quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

NA FORMA MAIS ARCAICA DE ESTAR

 

Sétimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte um.
Viver com as botas de cano (galochas) à porta, um casaco para intempéries, chão para ir pintando à medida que salta a tinta, sofás de palhinha que no verão saltam para o balcão, eletricidade, água corrente e quente por trinta litros, um colchão ortopédico com tamanho para dois em que um fica mais à vontade e dois bem aconchegados, um forno de lenha que ainda não cozeu este pão de massa por levedar, duas tábuas a fazer de mesa, cinco cadeiras compradas em Santo Espírito sendo a quinta a de escrever e criar. Um pequeno tear para tricotar de onde saiu um gorro para cabeça pequena e outro para cabeça tonta, um berbequim já com algumas rotações e vários serrotes com muitos dentes, uma plaina trazida duma feira de velharias feita de madeira preciosa já aplainada por sua avó, pincéis, tintas, papéis, madeiras, bambus, galhos, rendas, fios e lãs, arames e despojos encontrados sob a terra molhada- um ferro a carvão, uma panela de ferro de quatro pés já só com três, uma chaleira de ferro, todos enferrujados. É verdade que chove sem parar. Até a casa tem três pingas estrategicamente instaladas. E é verdade que fui eu quem quis vir para aqui. Até eu, quando quero, acerto no brinde sem passar pela fava. É verdade que nenhuma das pingas encheu o alguidar e que houve uma quarta que me atingiu a cabeça por duas vezes. Até há uma janela que nem se abre porque se abrir parte-se em dez. É verdade que a terra está mais molhada do que devia e por isso quando desço ao pomar desço de bordão, para não tombar cada vez que o cão de tão feliz me dá um encontrão. Até há guarda chuvas naturais debaixo das copas dos bambuzais. E é verdade que entre eles não passo porque tenho de desenhar um caminho, da minha cabeça para o terreno, com as lâminas que tenho à espera que tudo amaine. Até as árvores já me passaram do umbigo para onde já não olho há algum tempo. É maturidade isso de deixar de olhar para o umbigo, jamais desmazelo. Meu umbigo é lindo e eu sei, por isso vivo à volta dele, porém caminho em diante. O mais importante para mim é moldar a luz que me define,a música que me compõe. Viver a vida simples sem o sufoco da vida complicada é como um tesouro a que todos os dias acrescento uma pérola. Ávida dela, escolhi-a na forma mais arcaica de estar, com devaneios de modernidade que me mantêm informada do que se passa por aí. O recolher obrigatório tornou-se uma abstracção. A invasão daquela casa branca, contada por vocês, leio-a sem o pânico de quem ouviu a Guerra dos Mundos em 1938. Afinal não estou assim tão isolada, tão fora de tudo, e considero-me uma pessoa bastante informada. Sei sobretudo que este vento forte, se não houvesse tantas árvores à minha volta, levaria o meu telhado pelos ares. E que é assim com tudo onde uns protegem os outros. Sei que sou limitada e que não há ninguém que não seja e que isso é só por termos um prazo de validade que ignoramos para nosso bem. Se hoje o dia acabasse definitivamente para nós, iríamos felizes e com tudo feito? Teríamos o troco certo para a barca de Caronte? Um òbolo ou um dânaca, alguma moeda atualizada para estes ainda mais loucos anos vinte? Não me parece. É requisito do ser humano ser insatisfeito e é isso que nos afasta da nossa humanidade. Não são as máscaras que nos impõem que nos afastam da nossa humanidade, mas sim a cegueira que nos impusemos sem perceber que o fazíamos. Estarmos cientes de que antes do umbigo havia um cordão umbilical é voltarmos a reconectar com o melhor que a nossa natureza tem. E voltarmos a abraçar fisicamente, com força, e espiritualmente com a potencia do universo que nos comanda.
Enquanto o vento uivava apercebi-me da chuva que tinha parado. Percebi que tinha rondado para norte, pus as botas de cano, o colete mais quente, o casaco impermeável, o gorro da neve, os petiscos no bolso, o clicker na mão, a trela no cão. Tenho a lanterna mais potente das redondezas e chamo-lhe o meu farol. O céu estava estrelado como há muito tempo não estava. Andamos entre rajadas e ensinei-lhe onde se proteger. Rondamos as árvores caídas e saltamos valas de folhas, fechamos os portões que se tinham aberto, tiramos a água dos vasos dos pés de café e ainda estendemos toalhas molhadas sob a luz do farol. Ele assustou-se com as nossas sombras na copa das criptomerias e eu pasmei naquela nova tela de cinema. Tenho tanto por fazer e tanto já feito. Caminho sob o sorriso etéreo dos meus pais, sozinha, acompanhada, completa. Desafiem-se nas coisas mais simples e sintam a plenitude a chegar. É esta a diferença entre o contentamento e a felicidade. Sou pouco feliz mas muito contente. Até há notícias que não me chegam além do canto dos pássaros e há roupa que seca debaixo da chuva torrencial. É por isso que estou aqui.
 
 
Elsa Bettencourt

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