The Mass Ornament . Weimar Essays, Siegfried
Kracauer Siegfried Kracauer; translated by Thomas Y. Levin.-London : Harvard
University Press, 1995
Na introdução à versão
norte-americana de “Das Ornament der Masse”, Thomas Levin chama a atenção para
uma metodologia programática presente na secção de abertura do ensaio com o mesmo
título, datado de 1927, na qual Kracauer enuncia o modo como a insignificância
dos artefactos quotidianos os capacita para se tornarem índices ou sintomas de
condições históricas específicas:
“A
posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada com
maior rigor a partir de uma análise de expressões inconspícuas ao nível
superficial do que a partir dos juízos que essa época produz a propósito de si
mesma. Já que esses juízos são expressões de tendências de uma era particular,
não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição geral. Pelo
contrário, as expressões ao nível superficial, em virtude da sua natureza
inconsciente, providenciam acesso não mediado à substância fundamental do
estado das coisas. Correlativamente, o conhecimento do estado das coisas
depende da interpretação dessas expressões de nível superficial. A substância
fundamental de uma época e dos seus impulsos desapercebidos iluminam-se
reciprocamente”.
Como se entende este programa e
quais as suas consequências no esquema interpretativo desenvolvido por Kracauer
ao longo dos ensaios que constituem esta colectânea ? Noutros termos, como é que o domínio da realidade empírica –
e em particular as suas superfícies, previamente rejeitadas como reino do vazio
e da ausência – veio a assumir um papel tão central no pensamento de Kracauer ?
Cremos que tal se deve a uma alteração radical da compreensão da filosofia da
história, fruto de um longo diálogo com Walter Benjamin e
Theodor Adorno, que redunda na substituição de um modelo histórico estático
como queda ou declínio por uma concepção da história como processo de
desencanto e de antagonismo entre as forças da natureza e as da razão. Por
outro lado, o estudo sobre as novelas detectivescas revela uma combinação dos
seus interesses filosóficos iniciais com a investigação da cultura de massas;
ostensivamente um estudo sobre a acção detectivesca, esse ensaio conhece uma
dívida para com a obra de Kierkegaard, cujo modelo de esferas interrelacionadas (estética, ética e religiosa) foi apropriado
por Kracauer. Esta importação de Kierkegaard
só aparentemente é arcaica; tal como Hannah Arendt comentou a Anson
Rabinbach (“In The Shadow of
Catastrophe: German Intelectuals Between Apocalypse And Enlightment”), depois
da I Guerra Kierkegaard era o filósofo do dia. Que razão dita a profunda influência de um pensador tão
intensamente cristão em intelectuais de confissões religiosas diferentes é uma
questão que não pode ser respondida aqui, bastando que fiquemos com a ideia de
que o pensamento de Kierkegaard
configurou a noção de vocação crítica desenvolvida por Kracauer e que
esse pensamento oferece um enquadramento trágico para a agenda
político-cultural de Kracauer durante o período de Weimar.
No que ao cinema diz respeito,
Kracauer é sobretudo conhecido pela obra “From Caligari To Hitler : A
Psychological History Of The German Cinema” de 1947, na qual apresentava uma história do
cinema alemão dos anos entre as guerras mundiais, argumentando que os seus
temas reflectiam as condições psicológicas e sociais que conduziram ao nazismo,
e também pelo livro “Theory of Film: The Redemption of Physical Reality” (1960),
no qual assume a noção chave que subjaz à sua conceptualização de estética
cinematográfica “material”: o cinema é
essencialmente uma extensão da fotografia, partilhando com esse médium uma
marcante afinidade com o mundo físico e visível que nos rodeia. O cinema
torna-se ele próprio quando regista e revela a realidade física. Apesar da importância capital destas duas
obras, acreditamos que elas estão longe de sintetizar todo o pensamento
cinematográfico de Kracauer, sendo justamente nos ensaios dos anos 20 aqui
coligidos que podemos encontrar as perspectivas, antevisões e visões
prospectivas que hão-de configurar as teorizações posteriores, conferindo-lhes
um sentido e uma lógica interna que, de certo modo, as tornou um cânone.
Assim, a estética do cinema construída
por três dos mais importantes pensadores
do século XX – Theodor Adorno, Walter Benjamin e Sigfried Kracauer, abre a
possibilidade de pensar a experiência da modernidade sob a perspectiva de uma
crítica filosófica que opera a partir da
arte e dos meios de comunicação de massas.
Habitualmente, a maioria dos trabalhos no domínio da teoria crítica sobre
a temática da arte, da tecnologia e da cultura de massas reduzem o campo
problemático a uma caracterização da indústria cultural de Adorno e Max
Horkheimer como pessimista e elitista oposta ao optimismo tecnológico que
Benjamin desenvolveu no ensaio “A Obra
de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Mecânica”. É neste contexto que se revela a importância
fulcral da obra de Siegfried Kracauer , autor central para fundar e discutir ao mesmo tempo uma teoria do cinema.
Os escritos coligidos neste volume, cujo
significativo subtítulo “Weimar Essays” remete imediatamente para uma época
histórica e as suas determinações, para
além de críticas de cinema, são constituídos por recensões de novelas
detectivescas e literatura de divulgação, textos sobre o circo, a cidade, o
desporto, o teatro, entre outros) e manifestam exuberantemente a intenção de
desenvolver uma estética cinematográfica a partir de uma perspectiva da
modernidade. Ao longo da obra torna-se evidente uma outra translação muito
significativa do pensamento de Kracauer: a compreensão pessimista da
modernidade, que compartilha com Max Weber e Georg Simmel, entre outros, que afirma a privação humana de um horizonte
de experiência que permitiria aos homens conferir sentido aos processos
relacionados com a técnica, a ciência e a economia capitalista, evolui para uma
curiosidade astuta em relação aos fenómenos da vida moderna, em particular, a
cultura de massas. O objectivo passa a
ser, não o fundamento de uma noção expandida de modernismo estético, mas
relacionar a fotografia e o cinema com aquilo que, para o autor, define o
século XX : a produção, o consumo e a emergente sociedade de massas. Se
quisermos levar mais longe e aprofundar o contraste com o pensamento de Walter
Benjamin, diremos que, onde Benjamin via o esvaziamento do tradicional sentido
aurático como algo de positivo que poderia libertar as
massas de qualquer tendência de queda no totalitarismo (nazi ou fascista),
Kracauer acreditava que a modernidade representava “um esvaziamento de sentido,
uma bifurcação do ser e da verdade” (Thomas Levin “Introduction”). Portanto, ao
contrário de Benjamin, Kracauer descreve o modo como a ascensão das massas
mediatizadas é acompanhada pelo esvaziamento de sentido – um esvaziamento
impulsionado pelos valores capitalistas que competem com e minam as formas
não-fetichizadas de conferir poder às massas.
Arnaldo Mesquita
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