sábado, 15 de agosto de 2020

FILOSOFIA NO ESTÁDIO

No discurso religioso somos culpados assim que nascemos por via de outros que fizeram qualquer coisa; no discurso tributário somos culpados assim que conseguimos algum rendimento do nosso trabalho; no discurso desportivo somos culpados e castigados a torto e a direito porque pagamos quotas e bilhetes e ainda nos arriscamos a ver a nossa equipa perder. Como na religião, em Kafka a culpa não é uma questão voluntária de escolha do indivíduo, basta este existir para ser culpado ("O Processo"). A vida é uma sucessão de encontros e desencontros com o castigo e a punição sem se chegar a perceber bem porquê. Em Dostoyevsky o homem é culpado voluntariamente se assim o decidir na sua consciência, marcando-se desta forma a responsabilidade de cada um ao fazer o seu destino.

Mas nada como o mundo da bola para nos iluminar o esclarecimento e ilustrar o labirinto do comportamento humano. Mesmo não esclarecendo nada não deixa de dizer muito acerca dos paradoxos da existência. É num estádio de futebol que muitas vezes se escondem as mais inesperadas surpresas acerca de quem somos, do que somos, enfim, aprende-se muito quando estamos dentro de uma multidão.

Há muitos anos, era eu ainda um adolescente em fim de carreira quando fui até ao estádio da Luz assistir a um jogo entre duas selecções, Portugal e Suécia. Contrariamente ao que era habitual fui parar lá abaixo às primeiras filas da bancada do peão, uma área onde se consegue ver o jogo quase ao mesmo nível dos jogadores em campo. Agitação habitual após o tocar dos hinos nacionais, apito para início do jogo e…um fotojornalista dentro do perímetro do campo resolve sentar-se numa das caixas de som do estádio e apontar a câmara para obter o melhor ângulo das jogadas. Ora acontece que o jornalista, mesmo sentado bloqueava uma parte da visão de jogo da nossa bancada. As bocas começaram a voar, primeiro num tom civilizado ("Sai da frente…cabeçudo…olha aí que a gente não vê…) até que se percebeu que o jornalista não nos ouvia. Mudou-se a intensidade e o tom ("Ó boi, baixa a corneta…ó filha da p…ó urso do c…sai da frente que a malta quer ver o jogo…"). Ás tantas o jornalista percebe que estavam a falar com ele e olhou para nós. A gritaria aumentava. O jornalista não teve melhor ideia do que nos mostrar o dedo do meio. Nessa altura já ninguém queria saber do jogo. Era o holocausto, a terceira guerra mundial, o ataque final. Começavam as ameaças de levar uma tareia, de ser chacinado já ali, um ou dois   abanavam a cerca de arame e tentavam saltar para o lado de dentro. Entretanto chegou um polícia atraído pelo barulho. Alguém se lembrou de falar com o polícia.

- Ó chô guarda, diga aí a esse gajo que saia da frente que a malta não consegue ver o jogo. - outros mais exaltados pediam-lhe que o prendesse, era um ordinário que tinha estado a gozar com o povo da bancada.

  O policia foi até ao jornalista e trocou umas breves palavras e gestos com ele. Quando se dirigia outra vez à assistência o jornalista sentou-se no chão, facto que motivou uma salva de palmas da parte daquele pequeno grupo da bancada. Foi então que o polícia se dirigiu a nós em tom pedagógico.

   - O homem é um jornalista sueco. Por isso não percebia nada do que vocês estavam a dizer. Se calhar pensou que estavam a gozar com ele. Mas pronto, agora ficou tudo resolvido.

O holocausto foi adiado, as bombas nucleares recolhidas e o linchamento cancelado. Os comentários no entanto continuavam, dada a força da excitação não se conseguir apagar de um momento para o outro. "O homem é sueco como é que haveria de perceber o que a gente estava a dizer" "Bem se podia estar aqui a gritar o resto da noite que não se conseguia chegar a lado nenhum" "O rapaz afinal está ali a fazer o seu trabalho, nem percebeu que nos estava a tapar a vista", etc,etc,etc.

Meia hora depois, já todos de volta ao foco no jogo, houve alguém que decidiu encerrar o episódio com algum brilhantismo. Esperou-se que o jornalista olhasse de novo para a bancada e, em jeito de assinatura do fim das hostilidades, alguém gritou:

 

"Ó cámone…tira aí uma fotografia à gente…

 

Artur

 

(Publicado na revista MORDAZ # 005 sob o tema "Culpa e Castigo" )

 

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