segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

UMA RÁDIO CHAMADA CHAN DÔ

 


A ideia original tinha sido do "El P" numa noite de imperiais e bifanas. Uma ideia que pegou de imediato ampliando ondas de entusiasmo e euforia. Porque é que não poderíamos fazer uma rádio pirata lá no bairro? Cada um para seu lado começou a contabilizar recursos, ideias, e em pouco tempo havia um projecto sólido e bem estruturado. Nos anos 80 as rádios piratas saltavam do chão como cogumelos e sobre esse assunto nós tínhamos uma palavra a dizer. O sotão/águas furtadas do "Pickles" passava de sala de  jogos de cartas e cervejas para estúdio rapidamente decorado com caixas de ovos e cortiça para isolar. Os equipamentos foram aparecendo à medida que o sistema de som de alguns dos nossos pais sofreram desvios. Havia amplificadores, microfone, auscultadores e, mais adiante uma mesa de mistura e uma antena adquiridas no comércio do Casal Ventoso a um preço adequado. No segundo ano de Engenharia  o Tonho acertava cabos e ligações com uma grade de minis ao lado e nunca falhava. E mais ou menos nos finais de Janeiro daquele ano (julgo que 84) a Rádio Chan Dô fazia a sua primeira emissão experimental com faixas do Sgt. Peppers dos Beatles e The Dark Side of The Moon dos Pink Floyd. Sem locução, apenas para afinar a qualidade do sinal. O Snoopy andava no carro com a namorada em tentativas de sintonia.

 

 Está fraco, ouve-se muito mal.

 

Enquanto em cima do telhado alguém dançava um tango acidentado de equilíbrio com a antena…

Na semana seguinte já se conseguia ouvir em toda a Av. Infante Santo mas perdia-se a partir do rio. Em Monsanto estava ótimo. E assim, duas vezes por semana entre as 22 e as 00 horas a Rádio Chan Dô estava no ar. Foi um tempo extraordinário de aventura e descoberta que entusiasmou a malta. Gostávamos de música e de festas animadas e ali podíamos colocar aquilo que era raro ouvir nas rádios oficiais. Eu e o Figueredo fazíamos as "Horas do Rock" onde misturávamos consagrados com os novos projectos do Rock português que na altura dava os primeiros passos. Os pais do "Pickles" eram extraordinariamente colaborantes com uma paciência ilimitada para nos aturar. A antena passou a ficar arrumada durante o dia na dispensa entre as compotas e os enlatados. O pai gostava de se aproximar de nós sorrateiro, pendurado num eterno cigarro, ora para avaliar a mão das cartas de alguém ora para perceber qual era a música que tocava naquela noite. A Carolina estudava piano e violino desde a escola primária e acedeu a dar-nos uma mãozinha nos clássicos para não dizerem que só passávamos berraria, tambores e electricidade. Nessa noite tocou-me a mim por a antena lá fora. A emissão arrancou sem apresentações e em breves instantes ficámos parados suspensos no que estávamos a ouvir. O "Quebra Nozes" de Tchaikovsky. Sentei-me no telhado perto da janela. Do lado de dentro, o Figueiredo contemplava o rio e as luzes da ponte lá ao fundo enquanto ia fumando o seu charro tranquilo. O pai do "Pickles" apareceu por trás dele e ficou também contagiado com a música. O Figueiredo estava tão longe que sem se virar estendeu a ganza para trás pensando que se tratava de algum de nós. O pai do "Pickles" continuou a fumar o seu SG e disse baixinho:

 

Então tu não sabes que eu não fumo sputnyks ?

 

E podia ter havido debate naquele instante, desenvolvimentos, desculpas, justificações, reprimendas. Mas não. Tudo continuou em silêncio ao sabor do clássico e não se falou mais nisso nem em sputnyks nem em nada.

Aos poucos o bairro começava a falar na Rádio Chan Dô. Havia todo o tipo de opiniões. A questão mais abordada era a da origem do emissor. Todos falavam na rádio menos nós. Para todos os efeitos era ilegal e se nos apanhassem era confisco do material e multa garantida. Ainda para mais houve um dia que entrámos inadvertidamente na frequência dos bombeiros o que deu logo razão de alarido acerca dos inconscientes que punham em causa a segurança da população e outras barbaridades afins. Normalmente eram duas horas seguidas de música sem interrupções nem conversa tirando aquela vez que o Rodrigo inventou uma entrevista ao Fernando Pessoa e fazia as duas vozes. Nela o poeta queixava-se do estacionamento em cima dos passeios e da sujidade das ruas. Um programa que pôs novamente o bairro à conversa sobre a rádio.

 

Fernando Pessoa? Então mas esse gajo não morreu há uma data de anos?

Morreu mas a casa dele era ali na Rua Coelho da Rocha…E quanto à limpeza das ruas o homem não deixa de ter razão…

 

E os programas continuaram. Com a Blitz seguíamos o calendário dos concertos, no Rock em Stock registávamos as novidades, com gravadores de bolso tentámos captar um ou outro espectáculo mais clandestino se bem a qualidade do som fez-nos desistir da ideia rapidamente. Para muitos foi o primeiro contacto com uma quantidade de estilos e  tipos de música. Os discos do pai do "El P" introduziram-nos ao Jazz do Miles Davis e do Chet Baker, com a informação da Carolina fomos aprendendo  a distinguir épocas e estilos dos clássicos. Com o Rock libertávamos a imaginação e a energia acumulada pelas hormonas.

No início de Março recebi a convocatória para a tropa, a namorada do Snoopy ficou grávida e eles tiveram que ir morar para um sítio entre Queluz e Sintra, a Carolina foi continuar os estudos dela para fora. Aos poucos a voz da Rádio Chan Dô foi perdendo o volume até que deixou de existir já em plena Primavera. No entanto, para aqueles que estiveram envolvidos no projecto foram horas extraordinárias de paz e harmonia em comunhão com o bairro. Nunca ninguém soube onde era o emissor.

O Figueredo tornou-se produtor no ramo da música e a Carolina andou pelo mundo, profissionalizou-se e, da última vez que soube dela era  solista na orquestra da Gulbenkian.

Mais do que as ideias, os projectos uniam as pessoas e uma das maiores lições daquele tempo foi que por mais diferentes que possamos ser há sempre uma via para conseguir ouvir e compreender o outro. Assim haja tempo e disponibilidade.

Naqueles três meses julgo que fomos felizes.

 

Artur


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