Nota: Este texto foi originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
“Qu’est-ce que le cinéma ?”
O
que é André Bazin ? Obviamente, a pergunta não visa a identidade formal do
autor; sabemos, e afirmámo-lo em texto anterior desta rubrica “Textos &
Imagens” dedicado ao nº 1 da revista “Cahiers du Cinéma”, que é o mais importante
e influente crítico e teórico do pós-guerra. A medida dessa importância e dessa
influência é sobejamente conhecida, sobretudo entre os autores da Nouvelle
Vague. Sobretudo, mas não só; basta que pensemos na plêiade de autores (já não
autores de cinema, mas pensadores de cinema) que, dos dois lados do Atlântico,
se reclamam seus herdeiros e também seus contestários. Aliás, a contestação é
uma outra forma de reconhecimento, manifestando-se muitas vezes através de uma
figura a que Harold Bloom chamou “angústia da influência” (ver “O Cânone Ocidental”).
Assim,
a pergunta inicial dirige-se a um núcleo de sentido que tem a sua origem no
modo como jogou “o jogo das categorias”, entendendo-se “categorias” no sentido
filosófico de conceitos e constelações de conceitos que criam zonas de
discursividade progressivamente radicadas numa determinada cultura, fazendo
evoluir o horizonte de inteligibilidade do(s) objecto(s) sobe os quais se
debruçam. Utilizando uma expressão de Michel Foucault, a ordem do discurso de
André Bazin inaugura aquilo a que mais tarde se chamaria “cinefilosofia”, ou
seja de um tipo de pensamento que pesquisa a essência do cinema recorrendo à
pura forma interrogativa da disciplina filosófica, a pergunta “o que é”, que
remete para uma ontologia do cinema. Se dúvidas houvesse sobre a afirmação do
acto fundador de uma reflexão filosófica sobre o cinema (apoiada em categorias
e conceitos ), bastaria a referência a uma dimensão ôntica do objecto para que
todas essas dúvidas se dissipassem. No
texto fundamental, datado de 1945[1],
“Ontologie de l’image photographique”, Bazin expõe o seu postulado : “O cinema
aparece como a ealização no tempo da objectividade fotográfica”[2].
Evidentemente, a abordagem filosófica do cinema por André Bazin conhece um
limite, que é também uma possibilidade: a sua relação com a realidade e é
precisamente nessa relação com a realidade, ou melhor, é na teorização dessa
relação entre o cinema e a realidade que se funda a reflexão filosófica. Até
aqui, nada de muito relevante se pode extrair destas formulações; é um dado
adquirido que o cinema regista mecanicamente a realidade e a reproduz também de
um modo mecânico, numa relação documental. Aquilo que, a nosso ver, representa
o salto quântico do pensamento de André Bazin é a crença na capacidade
cinematográfica de, ao revelar o real, participar efectivamente no próprio ser
do real. Dir-se-á que esta caracterização sumária do pensamento de Bazin
carrega consigo um vocabulário tecnicamente filosófico, tomado de empréstimo à Ontologia,
a mais grave e metafisicamente comprometida disciplina filosófica. Para
dissipar essa impressão, dizemos que o vocabulário é o do próprio Bazin que,
descendo ao nível da matéria, refere numa das mais luminosas páginas destes
ensaios a principal qualidade do acto revelatório existencial do cinema: o
facto de “tocar a carne e o
sangue da realidade” [3]. É por isso que à montagem , que retalha e
escamoteia o real, Bazin prefere o plano-sequência que deixa aflorar a vibração
das coisas, o que nos faz pensar no imenso talento do acaso e na sua quota
parte de responsabilidade na criação cinematográfica; se substituirmos “coisas”
por “fenómenos” teremos uma outra perspectiva filosófica que o teórico não
desdenharia: a abordagem fenomenológica, o real tal como ( nos) aparece e se
manifesta (perante a câmara). O que introduz ainda uma outra perspectiva
correspondente a um âmbito de reflexão filosófica por excelência: a ética, pela
qual mede as implicações morais do registo mecânico / técnico do qual refere a
principal característica: a fidelidade. O neo-realismo, levado ao apogeu por
Roberto Rossellini, fornece a Bazin um magnífico exemplo prático da sua teoria.
Diferentemente das escolas artísticas que o precederam, o realismo do neo-realismo, na obra de Rossellini
mais do que na obra de qualquer outro cineasta, reside menos nos temas que na
estética, a acreditarmos no seu credo:
“As coisas estão aí, porquê manipulá-las ?”, pergunta o cineasta
italiano. Para Bazin, o neo-realismo é uma tomada de consciência do real, que
produz um novo tipo de imagem, a imagem-facto : “Sem dúvida a sua consciência,
como toda a consciência, não deixa passar todo o real, mas a sua escolha não é
lógica, nem psicológica: é ontológica no sentido que a imagem da realidade que
nos é restituída permanece global”[4].
Essa tomada de consciência (um termo com uma longa carreira filosófica) produz
um grão de realidade, “um acrescento de realidade no ecrã”.[5]
O fervor com o
qual foi recebido o pensamento baziniano é emblemático da filosofia do cinema ,
em particular da tradição crítica da revista “Cahiers du Cinéma”: os seus fiéis
depositaram uma fé imensa no seu pensamento, portador de valores morais e
criador de uma extraordinária foça simbólica. Eric Rohmer, talvez o seu
herdeiro mais directo (não filmar senão aquilo que é), mediu, apaixonadamente,
o impacto dessa teoria reflexiva. Bazin foi o primeiro a oferecer ao cinema a
sua consciência : “À maneira de um explorador, Bazin entrega-se a uma
verdadeira prospecção no interior do ser do cinema”. [6]
Santificando a objectividade cinematográfica, Bazin não realizou nada menos do
que uma “revolução coperniciana, análoga à que Kant realizou em filosofia.
Copérnico deslocou a perspectiva da Terra em direcção ao Sol, Kant do objecto
ao sujeito, e Bazin , inversamente, do sujeito ao objecto”.[7]
Dessa adoração do ser puro do cinema à religião de um cinema de autor
auto-produzido, em ruptura com forças profissionais, económicas, políticas e
ideológicas, não foi mais do que um passo.
[1]
Utilizamos neste texto a compilação de ensaios Qu’est-ce que le cinéma ?, editada em 1990 pelas Éditions du Cerf,
que constitui uma selecção de textos constantes da edição em quatro volumes,
publicada em 1958 pela mesma editora e que se encontra disponível para consulta
na Biblioteca da Cinemateca. De igual modo, encontram-se disponíveis as edições
nas línguas portuguesa e inglesa desta versão reduzida.
[2] “Le
cinéma apparaît comme l’achèvement dans le temps de l’objectivité
photographique”, ibidem
[3] “Le
réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération” ibidem
[4] “Sans doute sa conscience, comme toute
conscience, ne laisse-t-elle pas passer toute le réel, mais son choix n’est ni
logique ni psychologique: il est ontologique en ce sens que l’image de la
réalité qu’on nous restitue demeure globale”
[5] “un plus
de réalité sur l’écran”, ibidem
[6] ROHMER,
Éric, “La «Somme» d’André Bazin” in Le
Goût de La Beauté, Paris, Cahiers du Cinéma, 1984. Este volume encontra-se
disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.
[7] “[…) une
révolution à la Copernic, analogue à celle que Kant accomplit en philosophie. Copernic
a déplacé la perspective de la Terre vers le Solel, Kant de l’object vers le
sujet, et Bazin, à l’inverse, du sujet vers l’objet”. ibidem
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