Vigésimo sétimo e oitavo dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte. O cheiro das brasas por ser, o mar no seu lugar, o cão à espera, e as ondas a cantar de mansinho. Não há mastros ao longe, estão perto, a interpor-se com o horizonte coberto de nuvens. Um homem ouve os relatos de vários futebóis e eu controlo a audição, e a irritação, debaixo do cachecol. Sei que o silêncio incomoda a uns e os relatos da bola a outros. Um bando de gaivotas partilha a carcaça dum peixe e seguem em fila em direção a outra probabilidade marinha. A última está coxa, mas a voar é a primeira. Imagino que o golpe de asa compense o manquejar. Pouco a pouco chega mais gente, e a esplanada vazia vai-se enchendo. É domingo e sente-se no ar. Pago e parto, em direção à Vila com um urso-lobo na bagageira. Treinamos uns passos pelos passeios do dia, mas ainda não é altura de o fazer. Mesmo com acepipes na algibeira ele arranca com força e as minhas costas dão sinal. Volto aos treinos no meio do campo e nos caminhos vazios. Metros que se fazem quilómetros entre árvores e pequenas encostas. As galinhas respeitam a distância e evitam a horta por já saberem que ele não deixa. Se arriscarem treinarão novo voo a pique até à capoeira com uma rasante sobre a minha cabeça.
Volta e meia recebo telefonemas de amigos que me conhecem menos e me perguntam com alguns rodeios se me sinto só. Os amigos que me conhecem mais já sabem que estou a curtir como uma menina todas as brincadeiras deste natal e que o ano inteiro me trouxe. Continuo a pensar em voz alta como quem fala sózinha. Abraço árvores,cães, e gente com pouco contacto humano, como a minha vizinha de noventa e quatro anos que me diz todos os dias que tem medo de morrer. Digo-lhe de volta que temos todos e quem disser o contrário mente. De manhã ouço as notícias no pequeno rádio de pilhas,faço projetos para o dia todo, e cumpro metade. A chuva e o tempo pouco agradável não me deixam fazer sem ficar encharcada. Por isso mantenho-me a seco e vou pintando a manta, madeiras, telas e chão. Algumas paredes, com a ajuda do desumidificador.
Hoje voltou a ser segunda e tudo passou num ápice. Cheguei há dois meses e parece que foi ontem. Melancolia zero numa ilha que dizem com pouca alegria dado o estado climático deste início de inverno. Parece que faz sol aí, sei que neva, sei que é verão. Escrevo para quem me lê, para ti que tens saudades da minha presença, para ti de quem tenho mais do que saudades. Há uma dorzinha que se instala como uma pequena farpa quando penso neste assunto e que me impele a fazer mais e melhor. Faz frio e as meias de lã aquecem-me os pés. Todos os dias se esburacam, todos os dias as remendo. O olhar cor de canela sobrepõe-se ao teu enquanto uma pata me puxa para o meio do pomar. As estrelas envergonhadas iluminam por entre as nuvens e a lua faz crescer as nossas sombras. Sobre os teus passos caminham os meus, de meias rotas e botas de biqueira escancarada, a rir à gargalhada desta noite mansa que nos outros é desassossegada. O tempo tornou-se um mil folhas intemporal e a distância mora aqui ao lado. Falamos de janela para janela, debruçados sobre o atlântico e o mediterrâneo,a gritar pregões e promessas em língua de marejar. Há mar.
Elsa Bettencourt
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