Na
solidão escura do sono, no frio sem respostas para tantas perguntas que se
continuam a fazer, nas lágrimas solitárias de uma almofada absorvente, na
insónia teimosa de um tempo que passa e continua a passar, num caos de sombras
decorado de medos, em tudo o que nos perturba sem nos deixar acontecer…alguma
coisa…desejamos que alguma coisa aconteça, que interrompa um ciclo sem luz,
alguma coisa que apareça das trevas da noite e que a rasgue de uma vez. Um
comboio ruidoso e libertador a caminho do seu destino. Um trilho metálico que
gema a cada volta das rodas da locomotiva. Qualquer coisa que se chama com um
grito desesperado de interrogação, de raiva e de insistência em cavar uma vala,
abrir um espaço de luz que nos alivie por instantes, que nos aqueça, que nos
faça uma festa de cabeça e nos dê por pouco tempo que seja a certeza de um
conforto, a tranquilidade de um sono despreocupado, a memória de outro lado no
universo. Como um comboio a rasgar a noite, uma massa metálica em movimento, uma
linha aberta que por onde passa não deixa nada igual ao que estava. Um comboio
a rasgar a noite e a dar respostas a seres solitários que desesperam no
silêncio. Os carris desenhados pelo correr ritmado do peso das rodas…ou será
uma bateria a marcar o ritmo, a dar a entrada para os primeiros acordes? Um
farol a acordar cada buraco escondido,
todo e qualquer espaço adormecido obrigado a acordar, um apito estridente suspenso
no ar embriagado de vertigem que explode, uma direcção, um destino, uma
velocidade alucinada. Ou então uma guitarra rendilhada a saltitar ao longo de
uma escala, um solo, uma melodia. Um comboio a rasgar a noite como uma seta que
assobia e atravessa o vento a uma velocidade vertiginosa. O baixo a acompanhar
o bater do bombo da bateria a delimitar os cantos do ritmo com arranques
roufenhos. E depois uma voz, feminina, doce e ao mesmo tempo grave, uma voz de
menina a trautear sem letra, apenas uma área inventada que afaga embalando. Com
todos os componentes no seu lugar os seres embarcam preparando-se para
desfrutar a viagem. Agora sim. A noite pode continuar a ser noite, o frio, o
escuro, a solidão e o medo. A imensa tela negra pode continuar absoluta,
imponente, pesada sobre a cidade. O comboio arrancou e já nada o vai conseguir
fazer parar. E lá dentro há passageiros, espectadores, companheiros de viagem
que se empolgam com o som, que se maravilham com a velocidade, que vibram com a
harmonia. A sua viagem é agora tudo o que lhes fazia falta para melhor
atravessar o vale das sombras. A música é o seu guia por instantes, as canções
as carruagens que se vão seguindo atreladas umas às outras. Eventualmente o
comboio acabará por chegar ao seu destino, por parar. Mas nessa altura já terá
cumprido a sua função. Não sei explicar quem sou mas reconheço-me se me
encontrar…
Como
um comboio desembestado a rasgar a noite com um potente farol a abrir caminho
nas trevas, uma canção ritmada, uma harmonia embalada, um espaço aberto de
esperança ou uma pausa para respirar. Um tempo limitado e vertiginoso em que
por uma fracção de segundo os seres se apresentam a si mesmos, abraçando-se,
reconhecendo-se. Um apito estridente a envergonhar o silêncio. Um tubo metálico
que passa numa enorme pausa onde nos conseguimos encontrar. Uma viagem ao
interior de quem somos, de quem nunca deixámos de ser. Uma vertigem que passou
por aqui e que nos fez aguardar a manhã com muito mais ânimo, vontade e
capacidade para continuar.
Artur
1 comentário:
Enviar um comentário