A Paciência saiu de manhã sem grande ruído, pouco depois de me ter levantado. Não me conseguia aturar mais, queria outra coisa da vida, ia seguir um rumo novo e aquelas coisas que se costumam dizer quando deixamos alguém para trás. Fiquei ali preso àquela cena matinal, de roupão vestido e caneca de café esquecida na mão em forma de esboço de um adeus que não cheguei a dizer. Acompanhei-lhe o movimento com o saco na mão a entrar para o carro. Acho que todos temos o direito de chegar como de partir já que nenhum de nós consegue durar para sempre e fui-me enchendo de razões, lugares comuns e frases feitas para conseguir acordar e voltar à vida. Sentado na mesa da cozinha vejo a porta que se vai descascando de tinta e artroses de madeira à medida que perde a forma. Mal se consegue fechar a não ser com um empurrão firme. Envelhece em silêncio, como o café que arrefece, como a casa, como eu. Tudo desliza devagarinho para o grande nada de onde veio. Ainda fui sair duas ou três vezes com a Depressão mas rapidamente nos apercebemos que não ia resultar. Tudo correu mal. Às vezes falo com a minha tia Esperança mas é difícil porque está cada vez mais surda. Obriga-me a repetir as coisas, a falar alto e isso cansa-me. Lembro-me das mãos delas a fugir para dentro como um líquido que se vai escoando, os ossos dos dedos a espreitar por baixo da pele, a falta de força.
A verdade é que não me apetece falar com ninguém. Esgotei as palavras, as razões e os sentidos, e a única coisa que quero é ficar em silêncio dentro desta casa sem fazer nada, sem pensar, enquanto as minhas mãos se vão escoando num movimento de maré vaza deixando mais salientes os ossos dos dedos, evidenciando um fim de um ciclo. Já se gastaram todas as conversas, já se deu várias vezes a volta às coisas e pouco ou nada mudou. Talvez a tecnologia…vagamente a tecnologia, o que é manifestamente pouco para o esforço de um ciclo inteiro. Por isso é em silêncio que gosto de estar, nessa casa envelhecida pelo tempo onde a luz entra de manhã e se retira ao fim da tarde sem fazer perguntas. Nesse lugar onde os móveis, os retratos em cima da mesa da sala, os estalos do soalho…onde nada existe para além de existir simplesmente. Não há ordens, obrigações, urgências. Há estes breves diálogos com os cantos, estes breves pensamentos que saem e entram como os pássaros habituados ao telhado da garagem. Tudo vai existindo simplesmente até deixar de existir e não há nenhum problema com isso. A porta da cozinha vai deixando de conseguir fechar, vai encolhendo, a casa vai encolhendo e eu lá dentro. Ao fim de algum tempo em silêncio fico na dúvida: serei eu algum ser que existe ou simplesmente uma coisa que cumpre a sua função, que é apenas respirada? Farta de me aturar a Paciência partiu. Não a posso censurar. Qualquer dia a tia Esperança morre e vou ficar ainda mais despido, vou prolongar os meus silêncios e fico por aqui com os horários dos pássaros, com a porta da cozinha, com a sala que anoitece comigo lá dentro. E embora tudo isto pareça estupidamente vazio de sentido, algo doloroso, ou mesmo triste não há razão nenhuma para desesperar. Afinal a coisa que respira ou que é respirada fez o caminho todo, parou em várias estações, tropeçou, levantou-se, riu e chorou e voltou à estrada. Um dia destes a outra há-de aparecer. Não me abordará directamente, não me virá bater à porta da cozinha até porque ela já mal consegue fechar. Ficará dentro do carro ao fundo da rua sem pressa até eu estar pronto. Atravessará a rua para ir até à esplanada beber um café enquanto eu faço a mala. Depois, quando estiver pronto saio de casa, deixo aberta a porta da cozinha e entro no carro com ela. Pelo caminho há-de me estender dois ou três manuais de instruções para melhor me ambientar na minha nova dimensão. É capaz de me dizer que era tudo um enorme barrete que me enfiaram enquanto avaliavam se estava com atenção. Uma ilusão, uma piada de muito mau gosto a ver se tinha sentido de humor. Nessa altura vou tentar olhar para trás e rever o telhado da garagem onde entram e saem os pássaros, a porta da cozinha, a sala que anoitece em silêncio, a casa que encolhe na distância e no tempo. Hei-de os voltar a ver a todos mais uma vez e quando acenar a dizer adeus vão perceber que os amei profundamente.
Artur
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