segunda-feira, 21 de julho de 2008

NO EXPRESSO DA SEMANA PASSADA


Crónica de um achamento
Um texto inédito de Eça de Queirós
"Colombo e o seu Centenário" é um texto inédito, que aqui revelamos, que Eça de Queirós escreveu sob o psedónimo de João Gomes.

Irene Fialho
0:00 | Sábado, 12 de Jul de 2008



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D.R.
“João Gomes” foi um pseudónimo de Eça de Queirós no início dos anos 1890
No Eça de Queirós - In Memoriam, de 1922, a reprodução dum recorte de jornal, com riscados e acrescentos manuscritos, tem a legenda "A correspondência de Fradique Mendes - Uma prova emendada por Eça de Queirós".

Lido, o texto não corresponde inteiramente a nenhuma das prosas sobre Fradique ou por ele "escritas". Porém, o recorte de jornal é semelhante a outros usados pelo autor para a construção do livro, saído em 1900, e alguns fragmentos do texto encaixam-se numa carta de Fradique, "A Mr. Bertrand B. - Engenheiro na Palestina", comentando a inauguração do caminho-de-ferro de Jafa a Jerusalém, em Setembro de 1892. Pensava-se ser esta a única peça d' A correspondência de Fradique Mendes que não tinha tido origem numa crónica jornalística, mas era provável que o recorte pertencesse a uma coluna da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, onde Eça publicou durante dezassete anos, assiduamente em 1892.

Elza Miné, estudiosa da Gazeta e seus colaboradores literários portugueses, generosamente enviou do Brasil o microfilme do periódico fluminense daquele ano. Lá estava, sob a rubrica, tão queirosiana, "Notas Contemporâneas"", o título "O caminho-de-ferro de Jerusalém", por "João Gomes", pseudónimo de Eça de Queirós no início dos anos 1890.

A surpresa maior foi o encontro seguinte, no mesmo microfilme, de outra das "Notas Contemporâneas": nesse ano de 1892, como aconteceu um século mais tarde, o mundo inteiro celebrava o achamento da América por Cristóvão Colombo e Eça, escrevendo "Colombo e o seu centenário" para um jornal do Brasil, legou-nos a sua visão crítica da celebração da descoberta do Novo Mundo, interrogando os motivos que levavam os povos ibéricos a celebrar um acontecimento cujas consequências, afinal, lhes tinham sido pouco proveitosas.

Esta crónica, inteiramente desconhecida desde 1892, porque não foi reaproveitada pelo autor para os seus livros nem foi compilada após a sua morte em nenhuma das colectâneas então editadas, publica-se agora: também ela foi assinada por "João Gomes", nome que a encobriu durante cento e dezasseis anos.


Notas contemporâneas
Colombo e o seu centenário
O texto inédito de Eça de Queirós.
João Gomes
23:00 | Sexta-feira, 11 de Jul de 2008

Os centenários têm a excelente utilidade de avivar e recolorir largos pedaços de Historia, que já se apagavam, se sumiam, conservando apenas aqui, além, algum contorno incerto e turvo...
Há anos, em Lisboa, o centenário do "Príncipe dos Poetas" levou muito homem culto (e mesmo de Letras) a comprar enfim os Lusíadas: e os divinos Sonetos, as Elegias choradas com tanta paixão e arte "sob los rios de Babilónia", foram finalmente lidas (ou folheadas) porque, no Rocio e no alto da Graça, havia luminárias em honra de Luís de Camões. Não foi tanto porém a Obra como a Vida do poeta que teve assim o seu feliz momento de ressurreição.
E como ela andou tão espalhada e repartida pelo mundo, através dela se rememorou - desde a Lisboa do século XVI, e da corte letrada da infanta D. Maria, e do soalheiro turbulento de Alhos Vedros até aos combates da Índia e às façanhas dos Mares do Oriente - toda uma soberba página da vida heróica da Renascença Portuguesa. Esse centenário foi assim, entre préstitos e charangas, uma preciosa vulgarização histórica. Portugal necessita de vez em vez absorver um largo trago da sua História - como os velhos de esvaída força necessitam beber goles de vinho generoso e forte, de Borgonha ou do Porto.
A mesma útil lição do Passado nos está sendo dada pelo centenário de Cristóvão Colombo de quem, por entre este tumulto de ideias e factos que nos solicitam andávamos tão esquecidos (nós os ignorantes), que apenas sabíamos que ele vagamente descobrira a América, e vagamente morrera em miséria. Todo o resto era uma mancha escura. Dela agora, graças ao centenário, vai surgindo (para nós os ignorantes), em um relevo certo e cada dia mais vigoroso, a imagem do herói e do seu tempo. Já começamos a saber toleravelmente o nosso Colombo - e como numa aventurosa galé arribou à Madeira onde herdou os papéis e as cartas dum velho mareante português; e como muito tempo errou por Lisboa, oferecendo um Mundo novo, desatendido do "Rei Perfeito", desdenhado pelos nossos cosmógrafos que só tinham olhos para Oeste; e como por um triste inverno atravessou a Espanha quase mendigando com o seu filhito Diego; e como bateu à porta do Mosteiro de Santa Maria da Rábida para nele encontrar, além do pão, aquele inteligente patronato de padres e fidalgos que, através de lutas, de dedicados esforços, o puseram enfim a bordo da Santa Maria, com uma bolsa de 6.000 maravedis, para ele ir buscar esse mundo de que tanto se riam os grandes doutores de Salamanca. E não é só Colombo que assim renasce, outra vez vivo e real, mas todos esses homens fortes que o amaram, com ele colaboraram no grande achado, e, de todo esquecidos, vêm hoje receber a sua parte de glorificação - o bom prior do mosteiro da Rábida, Juan Pérez de Marchena, um santo que era um cosmógrafo, Pedro González de Mendoza, grão-chanceler de Castela, que toda uma tarde defendeu o seu roteiro perante os reis católicos, no acampamento de Baeza; o velho duque de Medina-Coeli que o ajudou a equipar a Niña e a Pinta; e outros ainda até essa boa alma do infante D. Juan, que cria nele, como num predestinado e valente resgatador de almas.
Também estes devem partilhar das coroas do centenário - quando não seja senão para animar, pelo exemplo da sua fé generosa (tão em contraste com a resistência obtusa dos sábios de Salamanca, e de todos corpos constituídos da Espanha) aqueles a quem ainda hoje um grande homem possa levar a confidência de uma grande ideia.
Grande homem decerto o foi, este Colombo! Partira de Itália um simples piloto, e o ar de Espanha fez dele um herói. Melhor! Fez dele um Místico, pondo-lhe na alma essa Fé que vale mais que o Génio, porque só ela comunica ao homem a força que pertence a Deus. É, com efeito, uma ideia de misticismo que impele Colombo para os mares. O que ele pretende não é completar o mapa do mundo, em bem da ciência, mas achar essa misteriosa Índia onde há o ouro (o ouro excelentíssimo, como ele dizia) para com ele, em bem da Fé, equipar dez mil cavalos, cem mil infantes, e ir conquistar Jerusalém!
O que Colombo procurava através das névoas atlânticas, era na realidade o Santo Sepulcro.
E de que essa Índia seria descoberta, e colhido todo esse ouro, seguro estava ele - porque assim o predissera o profeta Isaías!
Parte enfim de Palos. Decerto levava roteiros e mapas. Mas que lhe importavam? O mapa único com que estudava, na incerteza dos altos mares, era o que lhe desdobravam de noite, diante da proa da Santa Maria, dois grandes anjos, e onde ele via brilhar num contorno de lua, a Índia e todo o seu ouro! Por isso quando os ventos sopravam com desusado furor, ele, indignado, mandava-os emudecer, em nome de Deus. E se as altas vagas batiam devoradoramente essas pobres caravelas, mal pregadas, frágeis como os nossos caíques de cabotagem, Colombo, indiferente à manobra, debruçado da amurada, à luz mortiça dum farol, lia às vagas, para as serenar, o Evangelho de S. João. Assim era no século XV um almirante mayor del mar oceano. E assim chegou pilotado pelo Espírito Santo. Além está a terra... A Pinta dá naquelas solidões, com uma velha colubrina o primeiro tiro, anúncio primeiro das mortandades que hão-de vir. Mas, nesse instante só se pensava em cravar depressa nel mundo novo, uma cruz, signo de infinita paz, do divino ensino trazido aos infiéis! Finalmente Colombo desembarca. Gajeiros e pilotos choram de pura alegria, aclamam o Almirante. Só Colombo está sereno. Porquê? Ele o diz - "porque nesta empresa das Índias não me aproveitou razão, nem matemática, nem mapas mundi; simplesmente se cumpriu o que disse Isaías!"
Há certamente razões para celebrar este homem - mas não sei se as há realmente para celebrar a sua descoberta. Dela datam a decadência e todas as ulteriores misérias de Portugal e de Espanha.
Até a essa fatal partida de Palos, nós éramos duas nações ditosas, compostas sumariamente de homens de espada e de homens de enxada. O homem de espada ia adiante rechaçando o Mouro, e o outro seguia atrás, com a sua enxada, granjeando a terra (que de resto o mouro já regara e preparara bem destramente!) Assim íamos edificando a prosperidade da pátria sobre a base de trabalho. E, dentro de nossa casa, éramos ricos. Todas as grossas e lentas caravelas da Europa vinham a Lisboa buscar trigo: e na Andaluzia, terra da amoreira e gado, havia dezasseis mil teares tecendo alegremente a seda e a lã. Era o tempo dos Bucolistas. E o mais ambicioso poeta, exclamava:
A mí, una pobrecilta
mesa, de amable paz bien abastada,
me baste!...

De repente, porém, uns atrás dos outros, nau após nau, Colombo descobre as Antilhas, Vasco da Gama acha o caminho da Índia, Ponce de León avista a Flórida, Balboa atravessa o Panamá, Álvares Cabral aporta ao Brasil!

E todos eles voltam perturbados, trazendo a notícia e já a posse de terras cheias de especiarias, de marfim, de ouro e de diamantes! Foi como se a estes dois homens, honestamente curvados sobre a terra, o Espanhol e o Português, tivesse saído o prémio grande da lotaria.

Houve uma brusca revolução nas suas ideias, nos seus hábitos, na sua moral. Todos, tumultuosamente, abandonam casais e teares. Para quê trabalhar? Para juntar ao fim de uma vida suada e dura, dois dobrões no fundo de uma arca? Mas só nas Molucas há um ilhéu, cujo solo é todo de ouro, de ouro bruto! Mas as Índias estão atulhadas de pimenta e cravo, e uma mão cheia de especiarias vale uma légua de centeio e milho! Mas o Samari, que é mouro, e portanto presa justa, tem no seu palácio cestas cheias de rubis e diamantes! Basta embarcar, trazer e mercadejar! E tudo embarca. Campos e teares ficam desertos. Dos sete milhões de carneiros que tinha a Andaluzia, escassamente lhe restam alguns milhares, comendo cardo pelas fráguas.

Lisboa já não tem trigo para vender - já não há pão próprio em casa. Há pimenta - com que se compra o pão alheio. Espanha e Portugal não são já duas nações, que pelo trabalho se desenvolvem normalmente, mas duas metrópoles ociosas, de braços cruzados, diante dos seus contadores, explorando ao longe, por meio de escravos, jazigos de ouro e feitorias de tráfico. E, opulentas, gozam a vida.
Mas que sucede? Que pouco a pouco se esgotam os jazigos de ouro. Que outras raças vindas do Norte, dextras nos mares, mais tenazes e mais hábeis, com aptidões de mercancia imensamente superiores se apoderam das suas feitorias, das suas naus. E aqui fica o desventuroso peninsular sem feitoria e sem ouro! Nada lhe resta. Os campos? Incultos. Os teares? Partidos. Os gados? Comidos nos tempos dos festins, com a pimenta e o cravo do Oriente. E, pior que tudo, perdido o hábito forte e salutar do trabalho! Que fará? Quando ele era rico, e para que Deus lhe perdoasse os meios sangrentos por que enriquecia, fundara e dotara muitos mosteiros, agora poderosos. É esse o seu recurso extremo. E o peninsular, lançando aos ombros a capa do Lazarilho, vai esmolar o caldo de todos os dias à portaria dos conventos.
Tem todavia ainda outro recurso. As descobertas, essas Américas e essas Índias, com o seu comércio, tinham feito desenvolver entre as raças do norte que com elas aproveitaram, uma instituição nova e estranha - o Banco. O Banco era ainda mais rico que o mosteiro - de facto ia substituindo o mosteiro. De sorte que o Peninsular (apenas adquiriu esta certeza) retomou a capa de Lazarilho e partiu a implorar a vida de cada ano aos Bancos de Inglaterra e França... E assim vive desde que os seus grandes pilotos o presentearam com um mundo. Não vejo por isso que haja uma superior razão em celebrar estas descobertas...
Nós, os Portugueses, fomos talvez mais justos, atendendo apenas, na descoberta, ao poema que ela ocasionou - esquecendo prudentemente a passagem do Cabo, e glorificando só os Lusíadas.
Enquanto à América, só ela realmente se orgulha em ter sido descoberta (vivia tão feliz, quando ignorada!) não me parece que deva especialmente celebrar Cristóvão Colombo como o homem sine qua non, a quem ela deve a sua vida de civilizada.
O genovês não lhe foi essencial, para ela emergir do segredo do Mar tenebroso!
"A América lá estava", como dizia o bom Narváez.
Ora, sempre que no século XVI se tratava de ir buscar um Mundo, quando não partia já um galeão espanhol, partia logo um galeão português. Em Cádis ou em Lisboa, havia constantemente um mareante, pronto a ir com alguns mapas incertos, e o coração posto em Deus, fundar, através dos mares, um reino novo. E se em 1492 Colombo não tivesse descoberto a América pelo norte, lá estava já Pedro Álvares Cabral que, em 1500, a descobriria pelo sul. Eram para esse continente mais oito anos de sossego e obscuridade ditosa!

1 comentário:

Anónimo disse...
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