segunda-feira, 14 de junho de 2021

REGRESSOS

 

Décimo nono dia do quinto mês de dois mil e vinte e um ( a última vez que escrevi aqui no diário que passou a mensário). O meu despertador interior, as minhas inquietações, ou o anjo da guarda ( como dizia a minha mãe), acorda-me a tempo de assistir ao renascimento da luz de hoje. Há muito tempo, há quase doze anos, decidi reger-me pelo que me contenta. Se a felicidade se juntar ao contentamento então melhor ainda. Estar contente com o que alcanço, com quem me alcança, é o que me faz sentir quase sempre em estado de graça ( às vezes é só uma hora por dia). As minhas dores, os meus desesperos, as minhas fúrias e revoltas, deixo-as para as batalhas campais, para o corpo a corpo, para as armas que escolher. Quem me conhece sabe que a minha doçura equivale aos vapores que emano pelas ventas quando irritada.
Quando regressei à ilha mãe há quase sete meses, vim extenuada e pronta para lamber as minhas feridas até sararem. Vim para acompanhar a minha filha mais nova o mais à distância possível. Vim para preparar a terra que sofre com a ausência de cuidados. Não estou instalada no passado morgadio da família paterna, nem a abanar-me com achaques à espera que a tormenta passe. Choveu dentro de casa quase todo o inverno e eu só acrescentei a quantidade de vasilhas para recolher a água que caía. Encontrei um desumidificador, uma máquina de secar e uma de lavar. Um colchão ortopédico, um pirógrafo, canetas e tintas, sementes e bolbos. E mais um monte de coisas que contribuem para a minha sanidade mental, entre as quais um machado,uma motoserra e uma roçadeira. Alguns livros e muitos cadernos. Tudo coisas que me capacitam além do tempo para me sentar em qualquer rocha a desfrutar do espetáculo divino que se apresenta diante do meu olhar. A primavera chegou, o verão aproxima-se, e o cansaço dissipou-se.
Cair e levantar, andar e dançar, dormir e acordar, ligar e desligar, ver e observar, ouvir e ser ouvida,escrever e descrever, viver e deixar viver, amar e ser amada, orar e agradecer, são movimentos vitais para manter a humanidade no núcleo da minha existência. Qualquer falha neste processo é como menos uma pedra na calçada., como um caminho que se faz irreversivelmente diferente. Por isso tantas vezes coxeio. E por isso às vezes tenho dores. Por isso me corrijo e emendo. E me dou permissão de aceitar a mão que se estende.
No décimo primeiro dia do sexto mês de dois mil e vinte um, recomeço. Continuo o movimento contínuo que me trouxe de volta ao lugar onde sempre quis regressar. 

Elsa Bettencourt

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