sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

DO TEMPO E DOS LIVROS

 

Com o tempo a nossa relação com as coisas em geral vai mudando. Aquilo que somos é aquilo que seremos sempre, a única coisa que muda é a intensidade. Quando éramos novos as discussões de café normalmente terminavam á porta do Verbo, isto é, após a sagrada pergunta: "Onde é que foste buscar essa ideia?" a resposta certa era "vinha publicado no jornal" ou ainda "li no livro tal". A partir desta fase da conversa mandava-se vir mais um café e mudava-se de assunto. Os livros sempre foram objectos multifuncionais muito para além da simples leitura. Lembro-me de usar os livros da biblioteca do meu avô e de os posicionar alinhados na carpete da sala para construir pistas de carrinhos antes de desenvolver animadas corridas de Grande Prémio; lembro-me de usar um livro velho para calço da perna curta de uma mesa da cozinha. Os livros andaram sempre connosco de uma maneira ou de outra, ora como janelas de fuga e evasão, ora como amigos, ora como sombras chatas antes dos exames. Entre mim e os meus amigos desenvolveu-se um hábito aceite por todos. Roubávamos livros uns aos outros. Às escondidas ou à vista desarmada, o certo é que os livros viajavam de um lado para o outro sem que ninguém se importasse com isso. De um dizia-se " Este tem a casa cheia de buracos…todos os livros que lá entram, desaparecem.". Outra frase instituída a propósito das viagens dos livros era  a que se referia ao otário do dono. "Fulano tinha este livro , mas deixou de o ter e ainda não sabe". É claro que a livre circulação do conhecimento nunca deixou ninguém pendurado num exame nem contribuiu de modo nenhum para nos azedar a vida. Para isso havia o nosso clube a perder ao Domingo à tarde, as gajas e os ácidos da Damaia que como toda a gente sabe vendem viagens só de ida. E quem dizia livros, dizia discos. A cultura e a arte circulavam entre nós sob um manto de alguma marginalidade havendo mesmo dias em que perdíamos completamente o paradeiro da obra. Aí já pouco haveria a fazer a não ser declarar a perda irremediável de mais uma aquisição, mais um membro da família que partia. Com o tempo a relação com os livros, tal como todas as outras relações, foi mudando, desacelerou, essencializou-se. Hoje olhamos para a estante e percebemos que já não vamos conseguir ler metade daquilo que está nas prateleiras até morrer. Depois olhamos para os nossos filhos que sem o dizer vão já avisando que todo aquele entulho de papel terá a porta da rua como destino visto que só ocupa espaço, ganha pó, não é vegan e tudo o que informa pode ser obtido num computador. Não discuto. Não por entender que têm razão ou deixam de ter mas porque é inútil trocar tempos tão diferentes no que toca à forma como chegamos ao conhecimento.

Nas limpezas vamos encontrando relíquias que pareciam para sempre desaparecidas. Vinis cheios de pó, K7s,CD's e claro, livros. Continuamos a falar uns com os outros só que agora ninguém rouba livros aos amigos. Antes os oferecemos. "Já li e não vou voltar a ler"; "aquele livro que te emprestei e que nunca mais devolveste? Fica com ele".

Torna-se lastro inútil que é preciso ir despachando seja para ganhar espaço seja porque não tem mais nenhuma utilidade. Num país tão pequeno como o nosso é espantoso o volume e a qualidade da nossa produção cultural, a qualidade dos nossos romancistas, poetas, realizadores, dramaturgos, etc. A criação cultural é talvez a mais generosa das actividades humanas especialmente num país tão pequeno como este, dirigido por gente tão pequena e tão bimba como esta. Aos criadores ninguém lhes pediu nada, ninguém sabe que criam nem quer saber se apesar de criarem conseguem sobreviver. Um país que apesar de tudo faz questão em se manter vivo em deixar obra, em deixar testemunho de qualidade para as gerações seguintes que vão encontrar nisso o alívio da estupidez dos dias que a que forçosamente estarão condenados como nós estivemos. Antero de Quental, Jaime Batalha Reis, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Raul Brandão Virgílio Ferreira, Luis de Sttau Monteiro, Miguel Rovisco e tantos, tantos mais. Criaturas solitárias e anónimas perdidas na solidão dos seus mundos enquanto vivos que apesar de tudo fizeram questão de nos deixar o seu trabalho, a sua criação, alvos de homenagens e fanfarras depois de mortos. A única criação cultural que interessa é esta. O brinquedo ignorado, o nosso clube derrotado, o amor não correspondido para o reconhecimento tardio. A criação cultural é isto. Um tremendo despojo do ego que mantém viva uma linha que pensa, que entretém, que fascina, para que não nos esqueçamos. Somos um somatório de dias sem história mas somos também muito mais coisas. Somos um pensar colectivo que insiste em manter-se de pé, somos uma tradição de épocas que dependem umas das outras, somos uma identidade que não morre. Os livros que queremos possuír, como as pessoas que amamos, acabam por chegar a um ponto em que percebemos que só conseguem pertencer a si próprios, naquilo que significam, naquilo que ensinam…naquilo que fascinam. E assim as ideias voam, as histórias encantam, dão vida a outras histórias e, teimosamente, vivem em toda a parte.

 

Artur




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