno inteiro. A música ajudava, as miúdas aliviavam, as drogas a adormeciam, as motas aceleravam e a estrada corria à nossa frente sem que nunca a conseguíssemos agarrar.
Um dos acontecimentos que faziam o favor de nos ocupar colectivamente era o Rally de Portugal, com a sua maravilhosa descida nocturna da Rampa da Pena”. De comboio, mota, à boleia, etc, a comunidade deitava mão ao que havia e punha pés ao caminho. Uma dessas excursões começou com um jantar em casa do A nos arredores de Sintra. Para variar, ninguém se lembrou que “dava jeito” ter levado comida para o efeito. Vinho, vodka, berlaites, comprimidos e pó, claro que sim. Agora para ocupar a dentadura estávamos a zeros. Visita de estudo à cozinha, revista aos armários. Um pacote de canja resistia estóico, ou esquecido, o que vai dar ao mesmo, às últimas refeições do Verão passado. Água ao lume, pacote lá para dentro, umas massas milagrosas oferecidas por um Templário de passagem a caminho da terra santa com uma moca nos cornos maior do que o cavalo, e vai de mexer a “poção mágica” para matar a fome àquelas alminhas antes de uma noite inteira nas brenhas da serra à espera dos bólides. Debaixo do ar húmido e penetrante de Sintra, lugar onde invariavelmente, de Verão ou de Inverno…está sempre frio. À medida que era confeccionado o manjar, na sala, as provisões trazidas escorriam goela abaixo, ou consciência acima, conforme a situação. A celebração do rally tornava-se um congresso de convívio amalucado, uma rave “avant la lettre”. Afinal de contas, o rally era uma desculpa, o que interessava era estarmos juntos…a celebrar.
Lembro-me de um diálogo com o P num intervalo da Faculdade, em que corria uma discussão acalorada sobre quem seria o melhor piloto da actualidade. Vendo-me alheado do debate, olha para mim e pergunta: “Então qual é para ti o melhor?” – respondo-lhe que não percebo nada de rallys e que nem sequer ligo muito a desporto motorizado. Por isso não tenho opinião. A resposta pronta, espírito do tempo e da idade, saiu certeira: “Isso se percebes ou não é o que menos interessa! Escolhes um nome e dizes que é o melhor do mundo! Ou pensas que alguém aqui é perito no assunto?”
Voltando à canja, enquanto se faziam ouvir na sala os primeiros grunhidos das invasões normandas, na cozinha o A tem uma ideia de génio. “Eh pá, esta canja está muito fraquinha, vamos ter que lhe acrescentar mais qualquer coisa. Um bocado de vodka, por exemplo” Concordei, até porque um cheirinho numa sopa insípida só poderia encorpá-la de sabor. Assim foi. E voltou a ser, e foi mais outra vez. Para aí meia garrafa para dentro da panela. Claro que o jantar foi um sucesso. As “bóias” começaram a vir ao de cima, umas melhores, outras nem por isso. No fim dos cafés ouvimos a voz do C, como se estivesse a falar de dentro de um nave espacial com uma porta aberta, ou seja, a gritar com a cabeça enfiada na retrete. Dizia que ia morrer, ou qualquer coisa do género. O jantar tinha-me caído na fraqueza obliterando-me a capacidade de decifrar mensagens extraterrestres. Vai tudo a correr na direcção da casa de banho, tentar ajudar no que podia. A muito custo conseguimos deitar o C numa cama, descalçar-lhe os sapatos e cobri-lo com uma manta. Quando já íamos a voltar para a sala, alguém se lembrou que o gajo tinha lentes de contacto e que não podia adormecer com elas postas. A equipa de cirurgia voltou então ao bloco operatório para mais uma missão de alto risco. É claro que se tratava de uma tarefa complicada. Andavam então quatro cirurgiões de volta dos olhos adormecidos do C, quando no corredor passa a figura do irmão dele, o “cara de peixe”, num estado ligeiramente menos comatoso do que o dele. Empurrado por ventos contrários que o obrigavam a abanar como uma árvore à procura da sua postura vertical, o “cara de peixe” tentava focar o que se estava a passar em torno do irmão. Assim que se apercebe, grita para nós: “Ninguém tira as lentes ao meu irmão que ele não é nenhuma máquina fotográfica…” Risota geral, rotas cambaleantes de regresso à sala, C a dormir, casacos vestidos e toca a andar que a rampa da Pena é daqui a menos de uma hora.
Não me lembro de quem ganhou a descida da rampa, nem mesmo o Rally daquele ano. Mas o célebre jantar da canja com vodka e o episódio da máquina fotográfica…esses vou guardar no fundo das minhas memórias para sempre.

Artur

3 comentários:

Clarice disse...

Guardam-se pedaços dentro de nós, como se fossemos caixas de eternas recordações... somos também nós "massa" desses pedaços vivos... que não nos deixam morrer...

Gosto destes Rallys:)

A.Teixeira disse...

Uma boa história, Artur.

Abraço

Artur Guilherme Carvalho disse...

Clarice,
As asas são para voar e as caixas.. para recordar. Obrigado. Bjs

António,
Always a pleasure to entertain someone with a story. 1 abraço