sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

AINDA NÃO...

 


 


O livro escolhe vários cantos da casa para se esconder nomeando duas ou três vozes que brincam comigo como em criança.

 

Ainda não……

 

E eu parto determinado a encontrar as suas palavras, o seu discurso, aquilo que têm para me contar. Depois junto tudo numa mesa de montagem improvisada que vai colando capítulos, aproveitando frases, seleccionando ideias para a frente e para trás até ficar o filme completo.

 

Ainda não…..

 

E por vezes paro a busca, fico a olhar para o Nada á minha frente, para o Nada que sou sem que um pensamento me visite. Um vazio estranho e prolongado que se senta ao meu lado e me obriga a ouvir o silêncio. Despojado de ideias, de direcção, despojado de vontade para continuar, as interrogações vão entrando á medida que aumenta a paralisia. Fico ali meio agitado meio desesperado até que o vazio volta a olhar para mim e me repete a instrução. Deixo voltar o silêncio que educadamente vai empurrando as interrogações uma a seguir à outra enquanto uma das vozes me indica que está pronta para começar o seu discurso.

 

Já pode…..

 

Então, como um miúdo que nunca deixei de ser volto entusiasmado e vou à procura. Neste momento escrevo sobre três mulheres,  mãe  e  duas filhas.

Insisto em escrever porque é a única forma de continuar vivo, a profilaxia mental que me afasta do vazio e me ocupa as horas. Insisto em escrever porque julgo ser a única coisa que sei fazer bem. Em todas as outras dimensões da minha existência oscilei entre a incompetência e o amadorismo. Por isso gosto de contar histórias inventadas ou tiradas da realidade, gosto de ouvir as vozes que decidem falar comigo e tomar nota do que dizem. Dessa forma vou conseguindo fugir da morte, do vazio e da falta de sentido,

 

Ainda não…

 

Dessa forma vou ganhando tempo e vou conseguindo falar com outros como doentes na sala de espera do consultório. Contando-lhes histórias, distraindo-os, vou deixando que me distraiam a mim atrasando-se assim a hora da injecção ou do tratamento doloroso que ninguém quer mesmo sem saber do que se trata.

 

Ainda não…

 

E a senhora da recepção  atrás de uns óculos e uma maquilhagem assustadores enquanto nos avalia e ao mesmo tempo deita o olho a uma lista de espera na secretária à sua frente.

 

Ainda não….

 

Duas irmãs e uma mãe cada uma perdida no seu universo pessoal que se amam e odeiam sem o conseguir dizer , três mulheres em três tempos diferentes que comunicam vagamente entre si. Escrevo aquilo que elas me quiserem contar, não vou inventar nada. Sigo pela casa fora a rebuscar os cantos e a guardá-los no saco até ter o embrulho de um romance. Depois será como um filho que atingiu a maioridade e segue o seu caminho

 

Ainda não…

 

Kurosawa não falava português mas também se lembrava de brincar às escondidas em criança. Por isso dizia "Madadayo" em vez de

 

Ainda não…

 

Por isso fez um filme com esse título entre uma série de obras primas. Longe de mim fazer comparações. Escrevo também porque percebi que há uma linguagem que todos falamos por mais distantes que possamos estar culturalmente. Todos brincámos ás escondidas em pequenos. E continuamos a brincar pelo resto da vida. Umas vezes descobrimos os outros, outras vezes deixamo-nos encontrar. Umas vezes ouvimos os outros, outras somos nós que temos alguma coisa para contar. Chama-se a isto a Linguagem Universal. A ferramenta que nos permite adivinhar os "segredos imortais que no fundo são iguais em todos nós". É essa ferramenta que tento usar quando ouço as vozes, quando busco os cantos de um romance, quando me torno num contador de histórias. Para que a espera possa ser um pouco mais lenta e menos dolorosa. A espera que terminará quando atingir o número razoável ou suficiente de histórias para contar aos outros. Para depois me poder virar para a senhora da recepção escondida atrás de uns óculos e uma maquilhagem assustadores…para que possa dizer convictamente…

 

 

Já pode……

 

Artur

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