As viagens para as Azenhas do Mar à Sexta-feira à tarde eram autênticos números de circo, animados e repletos de acontecimentos. Talvez por se ver toda reunida sem ser à mesa, a família manifestava o seu desconforto de proximidade naquele exíguo espaço do “carocha” 1300 que o meu pai andava eternamente a pagar todos os meses em suaves prestações. Começava logo por ele e por um ridículo boné de pala aos quadrados (tipo Lenine) que ele usava apenas para aquela ocasião e umas luvas cortadas a meio dos dedos de piloto de automóveis. Cigarrilha ao canto da boca e estava completo o quadro. A mãe, em permanente pose muito distante observava distraída a paisagem, fazendo aqui e ali a sua breve interrupção para mandar o marido andar mais devagar “olha as crianças” “ não vês que vai ali o camião”, etc. Cá atrás, eu e os meus irmãos já há muito que tínhamos iniciado a nossa disputa universal pela posse de território, uma luta inglória, sempre longe de solução definitiva. Normalmente a Matilde sentava-se ao meio, entre mim e o Rodrigo, “instruções de cima”. Com o tempo e os nossos corpos mais crescidos o mais natural era nunca chegarmos às Azenhas na mesma posição em que partíamos. O carro virava para a esquerda, vai de esmagar o desgraçado sentado à esquerda, o carro virava para a direita, toca a esmagar o gajo do lado direito. O carro mantinha-se em linha recta, esmagava-se o que se sentasse ao meio. Tentando não nos ouvir, o pai ligava o rádio aos berros e aproveitava para trocar ideias com a mãe sobre o momento político actual. Muito mais optimista que ela, encontrava sempre uma ponta de esperança na mais negra nuvem de previsão de futuro. Os comunistas eram apenas uns galhofeiros habituados a folclore, mas com pouca capacidade de chegar ao governo. O país tinha ainda muito que andar até aprender a viver em Democracia. Provavelmente só na geração dos netos é que isso poderia acontecer. A mãe culpava os comunistas por todos os males do mundo, inclusive as doenças do Papa. Estava sempre com receio desde os tempos convulsivos que se seguiram à revolução. Achava que havia demasiada liberdade e demasiada bandalheira à solta. Os jovens era só droga e isto e aquilo. A igreja nunca tinha sido tão maltratada. O pai respondia-lhe com a tranquilidade de três eleições decorridas sem problemas de maior, de como era mais que urgente a mudança, que o tempo tudo cura, etc. Depois das notícias a música. Se era música pseudo-popular o Rodrigo esganiçava uma voz de matrona minhota e enchia o carro com guinchos ensurdecedores. A Matilde levantava os braços e fingia que estalava castanholas. Era a risota geral. Se saía do rádio um “rock” a bagunça cá atrás era garantida. Cabeças que se tentavam desprender dos corpos, guitarras imaginárias a saltarem nos braços, gritaria. Como a movimentação fosse demasiado viril, os choques eram inevitáveis. Seguia-se mais uma sessão de chapada e gritaria. Antes de chegar a Sintra o “carocha” 1300 encostava para uma paragem “técnica” à beira da estrada. Nesse momento o condutor fechava as duas mãos e rodava os braços na nossa direcção em curvaturas inevitavelmente agressivas que acabavam por chocar em tudo o que mexia. Uma decisão terrivelmente injusta se tivermos em conta que o maior culpado podia não ser o mais “privilegiado” da distribuição do castigo. Em dias normais havia sossego e tranquilidade até ao fim da viagem. Em dias mais agitados, geralmente na Primavera, o meu pai sentia necessidade de uma segunda paragem técnica perto de Colares.
Finalmente chegávamos. A correria para a escolha do beliche de cima, o pequeno tornado que tudo virava à passagem, janelas escancaradas, os brinquedos esquecidos desde a última vez, os concursos de traques antes de ir dormir. Por volta dos nossos 15 anos um novo elemento veio compor o efectivo da família. Chamava-se Ajax e era pastor alemão. Foi mais ou menos quando tivemos as nossas primeiras motas para ir até à Praia das Maçãs ou à Praia Grande “armar aos cucos” de capacete integral AGV debaixo do braço. O Ajax seguia-me para todo o lado, adoptando-me como referencial de dono. Afinal de contas era sempre eu em Lisboa que o levava à rua. Os fins-de-semana nas Azenhas eram aventuras graduais cuja magia evoluía conforme a idade. Ainda hoje é…pelo menos para mim. Mesmo depois da estúpida morte da Matilde…
ARTUR
3 comentários:
Passei só para reforçar o meu beijinho apertado ao Artur e deliciar-me com os escritos!T
Em grande, como sempre. É excerto de um novo livro?
T. thanks for yhe visit whoever you are...
CL: É um que ando a fazer aos poucos. Julgao que já te tinha falado nele. Pelo menos no título.1 abraço.
ARTUR
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